Entrevista: Mateus Mendes, escritor

1. O que o motivou a escrever “É a ideologia, estúpido!” e qual foi o principal objetivo ao abordar as disputas ideológicas atuais?

Na minha dissertação, estudei a crise brasileira iniciada em 2013. Aquelas manifestações são típicas de revoluções coloridas, ou seja, de operações de guerra ideológica. Mt gt foi conhecida a defender um projeto de governo que só beneficia os mais ricos. Por outro lado, os governos petistas faziam um governo que, a despeito de todos os problemas, pensava nos mais pobres, mas não cuidou de informar à população que a inclusão social e a melhoria das condições de vida eram decorrentes de uma escolha política pela esquerda. Ou seja, não fizeram a disputa ideológica. Assim, qd confrontado, o projeto petista não teve quem o defendesse nas ruas.
Com o livro, pretendo chamar atenção de que não bastam governabilidade e estabilidade econômica, é preciso também atenção à dimensão ideológica do poder. Não apenas para poder resistir a novas ofensivas das elites, mas também para podermos ter um governo realmente inclusivo e soberano.

2. Você descreve as disputas ideológicas de forma cirúrgica no livro. Quais são, na sua visão, as principais frentes dessa guerra ideológica no Brasil contemporâneo?
À direita, temos os liberais-conservadores, muitas vezes chamados de neoliberais, e os fascistas. Muitas vezes, há uma indistinção entre eles, mas esse grupo inclui o que alguns chamam erroneamente de direita democrática, ultraliberais, anarcocapitalistas, fundamentalistas cristãos, conservadores, neofascistas etc.
Aqui cabe um parêntesis: não há direita democrática no Brasil, uma vez que toda a direita apoiou o golpe de 2016 e que, em maior ou menor medida, apoiou tb o governo Bolsonaro.
Tanto liberal-conservadores quanto bolsonaristas defendem governos excludentes, antipopulares e antidemocráticos. Isso abrange desde o centrão até o bolsonarismo, a extrema direita.
Do outro, a esquerda. Aqui há também uma miríade de grupos e afiliações. Grosso modo, incluímos aqui desde os setores mais firmes na defesa do socialismo até os que, por miopia, ingenuidade ou oportunismo, fazem grandes concessões à agenda da direita, especialmente na questão da austeridade.
Finalmente, há que se considerque não são blocos estanques, nem homogêneos.

3. Como a ascensão do bolsonarismo impactou as relações de poder e as disputas ideológicas no Brasil? Quais as principais consequências que você analisa em seu livro?
O bolsonarismo é um exemplo didático da noção negativa de ideologia, de quando os valores deturpam totalmente a realidade. Minha posição à esquerda não me impede de reconhecer erros em governo de esquerda ou de ver méritos em governos de direita. Para os bolsonaristas isso é impossível: é alfa ou ômega; só Bolsonaro e quem lhe for cegamente fiel está certo e está certo 100% das vezes; fora isso, só há erro e perversão.
Já as principais consequências do bolsonarismo foram a musculatura eleitoral de uma agenda econômica reacionária e a recolocação da agenda política, econômica e ideológica brasileira em uma posição mais à direita do historicamente estávamos habituados.

4. O livro propõe reflexões sobre a organização da ação política da esquerda. Quais passos considera fundamentais para que a esquerda vença essa guerra ideológica?
De forma sucinto, a primeira é ter clareza de que a agenda da direita não nos atende, não atende à maioria esmagadora da população brasileira. Não é mais possível se dizer de esquerda e defender a autoridade, por exemplo. Essa agenda não é nossa.
A outra tarefa fundamental é travar a luta ideológica. Não podemos mais aceitar que a agenda da direita circule com o véu da neutralidade. Não podemos mais nos dar ao luxo de acreditar que a esquerda vai ganhar eleições porque vamos melhorar a vida da maioria: temos q mostrar q só uma agenda de esquerda, só uma agenda preocupada com o social, com quem paga a conta, só uma agenda assim pode melhorar a vida das pessoas.

5. Como a ideologia, na sua análise, representa os interesses das classes sociais? Pode explicar a relação entre a ideologia e a constituição de uma nova ordem social?

O interesse está na base das ações políticas de quem tem consciência desse. Nesse caso, a ideologia é um desdobramento dele. A ideologia intermedia interesse de classe de um lado e projetos, programas e bandeiras de outro. Como recurso visual, pode-se imaginar círculos concêntricos em que o interesse representa o primeiro círculo, o núcleo, a ideologia a circunferência intermediária e a externa seria a dos projetos, programas e bandeiras. Quem não tem clareza quanto a seus interesses de classe opera a partir dos interesses de outro grupo, classe ou fração de classe. Entretanto, de uma forma ou de outra, a ideologia direciona e instrui a ação política.
Sendo o conjunto ou sistema de ideias, valores e crenças acerca da sociedade, a  ideologia pode servir tanto para preservar como para alterar uma dada ordem política, logo inexiste ação política desprovida de ideologia.

6. Como o livro contextualiza os fenômenos traumáticos que marcaram a última década no Brasil? Pode nos dar exemplos de como esses eventos moldaram a atual conjuntura ideológica
Ao analisar as manifestações de 2013, o golpe de 16 e a ascensão do bolsonarismo, enfim, esse processo contrarrevolucionário que vivemos, procurei destacar o conjunto de ideias e valores que organizam e mobilizam as pessoas para promover esses retrocessos todos.

7. Sendo professor de Geografia e ex-diretor do Sepe, como você enxerga o papel da educação na formação crítica e na luta ideológica?
A maioria dos professores de humanas têm uma base relativamente de esquerda. Ênfase no “relativamente”, porque é algo muito mais próximo a uma visão da esquerda liberal (que só é de esquerda até a página 2).
Ainda assim, é bem menos à direita do que os rumos para onde o Brasil girou nos últimos anos.
Bem, isso não foi suficiente para impedir a contrarrevolução. Pq? Em parte pq a burguesia tem a seu dispor muitos outros aparelhos ideológicos para moldar a ordem social, política e econômica. Além disso, os principais partidos de esquerda e os governos de esquerda abdicaram do socialismo e tem se contestado em fazer uma gestão mais humana do capitalismo, como se isso fosse possível. Finalmente, esse processo contrarrevolucionário é global. Em que pesem os avanços em algumas áreas, desde o fim da Guerra Fria o movimento geral é de retrocessos. É só vermos que dos anos 90 pra cá, a participação do 0,0001% mais rico da população mundial passou de 3% para 13%. Para além dessa aviltante concentração de renda, o que o neoliberalismo nos entregou foi o crescimento da extrema direita.

8. Que tipo de reação ou impacto você espera provocar nos leitores com “É a ideologia, estúpido!”?
Ah, gostaria que as pessoas se indignarem e que parassem de acreditar que é possível humanizar o capitalismo.

9.: Como foi o processo de pesquisa e escrita deste livro? Houve algum desafio particular em traduzir temas complexos de ciência política para um público mais amplo?
O livro compila textos já publicados e textos inéditos. Mesmo os textos inéditos também resultam de pesquisas que venho fazendo há muitos anos. Apesar disso, realmente há a necessidade de adaptar o texto porque a linguagem acadêmica nem sempre é convidativa para o público geral.

10. Quais são seus próximos projetos acadêmicos ou editoriais? Já tem algo em mente após o lançamento deste livro?
Estou escrevendo minha tese. Devo defender ano que vem. Dando tudo certo, sai livro novo ano que vem.
Não vou entrar em muitos detalhes pra deixar o pessoal curioso e instigado (risos). Só vou adiantar que minha praia é geopolítica e meu tema de doutorado é fundamentalismo cristão. 

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