1. Como começou sua jornada na música? Quais foram suas primeiras influências musicais?
Eu cresci numa família de artistas que por diversas razões não praticavam sua arte. Depois de mais velhos, meu pai passou a fazer música e minha mãe a desenhar e pintar, mas acho que durante o começo da minha vida esses desejos não realizados de ambos me influenciou sem nenhum de nós saber.
Ambos sempre ouviram muita música em casa, meu pai puxando mais pra música eletrônica e minha mãe pro rock, música brasileira, disco e funk americano. Eu fiz aula de piano quando pequena e cheguei a tocar baixo no começo da adolescência, mas até hoje eu tenho dificuldade com instrumentos, não sou a pessoa mais coordenada do mundo.
Logo depois descobri o canto e fui fazer aulas, e foi aí que eu encontrei uma válvula de escape pra criatividade e expressão com a qual eu me sentia muito livre. Acabei indo pro lado do canto lírico nas aulas de voz que eu fazia, mas ao mesmo tempo tinha banda de metal progressivo com amigos, onde a gente tocava covers de Rush, Dream Theater, entre outros (vai saber se bem, não temos vídeos da época e éramos uns pirralhos), mas desde então sempre tive esses mundos musicais diferentes que eu tentava conciliar de alguma forma.
2. O que a levou a misturar o jazz com a música brasileira? Como essa fusão impacta seu som?
Nunca foi uma decisão consciente misturar música brasileira e jazz, mas acho que assim como os mundos do canto lírico e do metal progressivo da minha adolescência, os dois fazem parte do meu DNA e acabam transparecendo na minha produção.
Cada vez mais eu vejo que me encontrar no meio de mundos diferentes é uma constante na minha vida, seja entre estilos, países, idiomas ou disciplinas artísticas diferentes, como a música e a fotografia, ambas fazem parte da minha vida em quantidades diferentes há muito tempo.
3. Como você constrói suas músicas? Você compõe primeiro as letras ou parte do instrumental?
Cada caso é um caso. Tem uma ideia que eu gosto muito que se usa pra ensinar songwriting que seriam “sementes musicais”, numa tradução aproximada. E a ideia é que o compositor coleciona essas sementes e tem que estar sempre ligado pra quando elas aparecem por aí poder colecionar elas, seja num caderno ou no app de gravações de voz do celular.
Essas sementes podem ser palavras que vão virar o título ou parte da letra de uma música, podem ser pedaços de melodias, acordes, ou mesmo um conceito mais abstrato do que a música vai expressar depois de pronta. E com essa ideia das sementes, eu sinto que sempre tenho vários pequenos vasos com mudinhas crescendo, algumas podem passar anos guardadas até voltarem a receber sol, água e fertilizante, mas quando o processo flui bem a impressão que eu tenho é que elas decidem mais do que eu qual vai ser a ordem dos elementos compostos.
4. Em “Resilience”, você aborda de maneira muito pessoal a superação, incluindo sua luta contra o câncer. Como essa experiência impactou sua música e sua arte?
Em muitos sentidos eu sinto que ter tido essa experiência foi parte do que me fez decidir me dedicar à música em tempo integral. Foi um encontro com a realidade de finitude e mortalidade que estamos tão acostumados a ignorar na nossa cultura, apesar de ser a única certeza que todos temos. E fez com que eu me desse conta de que se eu morresse amanhã, independente da causa, um dos meus maiores arrependimentos seria não ter me dedicado 100% a isso que eu tanto amo.
Eu tinha muito medo de escrever minhas próprias músicas, e pra mim até aquele momento tocar covers ou composições de outras pessoas num contexto de música clássica era um jeito de me expressar mas ao mesmo tempo me esconder, então a ideia de compor era algo muito vulnerável e assustador.
Eu escrevi parte da minha primeira música dentro da sessão de quimioterapia, porque eu sentia que precisava tomar alguma atitude. Dez anos depois, eu sigo corrigindo o percurso, mas aquele primeiro passo no escuro de decidir que tinha que escrever foi muito importante.
5. Você sente que sua música tem um papel de conectar emocionalmente com as pessoas? Como isso se reflete em suas letras?
Eu escrevo sobre o que eu eu tô sentindo. Sinto que se eu tentar escrever pensando no que os outros vão pensar ou sentir eu me bloqueio um pouco. Mas depois que tá no mundo, se pelo menos uma pessoa escutar o que eu escrevi e se sentir um pouquinho melhor, um pouquinho mais conectado com o mundo, um pouquinho mais compreendido, eu considero a missão cumprida.
6. Quais artistas você considera suas maiores inspirações na música brasileira e no jazz?
Nossa, são tantos. Eu cresci com a minha mãe ouvindo muito Novos Baianos, Mutantes, Marisa Monte, Gal Costa. Ela também tinha alguns artistas mais do lado do jazz na rotação, como Dave Brubeck, apesar de eu ter começado a me aprofundar mais no jazz um pouco mais tarde.
Eu costumo me espelhar mais em nomes do jazz contemporâneo que também fazem essas pontes entre mundos musicais diferentes como a Gretchen Parlato, o Kamasi Washington, o Tigran Hamasyan, o Brad Mehldau e a Esperanza Spaulding, pra citar alguns exemplos.
7. Em “Conversa Fiada”, você traz um viés crítico sobre a superficialidade. De onde vem essa preocupação social nas suas letras?
Eu concordo com quem diz que tudo que a gente faz na vida, por ter um impacto direto ou indireto no mundo à nossa volta, é um ato político. Com esse entendimento a gente pode se deixar à mercê do que esse impacto vai ser, ou pode tomar as rédeas e colocar mais intenção em como as coisas vão ser abordadas. Eu escolho sempre o caminho de colocar essa intenção em tudo que eu faço, e a música é um reflexo disso.
8. Você consegue transitar entre o jazz, MPB e outros estilos com tanta facilidade. Como você enxerga essa versatilidade em sua carreira?
Fico feliz que pareça fácil, hahaha. Antes de focar na minha carreira com música autoral, eu toquei bastante desses estilos em eventos ou com outros músicos e bandas. Meio naquela ideia de “você é o que você come”, mas nesse caso o que você toca. Acho que se eu tentasse transitar por estilos com os quais eu não me identifico genuinamente não daria muito certo. Minha percepção do que eu tô fazendo não é tanto como se eu estivesse olhando pra um mapa e decidindo que quero ir do ponto A ao ponto B portanto devo seguir
esse caminho. É mais a de que eu tô tateando no escuro tentando coisas diferentes, e acabando parar nesses lugares.
9. Qual é a mensagem que você quer transmitir com essa balada? Como foi a criação dela?
Eu escrevi “I See You” depois de uma conversa com uma amiga. A gente tava falando sobre experiências negativas dos nossos passados e como elas tinham nos impactado. E uma das coisas de que a gente se deu conta foi que o que faz com que uma experiência negativa vire traumática não é só o acontecimento em si, mas o fato de a gente estar tão sozinho enquanto passa por ela. Mesmo com outras pessoas fisicamente presentes no momento. O que acentua a solidão ainda mais.
Essa experiência que eu e a minha amiga proporcionamos uma à outra, essa capacidade de estar com a outra pessoa desse jeito tão simples mas tão impactante mexeu comigo. I See You foi uma tentativa de criar uma música que proporcionasse isso, em alguma medida. Eu não sei se eu tive algum sucesso, e claro que cada pessoa que entra em contato com uma música vai perceber ela de uma maneira diferente. Mas a intenção tá lá.
10. Quais são seus planos para 2025? Como a parceria com Zabelê está moldando sua carreira?
Ter conectado com a Zabelê foi uma das coisas mais incríveis que podia ter acontecido pra minha carreira. A visão e a experiência que ela tem do mercado musical é impressionante. Tanto pela experiência dela de ter crescido nesse meio, quanto pelo mérito dela como artista e de ter aprendido demais fazendo a gestão da própria carreira. Ela é uma daquelas pessoas que escolheu uma profissão que espelha exatamente os talentos naturais que ela tem. Tem pessoas que o autor Malcom Gladwell chama de “conectores”, e ver a mente dela em ação sempre me faz pensar nisso, ela é um exemplo perfeito dessas pessoas que têm esse talento.
Correndo o risco de elogiar além da conta, ela também tem uma generosidade enorme e é daquelas pessoas que não só deixa a escada que já subiu posicionada pra quem vem atrás dela, mas ajuda e orienta a cada passo da subida. Se pode parecer que eu tô exagerando, é só pela gratidão que eu sinto em poder contar com isso tudo.
Em 2025, o plano é lançar mais singles inéditos que e em breve serão seguidos de um álbum. Eu também tô trabalhando em composições novas e algumas versões de músicas conhecidas, mas com a minha linguagem. Vem coisas muito legais por aí!
11. Quais elementos do jazz você mais valoriza em sua música? E como esses elementos dialogam com as tradições da MPB?
Tem muitos elementos diferentes, mas um exemplo é o empréstimo modal, que não é algo que tá só no jazz, muito pelo contrário. Depois de aprender mais teoria eu passei a analisar músicas e estilos que eu sempre gostei e que são considerados mais simples (tipo o grunge, por exemplo) e ver que eles usam muito disso, especialmente em algumas das partes que mais me interessavam nas músicas.
Uma maneira de explicar sem entrar muito na parte mais técnica é que a música ocidental costuma usar algumas escalas mais do que outras, e independente de a gente ter estudado teoria musical, os anos de escuta de música fazem com que a gente saiba essas regras intuitivamente. E esse mecanismo de composição subverte essas expectativas e trás cores inesperadas pra música.
12. Como você vê a colaboração com Rodrigo d’Sales para a estratégia digital e o alcance internacional?
É um privilégio enorme poder contar com a experiência do Rodrigo através da Musikorama na parte da distribuição, estratégia e alcance internacional. A visão dele da indústria musical como um todo é muito legal de ver, sinto que aprendo muito com ele a cada vez que a gente conversa. E além de tudo ele é uma daquelas pessoas incríveis da área que consegue sacar muito do lado mais seco e objetivo desse mundo sem perder a alma e a arte por trás.
13. O que os fãs podem esperar do seu próximo álbum? Há algum tema ou estilo que você está explorando mais a fundo?
O fio condutor do álbum é não ter um fio condutor. Ele é o resultado do meu trabalho com o João Vitor Costa Dias, que se formou comigo na Berklee College of Music e assinou os arranjos, a co-produção comigo e tocou bateria. Essa parceria iniciou quando gravamos só voz e piano em uma composição dele chamada “Recomeçar” que foi lançada de maneira independente, e vai estar presente no álbum com uma roupagem diferente.
Depois desse primeiro trabalho juntos eu fiquei tão feliz com o resultado e com o trabalho dele que convidei ele pra ser diretor musical do meu recital de formatura na Berklee. Como eu tinha muitas composições com estilos diferentes, decidimos abraçar esse caos musical e explorar muitos lados diferentes.
Esse álbum foi o resultado de ter esse trabalho ensaiado pro recital, decidimos ir pro estúdio com os músicos que estavam trabalhando conosco e registrar tudo aquilo, foi tudo muito orgânico. E eu sinto que esse lugar que acabamos chegando tem um mérito enorme, se a gente tivesse planejado um álbum como objetivo final o resultado teria sido bem diferente. E eu amo esse lugar onde todos aterrissamos juntos.
14. Como as referências literárias e poéticas influenciam suas composições?
Eu sou da teoria de que tudo que a gente vive, das coisas boas às tragédias, dos filmes e livros que nos movem aos panfletos achados no chão, aos filmes e livros que a gente odeia, tudo isso se mistura pra moldar como.
15. Na sua opinião, para onde a música brasileira está indo? Como você quer contribuir para esse cenário?
A música brasileira, assim como no mundo inteiro, tá ficando cada vez mais nichada. Como a a gente não consome mais só três canais de TV e algumas rádios, tem espaço pra muitos outros artistas e estilos encontrarem seus públicos, o que eu acho maravilhoso. Além de muito mais pessoas terem acesso a equipamento e softwares de produção. Então é um boom de produção, o que faz com que tenha muita coisa nova e diferente, mesclando muitas influências e criando coisas totalmente novas.
Como eu mencionei antes, acho que tudo que a gente faz é um ato político. Assim como dançar e cantar sobre coisas que podem ser consideradas as mais bobas ou superficiais, mas eu acho que tudo tem que ter espaço. Leveza e diversão também são importantes.
Apesar dessa mudança no mercado, eu gostaria que a cadeia de distribuição também ficasse um pouco mais democrática, porque é totalmente possível que o teu próximo artista preferido esteja esperando com as músicas prontas, mas barrado de chegar até ti porque não tem as condições de fazer com que essa música chegue onde deveria. E isso tem a ver com todo um sistema.
Sobre como eu quero contribuir, eu acredito que tudo que eu posso fazer é seguir sendo o mais verdadeira possível comigo mesma. Assim como só a Anitta pode ser a Anitta, só eu posso ser eu. Nós vamos ter alcances de públicos muitos diferentes, e eu tô satisfeita em ser quem eu sou e chegar a quem ressoa com o que eu faço.
Luiza Girardello