Entrevista: Beth Goulart, atriz e escritora
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- O que motivou você a escrever O que transforma a gente?? Há algum evento ou reflexão pessoal que desencadeou essa obra?
R: A ideia surgiu logo após o lançamento do meu primeiro livro, ”Viver é uma arte – Transformando a dor em palavras”. Eu ainda estava refletindo sobre o impacto das mudanças que a perda de minha mãe trouxe para minha vida, quando recebi o convite de Felipe Brandão da Planeta editora para realizar um novo livro. Bem, o tema já estava em minha cabeça e quando coloquei para ele minhas ideias, elas foram imediatamente aceitas como a proposta desse segundo livro: mergulhar nas diversas possibilidades e formas de transformação que passamos ao longo da vida.
- Você aborda temas profundos como espiritualidade, filosofia e transcendência. Como foi o processo de organizar tantas ideias em textos curtos e acessíveis?
R: Tive a ajuda da professora de literatura Marcella Abboud na supervisão de conteúdo do livro. Já havíamos feito uma boa parceria no livro anterior e sugeri a editora que ela me ajudasse nesse livro também, era com ela que discutia as ideias e o resultado final dos textos, ela me ajudou na organização editorial do livro para apresentarmos para a Malu Polleti e o Vitor Castrillo da editora. A escrita é um exercício solitário mas, para chegar ao resultado final de um livro, ele passa por muitas mãos especializadas para chegar ao melhor resultado possível para o leitor. Eu participei em todo o processo, na escolha da ilustração e da ilustradora, a Fernanda Rodrigues, na ideia da capa, nas cores, enfim todo o livro foi pensado para que pudesse ser uma experiência estética sensível e clara para o leitor.
- A arte e a literatura são apontadas como portais de transformação. Porque escolheu Rumi, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Cora Coralina para representar essa conexão? Qual a influência de cada um na sua jornada pessoal e profissional?
R: Todos eles foram autores muito importantes que me transformaram ao longo da vida, desde minha infância, quando, aos 7 anos de idade, conheci Fernando Pessoa pela primeira vez, ao falar um poema dele na apresentação de final de ano da escola. Com ele descobri a força e a beleza da poesia, descobri que existe uma música nas palavras por trás de uma ideia, com seu poder de síntese e segui encantada com a poesia transcendental de Rumi, que abriu a minha a consciência para um amor mais amplo e espiritual, um amor que vai além dos corpos, ele me apresentou o amor universal e cósmico, me apaixonei por esse poeta Sufi e comecei a pesquisar tudo sobre sua vida. Na adolescência, iniciei a minha cumplicidade com Clarice Lispector que se estendeu por toda a minha vida pessoal e profissional. Clarice foi fundamental em minha formação artística, já que Clarice Lispector também se tornou uma referência em meu trabalho de atriz, dramaturga e diretora, foi uma revelação em todos os sentidos. Com Guimarães Rosa eu descobri que se pode ter uma linguagem própria e única, que se pode criar palavras e formas diferentes de falar desde que se crie uma conexão com os leitores, levando-os para dentro da obra, ele instituiu para mim o direito a criação mais ousada e radical, me provou que “o Sertão está em toda a parte” desde que saibamos olhar para ele. Com Cora Coralina me emocionei com a potência do simples, com a simplicidade e grandeza de sua obra e de seu sonho que só foi realizado aos 76 anos de idade, ou seja, no tardio de vida, o tempo é um ingrediente fundamental na obra de Cora Coralina. Todos eles e, cada um, foram muito importantes em minha formação de atriz e escritora porque me apresentaram visões múltiplas sobre a vida, o mundo, o amor, a literatura, a arte e sua capacidade criativa. Todos, com suas características muito marcantes, criaram uma linguagem única que me ajudaram a construir minha própria linguagem nos palcos e na literatura. Sou muito grata e apaixonada por cada um deles.
- Você fala que “vida é movimento” e que o oposto não é a morte, mas a estagnação. Como essa visão permeia os capítulos do livro?
R: Se acreditamos que a vida está sempre em movimento, parar significa trair o fluxo natural da vida, não compreender que a vida foi feita para ser transformada. Se você nascer e morrer igual, na verdade você perdeu a oportunidade de se modificar com os acontecimentos, sinal de que não foi tocado por eles, não descobriu coisas novas, não se permitiu experimentar coisas novas, não viveu profundamente as experiências da vida. Somos naturalmente transformados entre o nascer e o morrer, vivemos ciclos de transformação e eles nos fazem ganhar novos olhares sobre a vida e sobre nós mesmos . Muitas pessoas vivem no automático, nem percebem o que estão vivendo ou fazendo, não se deixam olhar e ver, ouvir e escutar, perceber e compreender a vida. Essa é a diferença, as vezes precisamos parar para observar o vazio, escutar o silêncio, zerar as atividades para começar de novo a sensibilizar nossa percepção , a ouvir nosso coração, sentir o movimento das sutilezas e descobrir que o carro de nossa vida pode e deve ter um motorista, que somos nós mesmos, escolhendo o caminho a seguir, aprendendo a escolher o que queremos para nós, a isso chamamos de consciência. Só mudamos aquilo que enxergamos, que precisa ser mudado em nós, mudar é evoluir. A evolução é o que dá sentido ao movimento.
- Qual foi o maior aprendizado para você enquanto escrevia essa obra? Alguma transformação pessoal ocorreu durante o processo?
R: Foram muitas as transformações e cada trabalho novo nos transforma, aprendemos coisas novas, repensamos nossa história, revisamos nossa vida. Talvez o maior aprendizado tenha sido o desapego, porque temos a tendência a fixar o que conhecemos, o que somos, o que conquistamos, quando na verdade o que sabemos é que “tudo passa”, e não levamos nada do que temos só o que somos, quem amamos, o bem que fizemos, as histórias que criamos com nossos passos e o que deixaremos de legado para novas gerações, então não se apegue a nada nem a ninguém, nascemos e morremos sós, embora nunca estejamos totalmente solitários, porque a vida é uma experiência coletiva e é com os outros que nos fortalecemos como indivíduo, precisamos uns dos outros para afirmar quem realmente somos.
- No livro, você fala sobre a importância de celebrar o tempo. Como podemos aprender a valorizar cada momento, especialmente em tempos tão acelerados?
R: É justamente nessa aceleração do tempo que precisamos valorizar cada segundo e, principalmente, o “agora”. O tempo é um conceito abstrato, ele depende de como podemos medi-lo para que exista concretamente, sem referências o tempo é toda a eternidade, precisamos marcar um começo e um fim, aí podemos medir sua presença em nós. Mas sua passagem é profundamente sentida em nossos corpos e experiências, cada década vivida tem sua beleza e sabedoria e a medida que vai chegando perto do fim, o tempo passa mais depressa, é como a areia da ampulheta, quando vai chegando perto do fim, a areia passa mais rápido e precisamos viver cada segundo sendo sempre o melhor de nós, como se fossemos morrer amanhã, como diria o filósofo Marco Aurélio, assim aproveitaremos o melhor em cada momento vivido.
- Você menciona que “o amor nos inspira em todos os momentos, principalmente no agora”. Qual o papel do amor como catalisador de transformação na sua vida?
R: O amor é o sentimento mais transformador do ser humano. Ele faz milagres porque ele é a fonte de nossa existência, nascemos dele e para ele retornaremos quando chegar a nossa hora, o amor nos unifica, nos agrega, nos diviniza , nos faz ser melhores, nos faz sair de nós mesmos e pensar no outro, como faria a nossa mãe, o maior aprendizado da maternidade é esse, a gente pensa primeiro no filho, depois em nós mesmos, e esse amor incondicional nos leva ao infinito, nos faz descobrir potencialidades, nos faz criar, cuidar, sustentar, educar e deixar livre. O amor é luz, ele pode salvar o mundo e a humanidade da escuridão do egoísmo.
- O conceito de “despertar da consciência” aparece como um movimento essencial. O que, na sua opinião, dificulta ou facilita esse despertar?
R: O que facilita é buscar em seu dia a dia momentos de introspecção e silêncio, momentos de meditação e de oração. Nesses momentos entramos em contato com nossa essência, passamos a sentir nosso eu interior para chegar ao eu superior e passamos a ouvir nossa alma, fortalecendo uma conexão profunda com as energias da luz, do bem e do amor universal, nos sentimos parte do universo, recebemos energias positivas e emanamos também energias positivas, sairemos mais despertos para as atividades diárias, isso ajudará bastante a esse despertar e nossa atitude positiva diante do mundo. É preciso desacelerar, deixar de olhar para fora e começar a olhar para dentro de nós. O que dificulta é se afastar de si mesmo, se anestesiar, não sentir, não se indignar com o sofrimento alheio, com as injustiças com a violência, porque somos rodeados por esses acontecimentos tristes e revoltantes mas quando achamos normal tudo isso, quando não sentimos mais a dor do outro, entramos no modo automático da vida, ou seja, estamos adormecidos para a verdade da vida e abrimos mão de nossa participação na mudança do mundo, aceitamos que ele seja assim, porque é normal que seja assim. Normatizamos o sofrimento, a injustiça, a corrupção, a violência e a dor, acho que essa é a maior dificuldade para o despertar de consciências.
- Muitas pessoas têm dificuldade em lidar com perdas e mudanças. Que mensagem você gostaria de passar a elas através do livro?
R: Não podemos controlar os acontecimentos da vida, mas podemos controlar como passamos por eles, as perdas fazem parte dos aprendizados necessários ao nosso crescimento, assim como as mudanças. Ninguém gosta de mudar, preferimos ficar no lugar conhecido e confortável onde estamos acostumados, mas a vida não foi feita para ser confortável, e sim para nos ajudar a crescer, a melhorar em todos os sentidos, e para isso as vezes, precisamos de um chacoalhão para nos acordar, nos provocar outras experiências. Muitas pessoas começaram a empreender porque perderam seus empregos, é bom perder o emprego? Não, mas se não fosse assim, talvez não se descobrisse uma capacidade guardada que estava adormecida, precisando unicamente de um alerta para despertar. A vida não é linear, é cheia de curvas no caminho, altos e baixos, perdas e ganhos, essas alternâncias fazem parte do processo, são pequenos ou grandes testes que temos que passar para saber se aprendemos a lição. Estamos numa escola e precisamos passar por algumas provas, se você estudou direitinho e aprendeu a matéria, vai passar com louvor, mas se ainda não aprendeu, vai repetir de ano. A vida funciona assim. E é assim com todo mundo, você não é a única pessoa que sofre, cada um tem a sua parcela de sofrimento. Confie na sua capacidade de resiliência, de superação. Quando saímos de uma prova dessas, ficamos mais fortes e preparados para lidar com a inconstância da vida, aprendemos a confiar no desconhecido e num poder superior que nunca nos desampara.
- Em 50 anos de carreira, você interpretou personagens marcantes e teve experiências únicas. Como essas vivências contribuíram para as reflexões presentes no livro?
R: Cada personagem nos ensina mais sobre a vida, gosto de pesquisar o universo de cada um deles e isso amplia meus conhecimentos, aumenta minha capacidade de compreensão da humanidade, me faz sentir emoções desconhecidas, sentir novas vontades, experimentar sensações novas, novas realidades. O exercício de sair da gente mesmo é muito rico, é transformador, te faz olhar por outros ângulos a história que está sendo contada. Quando estou interpretando, procuro entender as motivações do personagem por trás de cada ação e as intenções do autor, o que ele gostaria de falar através dele. Nossa interpretação também funciona assim, o que eu gostaria de falar através desse personagem, por isso nos revelamos tanto na maneira como enxergamos cada personagem, temos a escolha de conduzir suas emoções e intenções por trás de cada texto. Uma interpretação pode mudar completamente a maneira como o personagem chega ao público e isso faz toda a diferença. Nas reflexões do livro faço alguns paralelos entre meu trabalho e a minha vida, não tem como separar uma coisa da outra, comento também sobre o processo de realização de um espetáculo, é muito rico, o processo de criação, o encontro com outros atores, com os criadores, com toda a equipe e com o público. Somos transformados todos os dias no teatro.
- Seu trabalho com Clarice Lispector é amplamente reconhecido. Há ecos das reflexões dela em sua escrita?
R: Clarice Lispector me influencia para a vida, não tenho a pretensão de fazer alguma comparação com ela, mas ela é uma das minhas inspirações, e falo sobre isso no livro, sua palavras são muito potentes e a convivência com sua obra deve trazer alguns ecos em minha alma, ninguém lê Clarice Lispector impunemente, ela provoca movimentos dentro de nós.
- Como escritora, você sente que a literatura permite expressar algo que o teatro ou a dramaturgia não conseguem?
R: São relações diferentes com o público, a leitura é uma experiência solitária, individual, silenciosa, íntima, você pode interromper sua leitura e continuar mais tarde, quando você quiser, o teatro é uma experiência coletiva, única, jamais será a mesma, ela se transforma em cada sessão e o que se sente solitariamente na leitura é potencializado no coletivo. As duas experiências são necessárias e maravilhosas, mas são diferentes.
- Como espera que os leitores se conectem com O que transforma a gente?? Há algum capítulo ou reflexão que acredita que será especialmente impactante?
R: No livro proponho um diálogo silencioso, levanto algumas questões e deixo que o leitor tire suas conclusões. Foi feito de uma maneira muito simples, são palavras saídas diretamente de meu coração, então espero que recebam também com o coração aberto. São textos curtos, que você pode ler em qualquer ordem, pode abrir e simplesmente ler uma mensagem, ou seguir uma sugestão sequencial, mas não é necessário seguir uma cronologia. Pode ler direto ou aos poucos, como preferirem. Espero que faça a bem as pessoas e que gostem de minha maneira de escrever.
- O livro convida a uma leitura não linear e livre. Essa estrutura foi pensada para dialogar com a natureza fluida da vida?
R: São textos independentes unidos por um tema em comum, e gostei da sugestão da natureza fluida da vida, não foi pensada, mas foi sentida assim.
- Após Viver é uma arte, este é o seu segundo livro. Já pensa em novas publicações ou projetos literários futuros?
R: Espero que sim, gostei muito dessa cumplicidade que a literatura nos propõe e, se tiver novas oportunidades, ficarei muito feliz de continuar a escrever. Por enquanto estou dedicada no lançamento desse livro, mas estarei sempre aberta para novas ideias surgirem.
- Se pudesse deixar uma mensagem para os leitores que estão prestes a começar a leitura, qual seria?
R: Seja sempre sincero com seus sentimentos, em qualquer obra, literária ou não, somos provocados a perceber nossos sentimentos e esse é um momento precioso em que ouvimos nossa alma. Aproveite o silêncio da leitura, experimente viajar para dentro de você e descubra um universo imenso de possibilidades. Inicie sua jornada para o autoconhecimento e seja feliz, desfrute dos bons momentos da vida e saiba valorizar cada um deles, se gostar dessa experiência, siga lendo mais e mais, cada livro é uma viagem nova, aumente sua bagagem de sensações e aprendizados. Receba meu carinho e gratidão por ter me escolhido para estar com você nesse momento sagrado de sua intimidade e boa viagem.