Entrevista: Zilá Lima: cantora, compositora e berimbalista

Entrevista: Zilá Lima: cantora, compositora e berimbalista

1. Zilá, seu primeiro álbum, “Cantando Memórias”, traz influências da África e da cultura afro-brasileira. Como você descreveria a jornada musical que os ouvintes podem esperar?

Proponho neste álbum uma viagem musical, marcada por uma certa cronologia dos fatos, que começa antes da travessia atlântica África-Brasil e que termina com o tão sonhado retorno à terra-mãe.

O álbum traz a África, em especial Angola, a diáspora, as manifestações culturais afro-brasileiras, a espiritualidade e heroínas negras de todos os tempos como principais inspirações, em músicas traduzidas para ritmos como samba, samba de roda, canção praieira, ijexá, afro-choro e afro-bossa.

2. O álbum conta com 13 faixas autorais. Pode nos contar um pouco sobre o processo de composição e como escolheu os temas abordados?

A maioria das canções do “Cantando Memórias” foi composta primeiro com o berimbau, instrumento que me acompanha desde menina, quando aos 12 anos, comecei a praticar capoeira e a conhecer suas tradições, seus rituais e cantigas. A capoeira, para mim, é símbolo maior de resistência e superação, é entidade viva que a todos acolhe. O berimbau é sagrado pra mim, é o instrumento que consegue traduzir, por meio das suas notas, o que se passa na minha alma. 

Foi a capoeira que me levou a compor, inspirada pelas histórias que minha mãe, nascida e criada na região do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, me contava. Também das histórias que ouvia dos Mestres e Mestras e das cantigas que eles cantavam. E a minha memória ancestral foi o que fez sentido para mim. Histórias que marcaram a minha infância e adolescência. 

3. A capa do álbum é uma obra de arte assinada por Elifas Andreato. Pode compartilhar conosco o significado por trás dessa imagem e como ela se relaciona com a música do álbum?

Um dos destaques deste álbum é realmente a capa do Elifas Andreato. Desde que iniciei o projeto que culminou no álbum, há 7 anos, sonhava em ter a arte da capa criada por ele. Seria como receber uma bênção, a mesma que ele deu a trabalhos musicais de grandes artistas que me inspiravam. 

Durante os trabalhos de gravação do disco, falei sobre isso com o meu produtor musical Celsinho Silva, ainda sem saber que eram amigos. Ele apresentou algumas de minhas músicas para o Mestre que resolveu me presentear com essa arte linda. 

Há época, meu único pedido foi que ele traduzisse o que ouviu em minhas músicas com a sua arte. E assim surgiu essa capa com a figura do Pensador angolano, que também pode ser a Pensadora, já que não tem identificação de gênero. 

A figura, normalmente esculpida em madeira escura, é símbolo da cultura nacional de Angola e representa a sabedoria, a experiência de longos anos vividos e o conhecimento dos segredos da vida. 

Têm tantos detalhes nessa arte: as nuances de cores; a repetição da imagem que, para mim, remete à memória e à união do passado, presente e futuro.

Eu gostaria de ter tido tempo de devolver o álbum pronto para ele ouvir, para que ele soubesse que o resultado estaria à altura da confiança que ele depositou em mim com essa arte tão significativa. Ele partiu em março de 2022 e este foi um dos seus últimos trabalhos. Será um dos acontecimentos que vou levar na memória pra vida inteira e que vou dividir para que tenha continuidade. O meu salve para o Mestre Elifas Andreato!

4. Você mencionou que suas canções foram inicialmente compostas com o berimbau, um instrumento importante em sua vida. Como essa experiência pessoal influenciou as músicas do álbum?

No meu sentimento, a maioria das músicas do álbum Cantando Memórias tem, na sua essência, o som do berimbau. Acredito que as pessoas que conhecem os toques e as músicas da capoeira também vão sentir isso.

Toco berimbau e componho desde menina e foi esse instrumento que me permitiu traduzir em melodias e palavras o que se passava na minha mente e coração. Sei que vou levar esse a quem considero “meu amigo, o Berimbau” para a vida inteira. Sempre será meu principal instrumento.

5. “Cantando Memórias” aborda temas como a diáspora africana e as manifestações culturais afro-brasileiras. Qual mensagem você espera transmitir através dessas músicas?

Imprimi nessas canções o meu sentimento, a minha interpretação das memórias familiares, que foram passadas da minha bisavó para a minha avó, da minha avó para a minha mãe, dos Mestres do passado até chegar aos Mestres e Mestras que conheci na minha jornada.

É uma impressão e interpretação muito pessoal, que possivelmente alcançará outras pessoas que viveram experiências semelhantes de conhecer essas histórias dentro de suas casas, terreiros e rodas. Uma história que nos foi negada nas escolas ou foi contada de forma diferente da que realmente aconteceu (até hoje, infelizmente).

É mensagem de autoacolhimento, é provocação para se pensar no que aconteceu, em como isso chegou até nós, em como interpretamos esses acontecimentos e como podemos atuar para contribuir para um mundo melhor.

6. Qual é a sua cor favorita na capa do álbum?

São as cores iridescentes (furta-cores), em tons de azuis e verdes, presentes na figura do Pensador. Coisa do genial Elifas Andreato! 

Essas cores são percebidas somente quando paramos para observar, dedicando nossa atenção à arte. Da mesma forma, as mensagens contidas nas letras das músicas precisam dessa atenção cuidadosa para serem compreendidas e absorvidas.

Mais uma sincronicidade presente no conjunto de elementos que forma o Cantando Memórias.

7. Se você pudesse escolher um superpoder para ter durante a gravação do álbum, qual seria e por quê?

O poder de me teletransportar, com toda certeza. O álbum foi gravado durante a pandemia e a maioria dos músicos precisou gravar a distância. 

Com esse superpoder eu poderia estar em todos os lugares de onde partiram os sons para a construção do meu álbum. Seria mágico!

8. Se “Cantando Memórias” fosse um sabor de sorvete, qual seria?

Sorvete de pitanga feito em casa pela minha mãe. Pitanga foi um dos meus apelidos na capoeira, além de ser uma árvore que tínhamos no fundo do nosso quintal, plantada por minha mãezinha. Pitanga me leva às memórias dos momentos com ela, com meus irmãos e vizinhos, da alegre colheita, e também dos treinos de capoeira que deixavam meu rosto da cor dessa fruta. 

Para registrar, meu apelido na capoeira acabou por se firmar como Vermelha. Tudo a ver com pitanga, né?

9. Em um mundo onde a música está se tornando cada vez mais global, como você acha que as músicas do álbum podem contribuir para um diálogo intercultural mais profundo?

Por ser algo percebido através dos sentidos, a música como arte universal, consegue estabelecer a comunicação entre as pessoas, independente da língua, do país de nascimento, etc. Por si só, o diálogo intercultural acontece aqui, com o rompimento de barreiras e com a criação de um espaço inclusivo. 

Como falei anteriormente, as músicas do meu álbum são uma tradução pessoal sobre acontecimentos, são a minha forma de interpretar o que ouvi, dentro das minhas possibilidades e diante de minhas vivências. Acredito que, enquanto provocadoras de sentimentos, essas músicas podem criar conexões, independentemente do local do mundo e da cultura da/do ouvinte.  

10. Algumas pessoas argumentam que a música é uma forma poderosa de abordar questões sociais e políticas. Você concorda que seu álbum tem uma mensagem política por trás das músicas?

Com a música, busco exprimir meus sentimentos e semear mensagens que considero importantes. E, sim, sinto que além de ser expressão artística e cultural, a minha música tem uma missão educativa e de mobilização interna, que pode alcançar o social, no sentido que provoca uma reflexão íntima e profunda sobre aspectos muitas vezes esquecidos. 

Minha música se volta para uma parte da minha origem que era celebrada dentro da minha casa, na capoeira e nos grupos de amigos-irmãos com vivências semelhantes. Em outros círculos sociais esse fato da origem africana da minha família desaparecia. 

Como mulher mestiça de pele clara, reconhecendo  todos os privilégios que isso me proporcionou, foi muito importante retomar essa memória que me aproxima dos meus antepassados, deixá-la fluir como música. É a minha forma de reencontrá-los e reencontrar suas histórias, de abraçá-los e dizer: “reverencio, com gratidão, a existência de vocês!”. É a minha forma de encontrar cada pessoa que possa ouvir essas músicas e fazer o mesmo.

Espero muito que minhas músicas possam ajudar outras pessoas a também se reconectarem com a sua ancestralidade. Através da nostalgia e do acolhimento pauto questões sociais, raciais e de gênero que são inerentes à minha criação. Existe um ato político em perceber que a política está também na gente. Que nossas histórias, nossas vidas, fazem parte da tapeçaria histórico-política que forma a nossa sociedade. Proclamar nossas origens, falar sobre o nosso passado, é um ato político. Viver a nossa verdade é ato político e a música é expressão política, sempre!

Gratidão por me ouvirem.

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SERVIÇO – SHOW:
Zilá Lima – lançamento do álbum Cantando Memórias
Local: Teatro Ruth de Souza – Parque Glória Maria (antigo Parque das Ruínas) – R. Murtinho Nobre, 169 – Santa Teresa, Rio de Janeiro – RJ
Data: 21 de novembro de 2023 (terça-feira)
Horário: 19h
Duração: 90 minutos
Capacidade: 75 lugares
Ingressos: R$ 30, inteira / R$ 15, meia

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