Entrevista: Felipe Brêtas, cineasta

Entrevista: Felipe Brêtas, cineasta

“Mão na Cabeça” é livremente inspirado na Chacina de Vigário Geral (1993). Como vocês equilibraram a fidelidade histórica com a liberdade criativa ao retratar esse episódio tão marcante?
O filme é livremente inspirado na Chacina de Vigário Geral de 1993, enquanto Clarissa (a protagonista fictícia) foi construída a partir do relato de uma criança que viu tudo “por baixo do lençol”. A equipe mesclou base documental com elementos ficcionais e simbólicos para dar voz a sobreviventes como ela, mantendo o rigor emocional do evento real.

A história é contada por meio de lembranças fragmentadas dos personagens. Por que escolheram essa estrutura narrativa? Como ela contribui para o impacto emocional do filme?
Escolhemos uma narrativa por recortes de memória, quase como um mosaico, para refletir a forma como se processam traumas e lembranças fragmentadas. A montagem fragmentada intensifica o impacto emocional e faz o espectador juntar os pedaços da história aos poucos.

O longa mistura drama pessoal (a relação entre Leonardo e Clarissa) e denúncia social. Como surgiu a ideia de unir uma história de amor a um contexto de violência extrema?
A relação entre Leonardo (sobrevivente policial) e Clarissa (enfermeira traumatizada) surge como contraponto pessoal dentro do contexto violento. O romance simbólico representa a busca por humanidade e esperança em meio à impunidade e à brutalidade coletiva.

O filme tem roteiro de José Loureiro (“Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia”) e direção de Milton Alencar Jr. (“Garrincha – Estrela Solitária”). Como foi a colaboração com eles? O que cada um trouxe de único para o projeto?
José Louzeiro trouxe sua experiência de roteirista em obras como Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia, conferindo densidade e verossimilhança às personagens. Milton Alencar Jr., por sua vez, aportou sensibilidade documental, resultante do seu trabalho em Lembrar pra não esquecer. A parceria equilibrou pesquisa realista e construção ficcional poderosa.

O elenco inclui nomes como Roberto Bomtempo, Milhem Cortaz e Prisma da Matta. Como foi o processo de escolha dos atores? Alguma cena ou performance em especial que tenha sido marcante durante as gravações?
O elenco inclui Prisma da Mata como Clarissa, Roberto Bomtempo como Leonardo e Milhem Cortaz, André Gonçalves e Bárbara Reis em papéis importantes. A escolha foi baseada em atores que pudessem dar densidade emocional à tragédia e resiliência às personagens. Uma cena marcante mencionada por Milton não foi detalhada publicamente, mas foi o encontro entre Clarissa e Leonardo no hospital, que simboliza o clímax do drama emocional.

Quais foram os maiores desafios na produção de um filme que aborda um tema tão delicado? Como lidaram com a responsabilidade de retratar uma tragédia real?
Gravar sobre a chacina de Vigário Geral foi considerado arriscado em 2016/17, momento em que o estado estava parcialmente controlado pelas milícias, igualmente como hoje, infelizmente. Por isso, filmamos em locais como Cabo Frio e Silva Jardim que reproduzissem a ambientação social necessária, sem expor a equipe aos riscos originais. A responsabilidade ética de retratar tragédia real exigiu sensibilidade desde a pesquisa até o diálogo com famílias das vítimas.

Felipe mencionou que o filme discute o surgimento das milícias no Rio e sua evolução até o controle de territórios e políticas públicas. Como “Mão na Cabeça” dialoga com a realidade atual das comunidades?
O filme estabelece paralelos diretos com o crescimento das milícias no Rio, que hoje controlam serviços comunitários e influenciam eleições. O longa mostra como o ciclo de violência e impunidade iniciado com massacres como Vigário Geral desembocou no controle territorial por grupos armados que hoje agem como poder paralelo, dominando ruas e urnas.

A Chacina de Vigário Geral foi um dos primeiros casos de violência policial com ampla cobertura midiática. Três décadas depois, o que mudou (ou não) na forma como o Brasil lida com violência de Estado e justiça?
Apesar da cobertura midiática da chacina na época, três décadas depois a impunidade permanece; muitas famílias seguem sem indenização e poucos culpados foram efetivamente condenados. O filme reflete que pouco mudou — ou mudou para pior — na forma como o Brasil enfrenta a violência policial e promove justiça.

O filme chega em um momento de debates acalorados sobre segurança pública e abuso de poder. Qual mensagem ou reflexão vocês esperam que o público leve após assistir?
Esperava-se uma reação de reflexão profunda: que os espectadores observem tanto a dor individual quanto o mecanismo coletivo que naturaliza a violência. O filme convoca o público a não esquecer, a questionar sobre quem detém o poder e a refletir sobre a possibilidade de justiça real.

“Mão na Cabeça” será lançado na Amazon Prime Video, Apple TV e YouTube Filmes. Como a Iconic Films enxerga o papel das plataformas na democratização do cinema brasileiro independente?
A distribuição via Amazon Prime Video, Apple TV e YouTube Filmes democratiza o acesso ao cinema autoral brasileiro. Segundo Felipe Brêtas, estar nessas plataformas dá visibilidade nacional e até internacional a obras muitas vezes restritas a circuitos menores.

Além deste filme, a Iconic também está lançando “Mar de Lama”, “Rio” e “O Jogo”. Como vocês escolhem os projetos da distribuidora? Há um fio condutor que una filmes tão diversos (documentários, dramas, sátiras)?
A Iconic aposta na diversidade temática e formal: o drama social (Mão na Cabeça), documentário ambiental (Mar de Lama), releitura queer (Rio) e sátira cultural (O Jogo). O ponto comum é o compromisso com narrativas que provoquem reflexão e impacto real na sociedade brasileira.

Felipe citou que muitos filmes brasileiros “não chegam ao público”, mesmo sendo premiados. Como a Iconic Films trabalha para mudar esse cenário? O que falta para o cinema nacional ganhar mais espaço?
Segundo ele, muitos filmes brasileiros, embora premiados, não chegam ao público em larga escala. Justamente por isso, a Iconic Films trabalha diretamente com plataformas digitais e estratégias de curadoria para levar esses títulos a salas virtuais e físicas. O que falta é um canal de distribuição acessível e valorização contínua do cinema nacional independente.

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