Entrevista: Mara Felipe, pesquisadora e escritora

Entrevista: Mara Felipe, pesquisadora e escritora

1, O que a inspirou a escrever Pedagogia Olodum e qual é a mensagem central que você deseja transmitir com essa obra?

Há mais de 30 anos sou pesquisadora sobre o Olodum, já fiz várias coisas para e com a instituição, mas a principal delas foi coordenar pedagogicamente a escola, logo após a sanção da lei 10.63/03.
Acho justo que uma história de educação antirracista que já era consolidada antes lei, que batalhou para a viabilização e que colaborou e colabora para sua verdadeira efetivação seja contada e visibilizada.

2. Você poderia descrever brevemente a trajetória do Olodum desde sua fundação até a promulgação da Lei 10.639/03? Quais momentos você considera mais significativos?

Da Fundação do Olodum em 1979 até a promulgação da lei em 2003, são 24 anos que a antecede. Eu traço uma trajetória que vai de antes do estouro da música Faraó até a sanção da Lei 10.639/03, demonstrando a experiência do Olodum como promotora da pluriversalidade racial e que também gera conhecimento.

É válido salientarmos que a fundação do Olodum já é um momento significativo. Quando um grupo de jovens negros se unem para criar um bloco de carnaval, por causa do racismo e impedimento social, isso já é um ato político e pedagógico de grande relevância.

Quando em seus primeiros anos, o bloco já possui enredos de grande valor que fora silenciados ao longo da história, fazendo uma série de narrativas afrocentradas, isso é  pedagógico e grandioso.

Quando em 1983, a instituição se re(ori)enta  e passa a produzir atividades que englobam a música, a dança, a arte cênica, o próprio carnaval, a produção literária, o compromisso social, político-ideológico, a capacitação profissional, realização de seminários e a participação nos fóruns de discussão promovidos pelo movimento negro, passando de bloco afro a holding cultural, tendo o Projeto Rufar dos Tambores, como ação social formada por crianças e adolescentes da comunidade, isso é mais do que pedagógico é a culminância e sistematização de um fazer educacional.

Quando em 1987, há o estouro da música Faraó e o Olodum toma uma abrangência inimaginável entrando para o mercado fonográfico, tornando-se uma banda nacional e internacional e principalmente mostrando como é possível construir um olhar que contraponha a colonialidade, apresentando a discriminação racial para além da dimensão comportamental, mas enraizada como um mecanismo estrutural. Isso é extrapolar as salas de aula, é fazer da música e da indústria cultural seu maior dispositivo pedagógico.

São muitos momentos relatados e de significância. É fato comprovado que o Olodum antes da Lei 10.639/03, já possuía uma experiência com educação interétnica consolidada em todo o país. É uma instituição pioneira na promoção da educação antirracista.

3. Como você vê a contribuição do Olodum para a educação e a cultura afro-brasileira ao longo dos anos? Quais iniciativas você destacaria?

Quando falamos de educação e produção de saberes antirracistas, a experiência do Projeto Rufar dos Tambores ,que transformou-se em Escola Criativa Olodum é fundamental, pois é aí que ele começa a agir mais fortemente no processo de construção da identidade negra, apontando que isso se dá a partir do seu reconhecimento e pertencimento. Que é preciso mais do que resistir, no sentido de lutar, sobreviver, persistir. É necessário (re) existir, deixar de ser objeto para se tornar sujeito conhecedor e protagonista da sua história, criando outra forma de existir neste mundo. Isso é o lindo de se ver, é a beleza do Olodum.

Dessa fase destaco a participação do Olodum, junto com a UNEGRO e a APLB Sindicato para termos na Constituição do Estado da Bahia, um Capítulo sobre o Negro que preconizava o ensino de história da África na educação básica. Isso em 1988. A Bahia é pioneira nesta lei, graças aos nosso movimento negro.

4.  Você menciona que a pedagogia do Olodum é antirracista e decolonizadora. Como essas características são refletidas nas práticas educativas do grupo?

Tudo no fazer, na prática Olodum é pedagógico e repleto de significados. Por exemplo, a própria marca Olodum é um dispositivo educativo. Simboliza a paz e o movimento panafricanista – com as cores verde, vermelho, amarelo e preto, que possui um impacto sobre outras pessoas no mundo inteiro. Alinhar um símbolo internacional de paz&amor, com a bandeira pan-africana e a sonoridade do samba-reggae torna a marca do Olodum um dos símbolos mais conhecidos dentro e fora do Brasil. E toda essa simbologia transmite uma mensagem que quebra paradigmas, visa educar para a cidadania e para um mundo de respeito as plurisdiversidades.

5. De que forma o samba-reggae e as letras das músicas do Olodum funcionam como ferramentas educativas e de resistência social?

O pensamento antirracista do Olodum o transforma em um quilombo contemporâneo, que extrapola os territórios, utilizando  metodologias que dialogam com os corpos negros a partir de seu ritmo musical:  o samba-reggae. A música é universal, mas que isso, o conhecimento produzido pelo samba-reggae vai se compondo de uma cosmologia afrobrasileira, misturando cânticos, vestimentas, as tradições orais, as danças, os ensinamentos do fazer religioso e também científico. Misturando as leis, o lúdico, as batucadas, a gastronomia, enfim … tudo junto e misturado encontra-se presente no fazer pedagógico do Olodum.

6.O Olodum se tornou um símbolo de luta pelos direitos civis em várias partes do mundo. Quais são alguns exemplos dessa influência internacional que você encontrou em sua pesquisa?

São muitas referências de líderes pela luta dos direitos civis. Destaco o fato do Olodum ter  articulado e recepcionando as visitas do Bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela a Salvador. Duas referências imensuráveis na luta antirracista. Tendo gravado o hino do congresso nacional africano e participado da luta mundial contra o apartheid na África do Sul.

7.  Você utiliza as ideias de importantes teóricos como Paulo Freire e Abdias Nascimento em seu livro. Como essas teorias se relacionam com a prática pedagógica do Olodum?

Abdias Nascimento foi um grande parceiro e companheiro do Olodum e dá nome a nossa Biblioteca. Uma das primeiras bibliotecas Afro-brasileiras, com conteúdos voltados para a educação interétnica, justamente por termos esse princípio do Professor Abdias que nos fala da necessidade do desenvolvimento de práticas pedagógicas calcadas em saberes ancestrais de matriz africana, muito presentes no fazer Olodum, com o seu conceito de quilombismo.

Paulo Freire é o nosso Mestre Nacional. São muitas pedagogias pensadas por ele. Mas vou destacar a sua pedagogia da libertação, muito presente no percurso educativo do Olodum ao refletir que o saber se faz das possibilidades dos sujeitos de indagar, buscar respostas, constatar e intervir, de transforma-se, liberta-se por meio da educação.

Mais além desses pensadores gostaria de destacar a influência e contribuição do sociólogo e  professor Manuel de Almeida Cruz, que sistematizou a proposta pedagógica utilizada pela Escola Criativa Olodum, em seu livro “Alternativas para combater o racismo”, de 1989. Foi inclusive nosso coordenador pedagógico.

O Olodum é produtor de grandes pensadores e elaboradores de conceitos. João Jorge, Katia Mello, Marcelo Gentil, Zulu Araújo, Dora Dias, Nelson Mendes e muitos outros e outras são quadros do Olodum. são formuladores disso que chamo Epistemologia do Samba-reggae. É dentro do Olodum, realizando suas tarefas que vão se formulando, recriando e produzindo saberes que promovem reflexões, pautam a importância e reivindicações diversas em defesa dos direitos humanos.

8. Como o modelo educativo proposto pelo Olodum promove a inclusão social e a igualdade racial?

A utilização da metodologia de ensino proposta pela pedagogia interétnica de Manuel de Almeida Cruz, tem um caráter participativo, voltada para a transformação social, que estimula e motiva os sujeitos do processo educacional a assimilarem de forma crítica e inventiva o conhecimento existente. Dessa forma se promove uma contribuição para a produção de novos saberes, que sejam capazes de diminuir as desigualdades sociais.
O Olodum luta por políticas públicas que buscam uma sociedade justa e igualitária. Junto com outros, pois sabemos que esse fazer é comunitário. Já conseguimos muito. Mas ainda há muito o que trilhar.

9. Na sua opinião, qual é o impacto mais significativo do trabalho do Olodum na luta contra o racismo, tanto no Brasil quanto no exterior?

Não ficar apenas no cantar, o Olodum vai trabalhando para colaborar com a construção democrática brasileira, fazendo uma interação entre cultura, educação e política, mostrando que a partir do diálogo, da utilização estratégica das artes há possibilidade de ampliar a autocompreensão dos mais vulneráveis para se entenderem enquanto sujeitos políticos. Vai trabalhar para a elevação da auto-estima, do empoderamento. Vai propondo, criando e construindo alternativas autônomas para o desenvolvimento de ações e consolidação na luta contra o racismo e as diversas formas de opressão. Vai falando da importância de se gostar de ser quem se é. De se amar e se valorizar. De influenciar, de ter uma pedagogia replicável, que diz que se passa um boi, deve passar uma boiada, deve passar toda massa para viver um mundo melhor. O sol e a felicidade é para todos. Essa é a mensagem do Olodum … de paz , amor e união.

10. Que reflexões você espera que os leitores tenham ao ler seu livro sobre a relação entre cultura, educação e questões raciais?

O Olodum se inspira no conceito filosófico Ujamaa, de Julius Nyerere da Tanzânia, que fala das práticas de vida comunitária e fraternal. E isso é muito presente em sua pedagogia. A reflexão que se espera é despertar para a coletividade, que precisamos uns dos outros, para otimizar o nosso bem-estar físico, material e mental. A importância do fazer comunitário é muito grande. Não estamos sós. E que só conseguiremos juntos… isso é o que o Olodum busca transmitir para a pequena comunidade do Pelourinho e para o mundo.

11. Ao longo dos 40 anos de existência do Olodum, quais desafios você acredita que eles enfrentam, e quais conquistas são mais dignas de celebração?

São 45 anos de existência do Olodum. Mês que vem sua escola completa 41 anos. Só o fato de uma instituição negra, que compõe a indústria fotográfica e cultural, continuar tocando o mesmo assunto, sem deixar os seus princípios, é grandioso. São anos partilhados com diversas linguagens, produzindo e disseminando saberes emancipatórios, oriundos da luta antirracista. E essa luta continua e é contínua, pois o racismo e as desigualdades da nossa sociedade vão se recriando. Temos que ter alegria de viver e sabedoria para prosseguir com novas possibilidades das cabeças se encherem de liberdades, deixando de lado as separações!

12. Que práticas lúdicas e artísticas o Olodum utiliza para estimular a reflexão crítica sobre a herança africana na formação da identidade brasileira?

Sua maior prática, seu instrumento pedagógico mais importante é sua música. Mas o Olodum é  música e muito mais, possui um arsenal de arte-educação que envolve múltiplas linguagens. Faz também discussões profundas de forma singela e contundente, por meio de seus seminários, cursos e palestras. De seus livros, boletins, jornais, apostilas, cartilhas. Foi pioneiro na utilização de recursos de novas tecnologias, atualmente tem blogs, vlogs, lives, podcasts, etc. Enfim, tá o tempo inteiro se recriando e se renovando, sem esquecer a experiência e o valor do passado e nem de olhar com esperança para o futuro.

13. Quais são seus planos futuros em termos de pesquisa ou publicações sobre educação, cultura e questões raciais?

Olodum é um leque profundo de estudos e pesquisas. Há ainda muito a ser dito, a ser aprofundado. Neste momento, falo apenas de 24 anos que antecederam a Lei 10.639/03. Depois dela muita coisa aconteceu. Veio o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei de Cotas e  muitas outras coisas que o Olodum participa dessas conquistas. Veio toda uma geração com outra mentalidade e outras demandas. Com uma visão mais crítica da sociedade, que o Olodum ajudou a formar. São outros 21 anos que precisam ser contados. Então, a pesquisa, a escrita, a vida… continua!!! rsrs

marramaqueadmin