Entrevista: Vanessa Aragão, jornalista, cineasta e pesquisadora 

Entrevista: Vanessa Aragão, jornalista, cineasta e pesquisadora 

1. Qual foi o principal impulso por trás da decisão de escrever este livro em homenagem a Letieres Leite e sua Orkestra Rumpilezz?

O principal impulso foi pesquisar e escrever sobre algo que me inspirasse ao ponto de não abandonar o mestrado, no qual, eu estava com a saúde mental abalada e por isso, pensava em desistir. Então, poder pesquisar junto a uma bibliografia acadêmica algo que representasse uma interseção tão valiosa pra mim entre a música afro-brasileira e o jazz, como é o caso da Rumpilezz, me motivou a fazer esse processo da dissertação até o final e que agora se transforma em livro.

2. Como foi a transição do seu projeto de mestrado original para a pesquisa sobre a Rumpilezz? Quais foram os eventos ou experiências específicas que a levaram a essa mudança?

Estava com um projeto que analisava a trilha sonora de filmes baianos que tinha como base a música afro-brasileira. Estava a ponto de abandonar o mestrado em Cachoeira, na UFRB, no qual eu estava com a saúde mental abalada. Então, quis algo que me aproximasse e me motivasse. E Letieres Leite e a Rumpilezz me motivaram a isso. O grupo de pesquisa sobre música, o MUSPOP, das professoras Nadja Vladi e Tatiana Lima, me deu bastante apoio durante esse processo, e a fala de um professor de que essa ideia de projeto poderia virar uma publicação foi a cereja do bolo pra mim.

3. Você mencionou que desenvolveu um relacionamento próximo com Letieres Leite e sua equipe ao longo dos anos. Como essas experiências pessoais influenciaram sua abordagem na escrita do livro?

Sim, fui e sou próxima em relação ao trabalho mas também pessoalmente do Leti e da equipe da Rumpilezz. Eles abriram as portas da alma daquele projeto pra mim, me abraçaram muito mais do que uma profissional. O projeto todo e a equipe da Rumpilezz traz esse sentido mesmo, esse abraço, cuidado, como se fosse um terreiro, ou seja, um local de abraço e cuidado coletivo. Então, na minha escrita do livro, eu narro muitos momentos que andei pelos camarins, além das análises teóricas. Então essa minha proximidade, esse campo aberto e fluído entre eles contribuiu e muito para isso.  

4. Qual é o papel da música afro-brasileira na construção da identidade cultural, tanto na Bahia quanto no Brasil como um todo, e como a Orkestra Rumpilezz contribui para essa narrativa?

Para mim, a música afro-brasileira é base cultural da nossa terra, do nosso país. Ela vem dos terreiros, que são esses espaços sagrados e de sobrevivência da cultura negra do Brasil. Como dizia Letieres, a música afro-brasileira é base da música brasileira. Então a música afro-brasileira é também base da nossa identidade cultural, sobretudo em Salvador, que é berço desde sempre. Ela nos fornece sabedorias vindas desses locais-matrizes e, sendo assim, ela traz essa substância com ela. A Orkestra Rumpilezz é um farol de novos tempos musicais. Ao trazer os atabaques e percussionistas para frente, para local de destaque do grupo, trazendo também o protagonismo negro, Letieres, seu criador, trouxe essa valorização, esse devido reconhecimento de quem sempre fez a base, inclusive da nossa sociedade e da nossa cultura, que são as sabedorias e símbolos afro-brasileiros, para frente. Isso, aliado às suas sofisticadas criações musicais fazem a fusão excepcional do grupo, colocando-os em um local de primor musical e artístico ao mesmo passo que reverencia o povo preto de candomblé, afinal os atabaques são os símbolos dessa religião.

5. Além das suas memórias afetivas e experiências nos bastidores, que tipo de pesquisa adicional você conduziu para informar este livro?

No livro, eu discorro sobre a performance do grupo e a construção de uma sensibilidade afro-brasileira produzida por eles. A performance é trazida neste estudo a partir dos conceitos da autora mexicana Diana Taylor no livro “O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas”. Utilizo a performance como episteme, ou seja, como fator que se dá a conhecer algo; assim como os atos de transferência vitais, o arquivo e repertório e a transculturação, conceitos que ela desenvolve na obra. A partir disso construí esse caminho da performance e dividi ela em tópicos que estruturavam a Orkestra: nomenclatura, elementos vindos dos terreiros; protagonismo negro; o maestro que dança, etc, para desenvolver a análise do grupo. A sensibilidade afro-brasileira veio por meio da minha leitura do Pensar Nagô, livro do autor baiano Muniz Sodré, que traz o pensamento teórico-conceitual, vou falar aqui de uma forma geral, de como seria estruturada nossa sociedade e nosso pensamento filosófico se eles se baseassem nas sabedorias vividas e apreendidas nos terreiros de candomblé, esses espaços sagrados de resistência africana desde seu início. Como seria nossa sociedade se fôssemos baseados nisso e não no pensamento filosófico branco-europeu? Então, peguei isso para analisar como a Rumpilezz cria uma sensibilidade através da performance.  

6. Pode compartilhar conosco alguns dos aspectos mais interessantes que descobriu durante sua pesquisa sobre a performance e a sensibilidade afro-brasileira da Orkestra Rumpilezz?

Acho que o mais interessante de tudo foi eu conseguir sistematizar todas as sensações que tive com o grupo desde a primeira impressão: que eles trazem a base da tradição da música afro-brasileira, une-a com outra musicalidade da diáspora negra, o jazz, e cria uma atualização sofisticada e pop dessa fusão maravilhosa.

7. Como você descreveria a abordagem da Rumpilezz em fundir elementos da música afro-brasileira com estruturas de big band de jazz? E qual é a importância dessa abordagem na cena musical contemporânea?

É uma fusão estrutural, no formato do grupo, com os instrumentistas de sopro e os percussionistas, e a fusão da musicalidade, trazendo a base criativa dos terreiros com o jazz e criando melodias e dinâmicas musicais que, para mim, tocam os céus. É a união do que eu acho de melhor no mundo, união de musicalidades vindas da diáspora africana de dois países diferentes. Vários grupos já fizeram essa fusão, não é mesmo? Mas acredito que a Rumpilezz conseguiu incorporar em toda a performance, desde o seu nome, no formato dos instrumentistas no palco, na musicalidade e composições, nos atabaques na frente do palco, nos percussionistas em traje de gala na frente, nos músicos de sopro usando All Stars. O cosmo total desses vários elementos coloca a Rumpilezz num patamar de excelência entre a música afro-brasileira e pop mundial, tornando-os únicos.  

8. O livro inclui uma entrevista exclusiva com o percussionista Gabi Guedes. O que os leitores podem esperar dessa entrevista e como ela complementa o conteúdo do livro?

A entrevista do Gabi sedimenta muitas das minhas análises. Ele conta desde como foi convidado a entrar na Orkestra, como é para ele determinados elementos ali, explica as construções rítmicas, fala sobre curiosidades, enfim, a entrevista dele é mais um elemento que serve de base para as análises feitas no decorrer da obra.

9. Considerando sua experiência como cineasta e jornalista, como você abordou a linguagem fotográfica e audiovisual ao documentar a jornada da Orkestra Rumpilezz?

Eu trouxe na minha escrita uma espécie de narrativa cinematográfica, ao descrever cenas como se fosse um roteiro de um filme mesmo. E acho que isso torna minha forma de escrita mais próxima e não um mero trabalho acadêmico apenas baseado em conceitos e teorias de autores.

10. Por fim, como você espera que este livro contribua para preservar o legado de Letieres Leite e para promover uma maior apreciação da música afro-brasileira e instrumental?

Eu quero muito que o legado, idealizações, sabedorias e criações do maestro Letieres Leite continuem vivas, sendo debatidas, promovidas, pesquisadas, difundidas pelos quatro cantos. Acho que ainda há muitas coisas a serem reverenciadas, apreendidas e difundidas sobre isso. Letieres revolucionou e trouxe atualizações sobre nossa musicalidade. Então espero que o livro também sirva como novos pontos de partidas para debates, pesquisas, para valorizar seu legado e para se pensar sobre a própria música instrumental afro-brasileira na atualidade como ferramenta de reconhecimento histórico e cultural.

marramaqueadmin

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