Entrevista: Lúcia Nascimento, escritora

Entrevista: Lúcia Nascimento, escritora
  1. Seu livro de estreia em prosa longa foi descrito como um “romance-pergunta”. O que significa, para você, escrever a partir dessa ideia de indagação sem respostas definitivas?

Quando formulamos respostas, o final está dado. Não há mais para onde ir. Quando pensamos em perguntas, quando tudo está em aberto, contemplamos possibilidades. E é isso o que me interessa: esse é meu modo de entender o mundo, de criar esteticamente, de escrever literatura. No romance “Aqui, Ontem”, que está sendo lançado pela Editora 7Letras, tento trazer os leitores e leitoras para dentro da experiência da protagonista: ela vive o luto pela perda da mãe adotiva, está imersa nas repetições que um momento como esse causa, e é nesse cenário que ela se questiona sobre tudo que nunca chegará a saber sobre a própria vida. Meu desejo é que, mesmo quem nunca viveu uma perda dessa magnitude, consiga se conectar com o que é vivenciado, experimentado e sentido pela protagonista. A ficção, assim, não deixa de ser uma tentativa de resposta, uma tentativa de preencher os vazios que ela no fundo sabe serem impossíveis de preencher.

  1. A obra nasce da experiência pessoal do luto pela perda da sua mãe. Como foi transformar essa dor íntima em matéria literária?

Depois da morte da minha mãe, escrevi muitas vezes em diários e em pedacinhos de papel que acabavam espalhados pela casa. Mas o luto causa uma desconexão muito grande com o mundo ao redor. Então, nos primeiros meses, eu não conseguia ler ou escrever nada que fosse minimamente elaborado. Foi só depois de lidar com meu próprio luto que consegui retomar a escrita do romance. Mas, ao escrever a história da Alice, foi inevitável reviver partes da minha própria história, já que o sentimento ali era o mesmo vivenciado por mim. Apesar de “Aqui, Ontem” não ser um romance autoficcional, emprestei para a Alice sensações e vivências que são também minhas.

  1. No romance, Alice busca preencher os vazios de sua própria história. Até que ponto esse mergulho da personagem dialoga com sua própria reflexão sobre memória e identidade?

Não gosto da palavra identidade, porque ela me leva a pensar em algo fixado no tempo e no espaço, algo fechado e acabado. Prefiro usar a palavra identificação, que me remete a algo mais fluido, aberto, em processo. E Alice está em processo. A escrita dela, na obra, é a escrita desse processo. Ela se percebe em um momento-limite, ela sabe que começa a caminhar em direção a algo que ainda não conhece, mas há nela um desejo irrefreável de recuperar o movimento após os momentos paralisantes do luto. E se ela precisar criar histórias para reescrever ou preencher seus vazios, aquilo que não existe em sua memória, ela fará isso.

  1. Você também aborda a questão da adoção, inspirada pela sua relação com sua irmã. Como essa vivência pessoal ajudou a construir a trama de Alice em busca da mãe biológica?

Minha irmã nunca conheceu a família biológica dela. Mas, se eu tivesse sido adotada, imagino que não conseguiria viver sem realizar uma busca como a de Alice, sem ao menos tentar conhecer as histórias que também fariam parte da minha vida, ainda que por um momento limitado da infância. Talvez o que a Alice mais tenha da minha própria vivência é o desejo de conhecer as histórias de quem a rodeia, de conhecer mais sobre a própria história, de inventar o que não é possível saber. O que nos une, autora e personagem, é a própria ficção.

  1. A estrutura fragmentada e em camadas reflete o próprio processo de luto. Como foi encontrar a forma narrativa adequada para falar de ausências?

“Aqui, Ontem” teve muitas versões antes da que foi impressa. As personagens já tiveram outros nomes, a narradora nem sempre foi a Alice, em algumas das versões era a irmã dela quem contava a história. Mas desde o início estruturei a narrativa com uma mescla de temporalidades, porque é assim que vivencio o trauma e o luto, como ausências presentes, como um passado que não passa. Para mim, não fazia sentido contar a história de modo linear, porque não é assim que um período como o do luto é vivido. A fragmentação e a construção em camadas, além das repetições, eram necessárias para a tentativa de fazer quem lê também se sentir imobilizado, como se vivesse o luto no próprio corpo.

  1. O romance contrapõe “aqui” e “ontem”. O título sugere uma tensão entre presença e passado. Poderia comentar como essa dualidade atravessa a obra?

Não é bem uma dualidade: aqui e ontem são partes de um mesmo todo. Como se um fosse o avesso do outro. A tentativa (impossível) de Alice é de se movimentar no espaço (o aqui) para encontrar um outro tempo (o ontem). Então é como se aqui e ontem fossem duas faces de uma mesma realidade. E isso faz sentido na narrativa porque, em uma vivência de luto, os tempos de presente e passado parecem mesmo se confundir. É muito fácil voltar para a experiência da dor e revivê-la como se ela estivesse acontecendo de novo no tempo presente.

  1. A crítica de Wilson Alves-Bezerra fala de uma Alice que cai na “toca do coelho da vida adulta”. Como você enxerga essa releitura da figura literária de Alice, agora em confronto com perdas, traições e perguntas sem resposta?

Minha Alice e a Alice do Lewis Carroll se aproximam porque as duas, de certo modo, questionam tudo o que viveram até o momento em que “caem na toca do coelho”. No texto clássico, a Alice questiona suas vivências anteriores ao ser confrontada com o absurdo de suas aventuras. A Alice de “Aqui, Ontem” questiona quem ela mesma era, antes das perdas, e quem ela pode ser, depois de tudo. As Alices das duas obras têm idades muito diferentes, mas ambas estão vivendo momentos de ruptura, depois dos quais não é possível voltar a ser quem se era antes.

  1. Em Aqui, Ontem, o vazio também é personagem. Como foi trabalhar a linguagem para dar corpo ao silêncio e às ausências? 

Falar sobre histórias não contadas é falar sobre silêncios, sobre ausências, sobre vazios. Se Alice ficcionaliza as histórias que não conhece, é também a própria narrativa que aos poucos apresenta seus vazios e silêncios e ausências. Se não há respostas, as perguntas também podem mudar, e a cada pergunta diferente novas possibilidades se abrem. A linguagem da obra foi pensada para criar essa sensação. Eu quero causar desconforto em quem lê. É o desconforto que nos faz buscar o movimento, é o que nos faz sair da paralisia.

  1. Sua formação em Teoria Literária e Literatura Comparada influenciou o processo criativo? Houve diálogo entre a pesquisa acadêmica e a escrita do romance?

Na minha experiência, o processo de pesquisa foi fundamental para a escrita do romance. No mestrado, estudei a obra da Elvira Vigna, uma das escritoras brasileiras contemporâneas que mais admiro. A obra dela é complexa, e adentrar aquela escrita me fez entender os meandros da construção de um romance, as possibilidades de tratar o tempo e o espaço de modos pouco convencionais, de criar personagens que não vão viver grandes aventuras, mas lidar com a angústia do dia a dia. Não tenho dúvidas de que, sem a experiência como pesquisadora, meu romance teria camadas a menos. E, para mim, essas camadas de construção e interpretação são o que mais gosto naquilo que leio e escrevo. Uma influência grande foi sobre o modo de lidar com o tempo no romance. Eu queria ralentar o tempo, diminuir a velocidade da narrativa, dar a sensação de um tempo que não passa, que é o tempo do luto e do trauma. E o estudo da obra da Elvira, que faz isso a todo o tempo, me ajudou muito a entender como escrever para produzir essa sensação. 

  1. Você vem de um premiado livro de contos (Ruínas). O que mudou em sua escrita e no seu olhar ao transitar do conto para o romance?

A experiência de escrita dos dois livros foi bastante distinta. O romance exige um fôlego maior, porque são muitos meses ou anos (no meu caso foram anos) convivendo com os mesmos personagens, com suas idas e vindas no tempo e no espaço. Nos momentos de escrita, tudo foi muito intenso: eu acordava no meio da noite precisando escrever, depois de já ter escrito um dia inteiro, porque de repente encontrava alguma solução para problemas que a narrativa me apresentava. Já os contos exigem uma convivência menor com cada personagem, talvez seja uma escrita mais saudável (risos).

  1. O romance fala de memórias que morrem com quem se vai. Para você, a literatura é um meio de preservar ou reinventar essas histórias?

Eu entendo a memória como uma criação de narrativas. Não lembramos o que aconteceu, mas o que ficcionalizamos daquilo que aconteceu. Por isso, tantas vezes, nos vemos em embates em que cada pessoa se lembra do mesmo fato de modos bastante distintos. Pra mim, a literatura é a possibilidade de criar novas histórias, de criar vidas que nunca chegarão a existir fora do papel ou da imaginação de quem escreve e de quem lê.

  1. Que impacto espera que Aqui, Ontem cause nos leitores? Que tipo de diálogo deseja estabelecer com quem atravessa o luto ou vive suas próprias ausências?

Meu desejo é que, mesmo quem nunca viveu uma perda dessa magnitude, consiga se conectar com o que é vivenciado, experimentado e sentido pela protagonista. Para quem já passou por um processo de luto, talvez a história possa ser uma prova de que não estamos sozinhas, mesmo quando ninguém mais pode saber exatamente o que estamos sentindo. E mais do que tudo: não existem certezas. Tudo pode mudar a todo o tempo. Nós não sabemos quase nada, mas o movimento um dia volta a acontecer. Um dia, a paralisia do luto diminuiu. Enquanto isso, sempre existe a ficção.

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