Entrevista: Juliane Gamboa, cantora e compositora

1. Juliane, você poderia nos contar como foi sua conexão inicial com a música “Lote XV” e o que te motivou a interpretá-la?

A conexão se deu primeiro pelo groove da música, pela levada, que me remeteu muito ao repertório do João Bosco e do Aldir Blanc, que eu estava ouvindo e pesquisando muito na época que o Léo Brum, compositor da música e meu amigo, me mostrou. Em um segundo momento, a poesia me encantou por identificação.

2. O que significa para você lançar um single que traz tão fortemente as vivências suburbanas e a luta pela superação? Como essas temáticas se refletem em sua própria trajetória artística?

Eu não sinto que essa música fala exatamente sobre superação, ela fala sobre debochar um pouco do sistema que diz que “vida feliz é só para quem pode” e encontrar seus próprios meios e estratégias para ter momentos felizes mesmo no turbilhão que é a vida de quem não tem herança, de quem tá se equilibrando na corda bamba, a gente tem que ser esperto para não sucumbir.

Essa temática é intrínseca a minha vida, porque acho que aprendi com a minha família que é importante ser feliz, descansar e celebrar a vida mesmo com dificuldade, sem romantizar. E ainda mais, quando decidi viver da música, entendi que essa profissão é cheia de altos e baixos e precisei ter muita coragem pra continuar no meu propósito.

3. Como você se identifica com os elementos de samba e partido-alto presentes na canção? De que maneira esses ritmos dialogam com a sua formação musical?

O samba faz parte da minha vida e da minha construção como pessoa desde a barriga da minha mãe. O samba sustentou minha família. Meu pai atuou como percussionista durante muitos anos, então é o som que mais integra minha musicalidade, que é mais natural pra mim. Foram principalmente esses elementos rítmicos que me levaram a gostar da música e querer gravá-la. O estilo partido-alto, na minha concepção,  enfatiza muito a temática da letra se a gente pensar nessa divisão que é mais solta e alegre, inspirando esse desejo de liberdade.

4. Você mencionou o “corre” na sua fala. Como essa ideia de constante luta e resiliência se manifesta na sua carreira até agora?

Acho que o corre tá aí, na vida de qualquer artista independente como eu. Pra mim, o fazer musical é um trabalho como qualquer outro, mas ele tem um adicional de paixão e sonho que trazem um tempero de muita coragem e muita resistência, porque temos muitos motivos para fazer qualquer outra coisa, menos ser artista. Então eu sinto que é uma luta, mas uma luta que eu escolhi lutar porque ser musicista faz sentido pra mim, porque a música é uma linguagem que me ajuda a me comunicar, que me ajuda a me conectar com as pessoas. Não romantizo, porque sim, seria ótimo também conquistar as coisas sem precisar fazer um tremendo esforço. Mas é isso, dor e delícia. E eu sou muito grata por estar nesse caminho.

5. A influência de artistas como Djavan, João Bosco e Elis Regina é notável em “Lote XV”. Como essas inspirações impactam a sua interpretação e abordagem musical?

São artistas que esbanjam a musicalidade brasileira com muita influência jazzística, tanto em suas interpretações, quanto nas harmonias e melodias que criam. O Léo também tem muito esse background de referências, por isso logo que ele compôs a música, ele quis me mostrar, porque são sons que como amigos há anos, nós pesquisamos e compartilhamos ideias sobre. 

Essas influências são muito intrínsecas na minha musicalidade na forma de cantar pela questão do ritmo principalmente, são artistas que tem um balanço inconfundível, e isso é uma das coisas mais importantes pra me conectar com um som, o swing. A pulsação é o que domina meu fazer musical, isso pra mim é além de muito forte, é muito espiritual também é muito ancestral. Eu penso que absolutamente tudo que foi criado tem e é ritmo, e a música é, em especial, uma linguagem que o organiza como elemento que opera no tempo.

6. O que podemos esperar do seu próximo álbum “Jazzwoman”? Como “Lote XV” se conecta com o restante do projeto?

O JAZZWOMAN é um álbum de jazz contemporâneo, e – por mais que seja redundante dizer isso, é um álbum de jazz afro-referenciado. Desde o conceito ao repertório, à forma como escolhemos tocar e arranjar as músicas. Pode-se esperar um álbum denso, com texturas sonoras bastante oníricas e uma potência de reflexão sobre o rompimento do silêncio e a conquista da liberdade pessoal.

A história que eu conto em JAZZWOMAN toca na autonomia da mulher preta, no seu poder e criatividade, na sua magia de mover universos a partir do seu Asè. Jazz woman é a mulher preta que, apesar da sujeira colonial, conquistou a si mesma através de seus próprios parâmetros. 

Lote XV não faz parte do álbum, mas se conecta com ele porque tem o mesmo sentido de estar em busca de algo melhor, conquistar felicidade. Acho que em JAZZWOMAN, expresso que o que a gente busca na verdade está dentro, é onde começa a nossa liberdade de fato.

7. Como foi o processo de gravação e produção da música com Lucas Fixel e os outros músicos envolvidos?

A faixa foi gravada em parceria com o Medusa Samba Jazz, era um trio formado pelo Lucas Fixel (bateria), Magno Souza (baixo)  e Marcelo Figueiredo (guitarra). Nós nos apresentamos durante 2 anos num vinho bar chamado Medusa Urbana, em Laranjeiras (RJ), onde eu também assinava a curadoria, todas as quartas-feiras, foi um espaço onde recebemos inúmeros convidados, incluindo Josiel Konrad, nosso amigo que também participa da faixa. 

Em 2021 fizemos uma campanha de financiamento coletivo para gravar um EP, e nessa ocasião, Lote XV foi gravada. Foi um processo muito bonito gravar essa música com esses parceiros, porque tocávamos juntos toda semana, então houve uma evolução muito bonita do nosso trabalho que ficou registrada nessa faixa.

8. Você já colaborou com grandes nomes da música brasileira. Como essas experiências influenciaram o desenvolvimento de “Lote XV” e do seu trabalho como um todo?

Acho que todas as experiências com grandes nomes e outros nomes não tão conhecidos são muito boas pro desenvolvimento do meu trabalho. Eu sou uma artista autodidata, sem educação formal de música, então minha formação se dá no fazer, logo, colaborar com outros artistas é o que me ensina e me influencia a melhorar a minha forma de fazer música. Eu valorizo muito isso, apesar de muitas vezes ser desafiador! 

9. Como foi a sua experiência na residência artística MARES e como isso influenciou o seu trabalho, especialmente na criação do projeto “Jazzwoman”?

Foi uma das melhores experiências da minha vida. O MARES é um programa incrível, me abriu muito os olhos para o mercado da música, e para diversos elementos da minha comunicação como artista, além de expandir os sentidos da criação e do fazer musical coletivo com a produção do nosso álbum composto e gravado por 25 mulheres, além da equipe técnica também toda feminina.

O MARES foi um divisor de águas para mim, foi onde eu entendi que eu podia acreditar na minha verdade, apostar no som que eu amo fazer sem mudar quem eu sou, sem precisar convencer ninguém a gostar do que eu faço. E também foi onde eu conheci minha querida empresária, Roberta Senna, que segue comigo na jornada de afirmar uma história que é contada de dentro pra fora.

10. Quais são as expectativas para a sua participação no programa internacional OneBeat nos EUA, e como você vê essa oportunidade impactando a sua carreira?

Eu já participei do OneBeat em junho/julho desse ano. Foi uma excelente oportunidade de colaborar com artistas do mundo inteiro, com diferentes backgrounds e experiências sonoras/visuais/musicais. Foi um programa que expandiu muito a minha visão sobre improvisação, sobre criação coletiva e individual. Foi a primeira vez que experimentei produzir e gravar em casa, e também me aproximei muito das ferramentas musicais e visuais de inteligência artificial. Debatemos muito sobre esse tema no programa e produzimos materiais experimentais muito interessantes com IA.