Entrevista: Antonio Manuel

1. Como surgiu a ideia da série Incontornáveis e qual foi o impacto do confinamento na sua criação?
Os trabalhos da série Incontornáveis surgiram durante a pandemia de covid-19.
Uma das coisas que gosto de fazer é olhar os jornais expostos nas bancas, ler as manchetes e curtir a diagramação das páginas expostas. Passo por três bancas até chegar ao ateliê e sigo com a visualização dos jornais na cabeça, lembrando das informações e dos elementos gráficos dos acontecimentos. No ateliê, o que poderia parecer um caos, com obras espalhadas pelo espaço, outras penduradas, tintas, telas, caixotes, trabalhos retornados de exposições, são para mim energias que se movem em pensamentos e descobertas, como no processo criativo, intrínseco à arte. Vale ressaltar que os jornais estão lá, fazem parte desse processo, se acumulam por dias, meses. Um dia, em uma das páginas, encontrei um texto com a palavra barata. Pensei em construir um poema com esse texto, e, à medida que riscava as palavras, outras surgiam com humor. O texto tinha, ainda, valores impressos que mantive: “baratas premium”, “US$ 5 mil e US$ 50 mil”. “Não vendeu nenhuma”. Feito isso, experimentei abrir na folha do jornal um pequeno corte; descobri que deveria continuar com a precisão cirúrgica do traço no contorno das palavras e das imagens. Pintei esta página de branco, com pequenos toques de vermelho, foi a primeira experiência da série “Incontornáveis”.
2. Você menciona que esses trabalhos são “aberturas que se realizam e se revelam na ação precisa das mãos”. Pode nos contar mais sobre esse processo criativo?
Primeiro pego uma camada de folhas de jornais e escolho a palavra, imagem ou texto que quero destacar. A partir disso, pinto de preto, branco, vermelho ou amarelo a folha da frente e faço cortes precisos, selecionando somente o que foi escolhido previamente.
3. O que significa, para você, expandir o conceito de tempo das 24 horas do jornal para um novo contexto na série Incontornáveis?
Quando transformo as notícias do jornal em obras de arte, elas não são vistas mais apenas por 24 horas enquanto os jornais estão nas bancas, de certa forma eu amplio e eternizo isso.
4. Como a relação entre palavra e imagem se manifesta nesta nova série?
Um complementa o outro, palavras e imagens, juntas, em destaque nos trabalhos, ressaltam o que me chamou a atenção e passam a mensagem que quero transmitir.
5. O livro também revisita momentos marcantes da sua trajetória. Como foi esse processo de olhar para trás enquanto produzia um trabalho inédito?
Para mim é tudo novo, o trabalho é inédito, o pensamento por trás dele também, mas podemos relacionar com obras que fiz no passado, como as em que usei o jornal como suporte. De certa forma, estou refazendo as notícias e recriando-as a minha maneira, assim como fiz com os Flans e as Clandestinas. O revelar/esconder pode se associar ao trabalho Ocupações/ Descobrimentos, que traz muitas das cores que usei nos Incontornáveis, cores estas também usadas nos Frutos do Espaço, grandes estruturas de ferro, que se assemelham à diagramação dos jornais.
6. Há algum detalhe na produção gráfica do livro que você considera essencial para a experiência do leitor?
No livro há dois fac-similes para que o leitor entenda o processo de trabalho. Acredito que será uma bela experiência para quem estiver vendo o livro, pois será possível entender como era o jornal e como o transformei no trabalho.
7. Você tem uma longa trajetória trabalhando com jornais como suporte artístico. Como essa escolha dialoga com sua visão sobre comunicação e informação?
Sim, acredito que a comunicação e a informação são fundamentais para se criar uma visão crítica do mundo. Sempre gostei muito de me informar, de ler jornais, mas eles também me interessam como material, gosto da textura, de segurar suas folhas, da diagramação, do formato.
8. Em um momento de mudanças no consumo de notícias, com a digitalização da informação, como você enxerga o papel do jornal impresso na arte contemporânea?
Infelizmente, aos poucos, o jornal impresso está perdendo seu lugar, mas são mudanças naturais, o importante é a informação de qualidade, bem apurada, seja ela vinda do suporte que for. Mas, para mim, o jornal impresso é fundamental e continuarei lendo e trabalhando com ele enquanto ainda existir.
9. Qual foi a importância da “Exposição de Antonio Manuel (de 0 às 24 horas nas bancas de jornais)” na sua carreira e de que forma esse projeto ressoa na sua obra hoje?
Foi um projeto importante para mim. O editor do jornal na época achou a ideia um pouco estranha, mas acabou topando. De inicio ele queria me dar poucas páginas, mas eu disse que queria o caderno todo e ele acabou aceitando. Acho que as coisas têm que se realizar, seja aonde for, mesmo que fora dos espaços tradicionais. Fazendo uma exposição em um jornal, eu atingi um público que talvez não iria a uma exposição em um museu ou galeria, mas viram a minha obra, conheceram o meu trabalho e o meu pensamento.
10. Sua produção sempre teve uma forte carga política e crítica. Como você vê o papel da arte no Brasil atual?
A arte tem o poder de tocar as pessoas, seja por uma questão estética ou algo mais profundo. O meu trabalho sempre traz à tona questões que quero destacar, sejam elas políticas, ambientais, de saúde, etc.
11. Em tempos de censura e crises sociais, como o artista pode atuar para provocar reflexões e abrir novos diálogos?
Continuar sempre trabalhando, fazendo o que se acredita. Como disse o crítico de arte Mario Pedrosa: “arte é um exercício experimental de liberdade”.
12. O humor sempre esteve presente no seu trabalho. Você o vê como uma estratégia de resistência?
Com certeza! Alegria de criar, alegria de viver!
13. Ao longo de mais de cinco décadas, sua obra transitou por diferentes suportes e linguagens. Há algum meio ou formato que você ainda deseja explorar?
O processo de criação é complexo, não é algo pensado previamente, tem a ver com a poética do trabalho. Não penso de antemão que suporte vou usar, isso surge junto com a obra. Até hoje, usei todos que quis. No futuro, ainda não sei.
14. Como foi sua experiência na Bienal de Veneza e em exposições internacionais? O que mudou na sua visão sobre a recepção da arte brasileira no exterior?
Foram experiências maravilhosas. Realizei diversas exposições internacionais ao longo da minha trajetória, em Portugal, Paris, Nova York, Chipre, e em muitas outras cidades pelo mundo, além de ter representado o Brasil na Bienal de Veneza de 2015, com curadoria do Luiz Camillo Osório e Cauê Alves. O que percebo é que a arte brasileira tem cada vez mais força e espaço internacionalmente. Não somos apenas artistas brasileiros, somos artistas do mundo, estamos representando nosso país, mas nossa arte é internacional.
15. O que podemos esperar dos seus próximos projetos? Há novas pesquisas ou ideias que já estão em desenvolvimento?
Sempre há, mas ainda não posso revelar. Vou todos os dias ao ateliê, trabalho todos os dias, ideias surgem a todo momento.