- O título “Juízo Final” é carregado de ironia e de urgência. Qual foi o ponto de partida desse conceito — e em que momento você percebeu que ele representava o disco por inteiro?
“Juízo Final” vem de uma sequência de lançamentos completando uma trilogia: CORPO SEM JUÍZO (2020), in.corpo.ração (2024) e Juízo Final (2025). Eu já tinha o título e o conceito do que iria tratar neste álbum. Uma festa fúnebre, sobre fins e recomeços. É como um acerto de contas comigo e meus deuses. Acredito que as composições que trago são as mais profundas e honestas até aqui. Sem medo de me desnudar e me apresentar vulnerável, mas também, emito força. Sabe quando você chega no fim de uma festa que você deu e ficou tão preocupada em receber bem seus convidados que esqueceu de se celebrar? Pode ser tarde, ou ainda há tempo?
- Você fala do “vaso ruim” que não quebra. Essa metáfora se repete de maneira simbólica ao longo das faixas. Que forças e fragilidades você quis revelar com ela?
É como um mantra que canto pra mim e pra quem precisa ouvir. Muitas vezes nos colocamos como imbatíveis, que não quebramos, para poder seguir a vida e os desafios diários. Mas ser vulnerável também é importante. Reconhecer que precisamos de ajuda, de carinho, de colo e quando temos medo. Essa letra era uma das minhas favoritas da minha mãe, que foi pra eternidade no final do ano passado, talvez seja uma das minhas favoritas por isso.
- O álbum mistura funk, house, metal, pagode e pop — e mesmo assim tudo soa coerente. Como foi o processo de encontrar unidade nessa diversidade sonora?
Acho que o fato de que as composições sugerem uma certa continuidade, talvez faça essa unidade acontecer. Quando comecei a produção de “Juízo Final”, queria que o instrumental me trouxesse uma sensação de “rádio do fim do mundo” ou o que acredito que seria a trilha sonora desse fim. Então viajamos por todas as minhas referências, o que gosto de ouvir e a partir daí acho que se cria uma coerência mesmo que contraditória. FUSO! é um parceiro muito atento, criativo e poroso. Existe muitíssimo dele e de suas referências também.
- A colaboração com FUSO! é central na produção. Como vocês construíram essa parceria e de que forma ela transformou sua maneira de compor e criar?
FUSO! é de longe um dos meus produtores favoritos no mundo. Além de ter um gosto musical em comum, sinto que ele tem uma inquietação que me atrai muito. Algumas coisas eu já tinha escrito e ele ia construindo e outras eu escrevia depois de ouvir alguma criação dele. Isso aconteceu em algumas faixas como “BRILHO DO BREU”, “DÓI DEMAIS” e “ESCOLHA UMA VIDA”, por exemplo. É muito prazeroso trabalhar com quem entende suas ideias e topa fazer loucuras com a música. Por isso nossa parceira deu tão certo.
- Em várias falas você menciona o esgotamento do fazer artístico no Brasil. “Juízo Final” também é um desabafo sobre o cansaço de existir e produzir em meio ao caos?
Totalmente. A indústria quer sempre mais, o público quer sempre mais. A qualidade do trabalho cada vez importa menos pois não é a arte que querem consumir, é o artista. Quanto mais ISRC você gera, melhor para gravadoras, distribuidoras, selos e afins, pois isso gera receita para eles. Com isso, o quão mais genérico for, mais fácil de trabalhar, pois a música vira um produto descartável: se não der certo, que venha a próxima. É muito diferente quando artistas independente como eu (independente de fato) querem e precisam criar a partir de algo genuíno, que lhe faça sentido e que você sustente. É literalmente inventar verdades para que você possa continuar acreditando que a arte pode transformar sua vida.
- Há um aspecto ritualístico e quase espiritual nas suas canções — uma mistura de festa, luto e celebração. Isso veio de onde?
Algumas culturas de países como Japão, Índia e Indonésia utilizam de alguns rituais simbólicos e tradicionais para ajudar a ressignificar a experiência do fim da vida. É como se celebrar a presença fosse muito mais que sofrer pela ausência. E esse é um exercício que tenho feito para canalizar as minhas dores também, minhas ausências. Meus avós, pai e mãe partiram muito cedo, isso fez com que eu precisasse mudar a rota algumas vezes pra não me entregar ao sofrimento, que é tragicamente viciante. O sofrimento, o luto e a solidão são algumas das principais responsáveis por fazer a gente se isolar. A gente se isola por se sentir só e sente-se só porque está isolada. Eu não quero morrer em vida, pra isso preciso me celebrar mesmo que sem vontade. É a minha única chance.
- “ROCKSTAR”, com participação do Black Pantera, e “A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ F*** COMIGO”, com Negro Leo, trazem camadas intensas de raiva e libertação. Como foi dividir essas faixas com eles?
Eles são meus ídolos, acredito que quase cavaleiros do apocalipse junto comigo. Sempre tive muita vontade de fazer algo com o “Black Pantera”, sempre que nos encontrávamos, falávamos sobre isso. Quando comecei a criar “ROCKSTAR” com o produtor da faixa, VINEX, ele sugeriu “aqui podia ter um baixo, aqui uma guitarra, uma bateria…” Batata! Uma banda! E só poderia ser o Black Pantera, que prontamente aceitou logo depois do convite. Com Negro Leo não foi muito diferente, sempre fui muito fã dele mas não éramos tão próximo quanto eu era de Ava Rocha. Timidamente mandei uma mensagem para Ava dizendo que queria fazer uma música com Leo mas que estava consultando ela antes pra ver se fazia sentido ou não. Em poucos minutos ela me responde “ele amou, vai te chamar no WhatsApp”. Desde então viramos amigos de fato, começamos a criar a faixa e f****** musicalmente pela primeira vez.
- Você sempre trabalhou o corpo como um território político e poético. Nesse disco, qual é o papel do corpo — ele ainda é resistência ou virou também refúgio?
O corpo nesse trabalho tem a importância de um coadjuvante, acredito que diferente de “CORPO SEM JUÍZO” (2020), em que ele se apresenta como uma ferramenta de justificativa para a essência do que ali estava começando a apresentar, ao longo desse disco, a mente contaminada a narrativa por inteiro. As memórias, sonhos e a vontade de estar presente ao seu tempo. O corpo nem sempre se fará presente, mas as suas ideias podem viver por mais tempo.
- Na capa, há essa imagem de uma “festa fúnebre”, criada em parceria com Gabe Lima. Como nasceu essa estética visual e o que ela comunica sobre o álbum?
Nasce da vontade de criar uma sensação contraditória onde a culpa e o desejo se misturam em um grande delírio. Tem o peso de uma celebração que nunca aconteceu, uma despedida tardia, cruel e bela. Ela diz muito sobre o álbum. Atmosfera densa, uma espécie de fim de festa com resquícios do excesso. Estou com um vestido rosa, suada e cintilante, refletindo as luzes em minha pele de forma úmida e texturizada, com uma expressão que evidencia o cansaço físico e emocional. No entorno acontece uma explosão metálica – prateada, brilhante, quase etérea – como uma chuva de fitas e confetti congelada no tempo. É trágico, bonito e muito forte.
- “Juízo Final” é também uma reflexão sobre finitude e recomeço. Existe algo de renascimento pessoal nesse trabalho?
Acho que não. Nesse caso mais pessoal acho que tem morte, coisas que precisei matar em mim pra continuar viva.
- O disco é lançado via Natura Musical, um projeto que historicamente apoia expressões diversas da música brasileira. Como é estar dentro dessa linhagem de artistas que você mesma admira?
O Natura Musical é um projeto muito importante para a continuidade da música brasileira. Ter um apoio como esse é o que permite a tantos artistas e produtores tirar sonhos da gaveta. Ele não só oferece o recurso financeiro, mas também reconhece o talento, a diversidade e a excelência que pulsam no nosso país. É um impulso enorme para a nossa cultura, ajudando a revelar novas vozes e a consolidar trajetórias importantes. É um catalisador para a transformação no cenário musical e inspiração pra quem acredita que a música ainda é uma das principais ferramentas da humanidade.
- Pra fechar: depois do Juízo Final, o que vem a seguir? Há planos de turnê, clipes ou desdobramentos audiovisuais?
Eu ainda não sei. Espero que sim, mas ainda não sei. Sinto que estou vivendo um oco depois de me dedicar tanto a um trabalho tão intenso que tirou tanto de mim. No momento estou focada em entender o que esse trabalho significa para depois pensar nos desdobramentos que ele vai exigir.
