1. O que inspirou o conceito do novo EP “Sonhar Mundo Aflora”? Como os sonhos influenciaram o processo criativo de vocês?
A ideia de pesquisar mais sobre os sonhos, que depois se tornou o norteador da criação do nosso novo disco e espetáculo, começou em 2021, quando a gente se deu conta de que a pandemia estava causando uma série de sintomas e consequências. A gente passou por um momento muito duro coletivamente, de isolamento e de dificuldade de criar perspectivas para o futuro. Por isso, quisemos pesquisar sobre o sonhar. Fomos ler alguns livros juntos e começamos também a colecionar algumas referências visuais, estéticas, musicais, além de experiências que tinham a ver com essa temática. Então, o sonho surge como uma resposta a essa desesperança, como um sonhar no sentido de projetar novas perspectivas e futuros, e isso está diretamente relacionado com a infância, como a gente entende a infância cronologicamente. Mas o sonhar também é uma forma de conhecer a realidade usando outros órgãos perceptivos, outras ferramentas da nossa mente, do nosso corpo. Então, é um contato com o mistério, com a poesia, com a magia da vida, e que muitas vezes traz também um sentimento de estranhamento, de espanto, do insólito, que também nos interessavam como materiais de criação, de pesquisa artística.
Então, sonhar surge como uma resposta aos tempos de cuidados com a doença: uma ferramenta de cura e de contato com a força de movimento do desejo, mas também com esse contato com o desconhecido, que tem muito a ver com o que a gente foi desenvolvendo, também durante a pandemia, em relação a nossa pesquisa sobre as infâncias em si.
A gente debateu bastante nessa época sobre o que é a música infantil, o que é arte para as infâncias, o que é infância. Para nós, a infância não é só uma etapa cronológica da vida, mas um território no qual crianças e adultos se encontram, e onde não só existe alegria e pureza, mas também essa força que é estranha e que causa quase um medo, um assombro.
2. Vocês exploram culturas e estilos variados em cada faixa. Como foi o processo de pesquisa e escolha dos elementos culturais para o álbum?
O Mundo Aflora tem esse compromisso com a pesquisa no seu dia a dia. Fizemos juntos um curso de músicas do mundo com o Gabriel Levy em 2018 que foi muito marcante e nos trouxe muitas referências sonoras, além de muitos caminhos de pesquisa. Desde então, trocamos vídeos que são sobre diversos assuntos – canto indiano, dança, referências visuais de máscaras do mundo.
Vínhamos sentindo muita vontade de nos aprofundar mais nesse universo sonoro oriental, mais desconhecido para nós. No curso do Gabriel, conhecemos o Nelson Lin, que gravou a cítara de martelo na faixa “O Gigante”, e o Edgard, que gravou as tablas em “Os Elefantes Nunca Esquecem”.
Além disso, os amigos dos “Chalanes del Amor” também nos inspiram muito a conhecer mais da América Latina, que é tão parecida e também tão diversa em relação ao Brasil. Foi por causa dos Chalanaes que conhecemos uma canção do Pedro Ferrer, artista cubano, chamada “Ay que Bueno”. Essa música foi um grande hino pandêmico, no sentido de ressoar bem, dar quentura no coração. Essa sonoridade inspirou a música “Uma Canção para Orides”. Foi também durante o período de pandemia que fizemos uma live junto com os Chalanes, e que lançamos o vídeo da “La Guacamaya”, batizada no disco como “Guacamaya Araruna”. Em julho de 2023, o Angelo foi ao México para aprender mais sobre o fandango. Então, como disse, a pesquisa está entremeada no nosso dia a dia, até nas férias!
3. A música “Uma Canção para Orides” mistura o samba-chula baiano com elementos cubanos. Como surgiu a colaboração com Ana e Antonia Gomes Minchoni, e como elas influenciaram a composição?
Angelo conheceu a Ana e a Antônia Gomes Minchoni, irmãs gêmeas, em encontros semanais, comunitários e gratuitos de música que aconteciam em uma praça de São Paulo. Os encontros foram uma pesquisa que o Angelo, junto com outras pessoas, fizeram para investigar outras formas de educação e de criação de laços comunitários dentro do espaço urbano. O Daniel Minchoni e a Evelyn, pais da Ana e da Antônia, são poetas, artistas visuais e frequentavam os encontros musicais, junto com as crianças, e traziam muitas contribuições para esse laboratório coletivo.
Um dia, Angelo viu um post nas redes sociais do Daniel, do momento de dormir dessa família: ao invés de ler histórias, como muitas famílias fazem, elas recitavam poemas juntos. Era um vídeo no qual elas recitavam um poema do Paulo Leminski, que chama A Lua Vai ao Cinema. E esse vídeo o emocionou muito, porque era um ritual muito diferente e porque ele tinha recém passado por um momento de muita insônia – que também o ensinou muito. O vídeo encantou e emocionou porque trouxe a importância deste momento de preparo para o dormir, tão importante em nosso dia e em nossa vida.
Foi, neste período de insônia, que ele compôs a canção “O Sono Não Veio”, que gravamos em nosso primeiro álbum, o “Mundo Aflora”. De alguma forma, a pesquisa sobre o sonhar e sobre o sonho começou no fim da criação do nosso primeiro espetáculo, homônimo ao disco, que a gente fecha com essa música. Durante ela, a gente constrói com o público uma teia, um ninho, uma rede: uma trama de sonhos. O final da canção diz “O sono não veio, mas já não importa, pois nesse momento caem cantos, crescem contos, nascem poemas”. Então o tema do sonhar está muito relacionado a essa música e essa música está muito relacionada, também, com a força da presença dessas duas crianças, Ana e Antonia, que participaram, inclusive, da gravação da música.
Anos depois, “Uma Canção para Orides” surge durante uma live no instagram, que era parte de um ciclo de lives que estávamos fazendo sobre a temática do sonhar e dos sonhos. Nela, Ana e Antônia nos ensinaram um jogo poético, baseado em um poema de Orides Fontela, no qual ela troca uma coisa pela outra. Na live seguinte, nós convidamos as pessoas que estavam participando e assistindo as lives a sugerir trocas e fomos criando, ao vivo e de forma conjunta, a letra da canção.
Angelo criou a melodia usando a viola caipira, e compusemos juntos a melodia. Na própria viola ele criou esse riff que lembrava muito o samba-chula baiano, mas também tinha um balanço ali que remetia à rítmica cubana, ao ritmo da salsa, do tango, que nos encantam bastante. A mistura do samba-chula baiano com elementos cubanos é resultado de um olhar que temos em relação às criações do Mundo Aflora, que partem do princípio da troca e combinação de culturas e fazeres musicais de todos os cantos do mundo.
4. Em “Os Elefantes Nunca Esquecem”, há uma fusão de instrumentos brasileiros e indianos. O que motivou essa combinação e como vocês encontraram um equilíbrio entre esses diferentes timbres?
Desde o primeiro álbum buscamos essa fusão, afinal, somos dois músicos brasileiros que estão vendo o mundo por essa perspectiva. Somos apaixonados também pela cultura popular brasileira, seus folguedos, timbres, rítmicas e isso sempre tem que aparecer no trabalho.
Escolher fazer essa mistura, é também uma forma de mostrar como as diferenças podem nos aproximar. A faixa “Os Elefantes nunca Esquecem” já foi composta na viola caipira, baseada em uma escola indiana. Então, desde o nascimento da música, a fusão já estava dada. Sabíamos que gostaríamos de incluir o Sarodi, e as tablas. Quando o Ivan gravou o Sarodi, veio a vontade de colocar também um berimbau, que se aproxima de certa forma dessa sonoridade de corda de aço, e traz elementos afro-brasileiros para a faixa. E o Bruno Prado, nosso produtor, gravou esse pandeiro lindíssimo, com sonoridade grave, fazendo referência ao pandeiro de Marcos Suzano, que marcou nossas vidas no disco feito com Lenine chamado “Olho de Peixe”.
5. O duo mexicano Chalanes del Amor participa da faixa “La Guacamaya Araruna”. Como essa colaboração com artistas internacionais enriquece a narrativa do álbum?
Acreditamos ser muito importante trazer os Chalanes para o álbum, em primeiro lugar porque eles são incríveis, somos realmente muito fãs. Em segundo lugar, pois é muito rico apresentar para crianças a sonoridade que eles trazem em suas criações, com instrumentos característicos do Son Jarocho, como as Jaranas e o Requinto, que são instrumentos de corda tocados muito ritmicamente, e o Marimbol, que é como se fosse uma grande kalimba grave, uma caixa de madeira com teclas de ferro, que tem um som de baixo muito mágico. Além disso, o sapateado, que é também afeito a muitas manifestações brasileiras, como Coco Alagoano ou os trupés do Cavalo Marinho de Pernambuco.
Essa faixa simboliza o encontro entre Brasil e México, Guacamaya e Araruna, que não poderia acontecer sem a sonoridade dos Chalanes del Amor.
6. “O Gigante” inclui instrumentos de várias partes do mundo, como a cítara de martelo chinesa e o ronroco andino. Como vocês selecionaram esses instrumentos para criar uma sensação de viagem global?
A gente quis escolher, primeiro, instrumentos que trouxessem uma característica bem marcante e um estranhamento para os ouvidos, que chamassem a atenção para esse passeio simbólico que o Gigante faz através do arranjo. Então tem o Ronroco, que é um instrumento andino, a voz da Lenna Bahule cantando em uma língua inventada por ela, mas que remete muito à África. Tem também a cítara de martelo, instrumento chinês, fazendo aquela introdução bem misteriosa; o Sarod, instrumento indiano que aparece também em “Os Elefantes Nunca Esquecem”, além dos metais, trombone e trompete, que trouxeram esse clima dos Balkans. Então é como se esse gigante estivesse passeando por diferentes montanhas e cordilheiras ao redor mundo. Fomos intencionalmente trazendo contrastes e intervenções interessantes para a sonoridade final da faixa, misturando, contrastando e experimentando a combinação de diferentes matrizes culturais, instrumentações, ritmos e gêneros musicais.
Além disso, a seleção de instrumentos não tão convencionais e de várias partes do mundo fez parte de um desejo nosso de dar uma cara bem diferente para essa música que já tem algumas versões lançadas, principalmente com o grupo Tiquequê, do qual Angelo foi integrante até 2016. A canção já é muito conhecida pelo público infantil e se tornou um clássico, uma música que muita gente já escutou mais de uma vez. Então construímos um arranjo que traduzisse a identidade do Mundo Aflora, que é muito baseada nessa pesquisa sobre diferentes culturas e fazeres artísticos.
7. Vocês mencionam que “Sonhar Mundo Aflora” é voltado para todas as idades, mas com um foco especial no público infantil e juvenil. O que esperam transmitir a esse público específico?
O sonho é uma forma de sair de si e conhecer uma realidade nossa mais invisível. Para os Yanomami, o sonho é uma ferramenta muito poderosa de conhecimento da realidade e nós acreditamos que é essencial que as crianças, jovens e adultos respeitem, valorizem e celebrem a diversidade de perspectivas sobre a realidade. Nós entendemos as culturas como frutos destas perspectivas e acreditamos ser essencial que as crianças e jovens, principalmente, aprendam que a multiplicidade das maneiras de enxergar o mundo é algo positivo, que serve e enriquece a vida.
Nós acreditamos que, para sonhar, é preciso sair da gente, conhecer e entrar em contato com o desconhecido. É uma tarefa de toda a sociedade, especialmente dos adultos, mostrar para as crianças e jovens que existe muita coisa desconhecida e diferente, e que a diversidade de culturas e visões de mundo deve ser celebrada.
8. O formato físico do EP traz um pôster com ilustrações e atividades de origami. Como surgiu a ideia de integrar as artes visuais e o origami ao álbum?
Vivemos hoje uma forma muito diferente de consumir música, na era dos streamings e das playlists, onde pouco se valoriza um disco como uma obra que tem sua ordem de músicas pensada e onde sua apresentação física complementa a mensagem que o artista busca passar. Como não lançaremos o disco em formato físico, mas viabilizamos o trabalho por meio de um financiamento coletivo, pensamos que seria interessante ter algo que as pessoas pudessem ver, ler, interagir – além de ouvir. O Mundo Aflora tem um amor pela manualidade, e por isso veio a ideia dos origamis. O nosso primeiro disco também tinha uma proposta interativa e resolvemos seguir nessa aposta.
A Talita Nozomi já tinha colaborado com a gente antes, além de ser uma grande amiga de infância, que faz tudo com muito primor e beleza. Ela tem uma grande pesquisa em origamis, com livros que sua avó trouxe do Japão. Não tinha outra pessoa que fosse mais perfeita para a criação desse formato físico! Fizemos uma primeira conversa com ela e fomos mandando as faixas para ela escutar, desde as guias até elas irem ganhando mais vida. A ideia foi pensar em um origami que representasse cada faixa.
O resultado ficou belíssimo e traduz, em imagem, a complexidade e diversidade que construímos nas músicas. Cada vez que você escuta as músicas, consegue perceber novos detalhes. Cada vez que você olha para o encarte, consegue perceber novos elementos.
9. Em “Sonhar Mundo Aflora”, vocês combinam música, artes visuais, dança e teatro. Como cada uma dessas linguagens contribui para a mensagem e experiência que o álbum deseja transmitir?
O Mundo Aflora é, por essência, um projeto que combina diferentes linguagens expressivas. Isso acontece devido à nossa formação como artistas, que contempla o contato e desenvolvimento em diferentes linguagens, como o teatro, as artes visuais e a dança. Além disso, nós concordamos que a fragmentação das linguagens expressivas não acontece na infância. Muitas vezes o que é feito para as crianças cantarem e dançarem é a mesma coisa. Elas dançam desenhando e podem desenhar dançando. Então, esse borrar das fronteiras entre as linguagens expressivas é parte da nossa natureza artística e da nossa concepção sobre a cultura da infância. Uma das mensagens e experiências que desejamos transmitir com este trabalho é sobre a grandeza e a beleza desse mundo diverso e complexo em que a gente vive.
10. Vocês consideram a música como ferramenta de educação e transformação. Como a diversidade cultural presente nas faixas pode contribuir para a formação de um público mais consciente e aberto ao novo?
O Mundo Aflora busca trazer para o público essa sensação de viajar sem sair do lugar. E todo mundo gosta de viajar! Em uma viagem, podemos conhecer outras culturas, ver novas paisagens, sentir novos cheiros, ver outras formas de vestir, falar, agir. O diferente é encantador. A diferença causa uma vontade de aproximação, não de repulsa.
Ainda na ideia da viagem, ela nos transforma. Quanto mais sabemos do outro, mais sabemos sobre nós.
Então, o que o Mundo Aflora quer com as fusões sonoras, é que o público se reconheça nas diferenças e se entenda, se enxergue, enquanto humanidade que é diversa e muito rica.
11. Com a produção de Bruno Prado e Caê Rolfsen, quais foram os principais desafios e aprendizados no processo de criação do EP?
Esse foi o segundo álbum do Mundo Aflora, e o segundo álbum que gravamos em parceria com o Bruno e o Caê, pois, além de gostarmos muito deles como pessoas, como amigos e admirá-los artisticamente, também gostamos muito do resultado sonoro do primeiro álbum. Somos duas duplas – cada uma com a sua dinâmica própria de funcionamento, de pensamento e de ação – que tiveram que encontrar uma forma comum de operar. Isso já foi um grande aprendizado!
Os desafios foram se apresentando no processo. Por exemplo, como criar sonoramente essa narrativa das andanças do Gigante, mantendo uma boa base que trouxesse também um tanto desse universo que remete a uma criatura como um gigante? Então os graves foram muito trabalhados, ficou uma faixa de muitas camadas que tecem essa paisagem e que exigiu muito trabalho dos produtores para editar e mixar. O fato dessa música ser uma regravação e, nesta versão, termos a preocupação de imprimir uma linguagem do Mundo Aflora, também foi bastante conversado e trabalhado durante o processo da faixa.
“La Guacamaya Araruna” também foi desafiadora no sentido de trazer o som tradicional de um folguedo que não é brasileiro, e que o Bruno foi descobrindo, por exemplo, maneiras de timbrar os graves do marimbol e de inserir percussões brasileiras de maneira harmônica, resultando neste encontro de culturas.
Criar um álbum é um processo repleto de desafios e aprendizados, que nos impulsionam para frente e enriquecem enquanto artistas e seres humanos.
12. “Sonhar Mundo Aflora” propõe uma reflexão sobre encontros, reais e imaginários. Que tipo de encontros e conexões vocês esperam que o público vivencie ao ouvir este trabalho?
A gente espera que as pessoas vivenciem, acima de tudo, o encantamento. Nós somos muito encantados pela pesquisa que o Mundo Aflora desenvolve desde a sua concepção, sobre sonoridades e expressões das diversas culturas do mundo. Nos fascina a vastidão e o infinito que é a criação cultural dos seres humanos.
O mundo dos sonhos é parte essencial dessa criação e dos encontros que a cultura proporciona. Nós acreditamos que o encontro do público com a obra artística pode ser muito marcante e especial se for regado por esse encantamento.
13. O que vocês planejam para o futuro do projeto Mundo Aflora? Podemos esperar novos lançamentos ou projetos colaborativos?
Nós estamos trabalhando em nosso novo espetáculo, que terá o mesmo nome do disco, “Sonhar Mundo Aflora”. Já estamos em processo criativo e buscando maneiras de financiar este trabalho. Então vocês podem esperar um espetáculo novo e a continuidade do trabalho de pesquisa, criação e reinvenção de músicas que fazem parte do repertório das infâncias de diversos povos e tradições do mundo. Ou que não fazem parte desse repertório chamado de infantil, mas que de acordo com a nossa visão de infância podem compor essa pesquisa. Para além do novo espetáculo, dá para esperar também a continuidade dos nossos projetos de formação de professores, dos nossos projetos de oficinas e vivências, como as cantorias e o Brincando o Mundo Aflora, que trazem um pouco do repertório de canções das infâncias, das mais diversas localidades e tradições, que nós pesquisamos ininterruptamente. E quem sabe, num futuro breve, mais uma música se torne livro ou a gente lance um livro com texto inédito…