Entrevista: André Siqueira, compositor, violonista e arranjador

1. Como surgiu a ideia de explorar polimetrias e polirritmias em “Aura”? Qual foi o maior desafio ao aplicar essas técnicas ao violão?
Quando falamos nestes termos, eles parecem ser de difícil compreensão e podem ser confundidos. A polirritmia é instrínseca à música brasileira e a música de muitas outras culturas, uma vez que o termo remete a diferentes linhas rítmicas ocorrendo ao mesmo tempo, como nas linhas de tamborins do Samba ou da estrutura rítmica de um Maracatu de baque virado, por exemplo. A polimetria é um tanto mais complexa pois envolve a percepção de diferentes metros (que poderia ser entendido como fórmulas de compasso) ocorrendo ao mesmo tempo. Assim, o que eu trago para o violão é a intenção de sugestionar ao ouvinte à possibilidade de ouvir referências métricas diferentes ocorrendo ao mesmo tempo, a percepção de cada um irá focar no que desejar, pode-se ouvir em determinados trechos, um metro em 3, 5 ou 4, simultaneamente. Se para um percussionista/baterista isto já é desafiador, para o violonista este trabalho se torna mais difícil ainda. A incorporação do dedo mínimo da mão direita me ajuda nesse desafio de apresentar diferentes planos simultaneamente. E claro, isto surge a partir de anos de estudo.
2. O álbum combina composições recentes com obras mais antigas. Como foi o processo de selecionar essas peças e criar uma narrativa coesa para o disco?
Para minha surpresa, quando comecei a estudar o repertório para a gravação, estas músicas dialogaram de modo natural, mesmo separadas por décadas. A necessidade de regravar 3 peças do meu primeiro álbum, “lithos” lançado em 2003, foi a busca de uma sonoridade mais natural do violão e por serem músicas que nunca deixei de tocar. Me agradou a ideia de reapresentar essas músicas ao público depois de 20 anos e, claro, tendo eu feito a lição de casa e estar com uma sonoridade melhor de violão.
3. “Aura” busca driblar a sisudez comum aos discos de violão solo. Que elementos você acredita terem sido essenciais para atingir esse objetivo?
Alguns elementos que são presentes na minha música desde sempre, o contato com a cultura popular de matriz rural, a forma próxima da canção de algumas peças e uma certa negação de minha parte de harmonias mais “jazzísticas” não que eu não goste, mas acredito que existem outras matérias a serem exploradas, por exemplo, a rítmica da qual falava anteriormente. É um trabalho muito fácil de ouvir e um tanto difícil de tocar.
4. Algumas peças do repertório, como “Canto da Praia” e “Atento ao Tempo”, já foram premiadas em concursos. Como essas conquistas influenciaram sua visão sobre essas obras?
Me enche de alegria saber que estas peças de certo modo agradaram a diferentes comissões julgadoras. O trabalho do músico é extremamente solitário, são horas de dedicação ao instrumento, à composição e ao estudo de diferentes estruturas, desta forma é muito bom quando a música ganha o mundo e é bem recebida pelos pares.
5. O álbum mistura diferentes gêneros brasileiros, como frevo, chamamé e samba. Quais foram suas principais influências ao transitar por essas sonoridades?
A vida! Toquei de tudo, iniciei no violão e na guitarra elétrica, mas toquei trompete nas retretas do coreto de Paraguaçu Paulista, cidade em que cresci, e esses dobrados marchas e valsas foram se misturando ao Rock`n Roll. E minha influência de infância que foram as Folias de Reis encontraram aconchego a partir do ano 2000 quando comecei a tocar com vários violeiros, como Pereira da Viola e Paulo Freire. Esta formação de “vira-latas” (e que eu considero uma sorte – já que temos possibilidade de mexer em tudo quanto é música), encontrou fundamentação quando vim para Londrina fazer faculdade de música e deste ponto em diante entrou em minha vida o estudo da composição, do arranjo e da música contemporânea e a partir dessa música de vanguarda eu compreendi a simultaneidade como uma estrada a ser seguida.
6. “Valsa Aquariana” é dedicada ao Toninho Ferragutti. Como foi a inspiração para essa composição e qual é a importância dessa parceria para você?
O Toninho é uma referência para mim há muitos anos. Bem antes de conhece-lo pessoalmente eu já ouvia suas composições com muita atenção e sabia que ele era um mundo. Em 2021, durante a pandemia eu gravei um álbum recriando ao violão 10 de suas composições, o “Da outra margem: André Siqueira visita Toninho Ferragutti”. A partir deste ponto ficamos amigos e tocamos muito juntos. A música do Toninho cai muito bem na minha mão e eu resolvi prestar esta homenagem, trazendo alguns maneirismos dele para o violão. E claro, a brincadeira com o nome, sendo eu e ele aquarianos e com o hábito de mudar de ideia o tempo todo! (risos). Nesta Valsa está presente uma textura que envolve a polimetria da qual falamos anteriormente, na terceira parte temos um 5 contra 3 contra 4, todos contidos em um pulso de 60bpm.
7. O álbum foi gravado na FATEC Tatuí com uma equipe bastante diversa. Como foi trabalhar com essa equipe e como isso contribuiu para o resultado final?
Eu gosto muito de gravar na FATEC de Tatuí por muitos motivos, a possibilidade acústica da sala que é maravilhosa, a possibilidade de trabalhar com alunos do curso de produção fonográfica que eu considero muito bom e o vínculo com um grande amigo, conterrâneo que é professor do curso. Assim, juntamos muitas coisas boas ao mesmo tempo.
8. Daniele Bronzatti Siqueira, que produziu o álbum, já participou de outros projetos seus. Como é trabalhar com ela nesse contexto?
A Daniele é uma figura essencial no meu trabalho e na minha vida, mãe dos meus 2 filhos, estamos juntos há 27 anos e praticamente todos os meus trabalhos tem uma importante parcela de sua contribuição. Dividimos a vida em todos os sentidos, inclusive as escolhas estéticas. Então é sempre muito bom trabalhar com pessoas em quem você confia.
9. Você é reconhecido por sua versatilidade musical. Como sua formação em Ciências Sociais e Música influenciou seu estilo de composição e execução?
Agradeço o elogio! Versatilidade é um adjetivo muito desejado. Na realidade a música é minha área de estudos. O doutorado em Ciências Sociais se traduz pela busca de compreender melhor a música brasileira a partir do pensamento social brasileiro, para mim a arte não existe fora do chão social e é importantíssimo para nós músicos a compreensão da história e a formação de nosso país bem como a reflexão, em constante mutação, sobre a interface com a arte e a música.
10. “Aura” é seu oitavo álbum, com uma trajetória que inclui colaborações e diferentes estilos. Como você enxerga sua evolução como artista ao longo dos anos?
Nestes 8 álbuns lançados eu acredito ter permanecido coerente com minhas convicções artísticas. Espero continuar podendo realizar a música em que acredito e que traduz minha vida e minha alma. Não sou muito dado à concessões estéticas para agradar um ou outro segmento, nem realizar por realizar, para fazer volume, digamos. Meu interesse está sempre em fazer a música que acredito e que expressa quem eu sou.
11. Qual é a mensagem principal que você deseja transmitir com “Aura”?
Na minha percepção Aura é um álbum muito fluido, derivado dos gestos no instrumento, quase tudo deriva de fluxos de energia aplicados aos gestos musicais que carregam a ideia por mais ou menos tempo. O sentido disto busca estar além de uma composição focada apenas em estruturas (harmonia, melodia, ritmo, texturas, contrapontos etc.) mas traz o desejo de que os gestos sejam carregados pelo que mais gere coerência. Ou seja, algumas vezes é a harmonia que conduz, às vezes é o ritmo e muitas vezes a textura contrapontística por exemplo. Eu procuro fazer com que cada ideia vista sua melhor e mais adequada pele.
12. Que tipo de reação ou sentimento você espera despertar nos ouvintes ao escutarem esse álbum?
Acredito muito no poder da música em muitos sentidos, o de “parar” o tempo, o de remeter a lugares e sentimentos já vivenciados e principalmente o de trazer paz e tranquilidade às pessoas. É um álbum muito fácil de ouvir apesar de muitos trechos de difícil execução. Eu busco fazer o difícil parecer fácil e não o contrário.
13. Com “Aura” disponível nas plataformas digitais, quais são seus planos para divulgar o disco? Pretende realizar shows ou eventos específicos?
Pretendo tocar muito este trabalho, uma vez que é muito orgânico para mim. Quanto às divulgações estamos buscando a divulgação nas redes e nas diferentes mídias. Confesso que o jogo das mídias sociais me cansam um pouco, em relação ao excesso de trabalho para ter a música ouvida. Tenho repensado isso e acredito que o trabalho deva ir andando de acordo com as possibilidades. Fazemos tudo o possível para que nossa música chegue as pessoas mas, cada vez mais, compreendo menos qual o “jogo” das plataformas de streaming e das mídias sociais em geral.
14. O que “Aura” representa em sua jornada artística e pessoal?
Estou na minha melhor forma em relação ao instrumento, acredito que o álbum traduza isto.
15. Há novos projetos em mente ou caminhos que você gostaria de explorar após o lançamento deste álbum?
Muitos projetos já iniciando. Um livro sobre violão brasileiro, com exercícios técnicos, composições e arranjos. Um novo álbum com arranjos para violão solo (já em baixo dos dedos) e um álbum utilizando instrumentos que estudo como a guitarra elétrica o contrabaixo e as flautas.
Quero agradecer a oportunidade de compartilhar essas ideias e convido todos vocês a ouvirem o “Aura”. Abraço grande!