1. Ana Paula, o livro propõe uma abordagem interessante sobre a evolução urbana do Rio de Janeiro para o público infantil. O que motivou você a escolher esse tema?
As cidades são muito mais que ruas, praças e edifícios. São o lócus de construção da nossa identidade e é na infância que esse processo acontece e abre, ou não, suas portas para a estruturação do sentimento de pertencimento ao lugar, à sociedade e à cultura.
Temos acompanhado crianças que têm rotinas restritas aos “plays” dos condomínios, aos shoppings e as telas. Não experienciam os espaços da cidade, deixam de se sentir conectadas ao lugar onde vivem e perdem o entusiasmo em construir suas próprias vivências e histórias.
A ideia do livro é oferecer uma nova oportunidade de conhecimento. A intenção é que, de forma lúdica, “Rio desde o início” sirva como uma sementinha da percepção do espaço em que a criança vive, e que esta semente cresça junto com o adulto que ela se tornará no futuro. Acredito que assim a criança se tornará uma cidadã com melhores condições de respeitar e participar da vida urbana de forma positiva.
2. Como você conseguiu equilibrar o conteúdo histórico e urbano com uma linguagem leve e acessível para crianças?
A ideia é que a criança se enxergue na história e na cidade. Nada de decorar datas ou nomes. O livro oferece a oportunidade de estimular a aventura do conhecimento. Associando fatos históricos aos espaços urbanos e abordando os vários tempos pelos quais a cidade passou, se compreende muito da cidade que temos hoje. Vivenciar o Rio desde o início, saber mais sobre a origem da cidade, as invasões e as muitas pessoas que fazem parte dessa história pode ser muito divertido. As personagens também ajudam: as crianças se identificam e se vêem como parte do grupo. O Guri, o cachorro que guia as personagens pelas ruas torna tudo mais leve e divertido. Aos poucos a cidade vai se tornando objeto de interesse e conhecimento para os pequenos.
3. Quais são os momentos mais marcantes da história do Rio de Janeiro que você decidiu incluir no livro e por quê?
A história do Rio é cheia de momentos marcantes. Momentos que se misturam com a história do Brasil e que explicam os porquês da nossa cidade. A chegada dos primeiros estrangeiros, as ocupações francesas, a vinda da Família Real, a Proclamação da República…
O mais importante e desafiador foi abordar temas e fazer recortes que deixem claro que as questões sociais, políticas e econômicas refletem diretamente no espaço urbano. O Cais do Valongo é um exemplo perfeito. Por mais que seja um importante ponto turístico, de nada vale visitar sem entender seu significado e tudo o que ele representa para todos nós.
4. A obra toca em temas como meio ambiente, mobilidade urbana e moradia. Como você acredita que as crianças podem se conectar com esses temas através da leitura?
As crianças percebem essas questões nas ruas rotinas, mas muitas vezes não entendem os porquês. Elas observam a cidade por um prisma diferente, mas suas questões existem e são pertinentes. “Por que no meu bairro não tem praças e no do fulano tem?” “Por que uns vão de carro para escola e outros de ônibus ou a pé?” “Por que eu moro perto e meu amigo mora longe?” “Por que a praia está suja?” “Por que está tudo engarrafado?” “Por que a rua alagou?” As questões são infinitas. Quem convive com crianças sabe que explicar desigualdades, destruição do meio ambiente e vários outros assuntos não é fácil.
Ler ajuda a criança a se colocar no lugar do outro e ver as questões sob novos enfoques. No caso da evolução urbana, ajuda a entenderem que nada é por acaso.
5. A história do livro acompanha o menino Nuno, de Porto Alegre, em uma visita ao Rio. Como você pensou na construção do personagem e nas interações dele com a cidade?
Tudo no livro é verdade. Nuno (meu filho), Helena e Isabel (sobrinhas) e Guri (o cachorro da família) existem de verdade. Foi com base na curiosidade do Nuno que o livro começou a surgir na minha cabeça.
Rio, desde o início é a sequência natural de Porto Alegre na palma da mão.
Nuno, desde muito pequeno, transformava qualquer passeio pelo Centro Histórico de Porto Alegre em uma rodada de perguntas infinitas: “Onde a cidade nasceu?” “Por que essa rua é tão bonita?” “Quem chegou primeiro aqui?” “Como toda essa gente veio parar aqui?”.
Eu nasci em Lisboa, mas vim para o Rio com pouco mais de 3 anos e vivi aqui a maior parte da vida. Até ir fazer mestrado e dar aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS em Porto Alegre. Nuno nasceu lá e viveu entre as cidades, comparando e tentando entender as diferenças e semelhanças. Foi através do seu olhar cheio de encantamento e de dúvidas que percebi que muitas das suas questões eram compartilhadas pelos meus alunos do 4º e do 9º períodos da faculdade. Adultos que cresceram e não entenderam sobre a cidade onde vivem. Foi o incentivo que eu precisava para começar a falar sobre urbanismo com quem ainda não é urbanista.
6. Além do conteúdo textual, o livro conta com ilustrações em aquarela de Ornella Schmals Savini e um caderno de passeios. Como essas ilustrações complementam a narrativa e ajudam na compreensão do público infantil?
As ilustrações, além de lindas, são fundamentais. As da Ornella Savini, no livro, e as da Laura de Siqueira Duarte, no Caderno de Passeios, permitem que a imaginação da criança seja conduzida por um guia com informações precisas, ainda que lúdicas, sobre o tempo em que aquela história ocorreu. O livro é denso. São muitas informações e as ilustrações ajudam as crianças a se enxergarem vivenciando a história. Um exemplo é a aquarela sobre a abertura da Avenida Central: os postes retratados e todo o mobiliário urbano correspondem exatamente aos que existiam na época. Resultado de um grande trabalho de pesquisa para que as crianças tenham acesso a informações corretas sobre cada lugar. Realmente uma sorte contar com o talento e a competência com das duas.
7. Os roteiros e cartões postais incluídos no livro são uma forma de convidar as crianças a explorar a cidade. Que tipo de reação você espera dos pequenos leitores ao terminarem a leitura?
A intenção é clara: levar as crianças e seus responsáveis para as ruas e praças da cidade.
Ler, ouvir histórias e ver fotografias é muito legal, mas não existe forma melhor, e mais divertida, de conhecer uma cidade do que sair pelas ruas descobrindo histórias e desvendando mistérios.
Tenho convicção de que caminhar pelas cidades, sob o próprio olhar, muda nossa maneira de ver o mundo. E, com sorte, pode mudar o mundo para outras pessoas também.
8. Você acredita que um livro como esse pode despertar nas crianças um senso de pertencimento e compreensão de seu papel na história e no futuro das cidades?
Sabemos que a percepção da realidade varia em função dos padrões culturais incorporados a cada pessoa. As crianças que vivem a cidade e desfrutam de seus espaços, sem dúvidas, terão, além do senso de pertencimento, um olhar mais apurado, mais generoso e mais inclusivo com a cidade.
Para nós, a violência é um grande limitador. Nossas crianças, muitas vezes, não podem ir caminhando até a escola ou a casa de um amigo e nem mesmo ir a padaria para avó, como eu fazia quando era pequena, e isso as impede de entender e se apropriar dos espaços.
Se pedirmos para crianças de 6, 7, 8 ou 9 anos desenharem um mapa do seu bairro, a maior parte delas não será capaz. Mas, crianças da mesma idade, em cidades como Barcelona, onde a grande maioria faz percursos a pé todos os dias, conseguem. E ilustram os mapas como os afetos que desenvolveram pelo caminho: o jornaleiro, um desenho num muro, uma árvore especial. São os pontos referenciais que tornam o caminho único, lúdico e preciso. São espaços vivenciados e que pertencem a cada uma delas. Viverão para sempre nas suas memórias. Isso é pertencimento.
A possibilidade entender a história e depois, de caso pensado e bem preparados, ir as ruas em Roteiros pré determinados pode despertar nas crianças novos interesse. E é uma alternativa as nossas limitações de segurança e distâncias. E também uma mãozinha aos responsáveis, que encontram no livro muitas das respostas para as perguntas que certamente virão.
9. O livro será lançado próximo ao aniversário do Rio de Janeiro, no dia 1º de março. O que esse momento simbólico representa para você e para a obra?
A data do aniversário é sempre uma boa desculpa para comemorar e para valorizar nossa história. No caso do Rio, muita coisa já havia acontecido antes de, em 1565, a cidade ser fundada aos pés do Morro Cara de Cão. Se conseguirmos aproveitar a data para refletir sobre como estamos tratando nossas memórias urbanas e darmos o devido valor para nossa história, teremos muito o que comemorar.
10. Quais são suas expectativas em relação à recepção do livro? Você já tem planos para futuras publicações sobre temas urbanos ou históricos voltados para o público infantil?
Eu amo o Rio. E sei que todo carioca ama também. Temos problemas, mas somos resilientes e encantados pela nossa terra. Minha expectativa é que o livro seja uma contribuição, ainda que pequena, para resgatar nosso passado, valorizar nosso presente e ajudar as novas gerações a construir um Rio melhor no futuro. Fora dos condomínios, dos shoppings e das telas e dentro de cada um e da sua própria história.