Entrevista: Mara Braga, cantora e compositora

1. O que a levou a escolher o nome MarAdentro para o seu álbum de estreia? Que significados esse título carrega para você?

A ideia do título nasceu por duas razões: um mergulho na temática de tudo o que envolve o mar (mar à dentro) e uma brincadeira de palavras com o meu nome Mara, que por sinal eu só fiz as pazes com ele quando um pescador disse que o meu nome era o feminino de mar. Acredito que cada um tem um mar, um oceano dentro de si, e é sobre isso o que eu quero falar, sobre esse mar adentro da gente.

2. Você menciona que o álbum foi inspirado em eventos pessoais marcantes, como o quase afogamento e a sua imersão na cultura caiçara. Como esses episódios influenciaram suas composições?

Quando eu sobrevivi ao acidente de mergulho, eu percebi que a vida é de fato muito passageira e que eu não estava vivendo os meus desejos, então resolvi me encarar e encarar a música de vez e a partir disso, passei a estudar composição de canção, teoria e improvisação musical, além de me aprofundar em técnicas de canto. Desses estudos, nasceram muitos rascunhos e eu ativei a musicalidade que habita em mim mas que eu não olhava pra ela. Passei a sonhar com melodias inclusive.  No pico da pandemia eu me dei conta de que parte da minha saúde é o contato direto com a natureza, o mar principalmente. Alias, mergulhando eu identifiquei que o mar é o meu lugar no mundo, onde eu me sinto mais pertencente. Percebi que dentro da gente existe um oceano com mares calmos e turbulentos, cheio de criaturas, paisagens e correntes que nos prendem e soltam. Então não pensei duas vezes e me mudei pra Ubatuba, litoral de São Paulo. Fiz amigos, comecei a surfar e frequentei os eventos culturais locais. A vida simples e a riqueza da cultura caiçara me encheram os olhos. A forma com que os caiçaras lidam com o tempo e enxergam a vida é totalmente diferente de quem vem da capital. Sinto que conseguem aproveitar a natureza ao redor em cada detalhe e aprendem muito com ela. Eu, caipira, sempre deslocada na capital me identifiquei instantaneamente. Daí o processo de compor começou a ficar mais interessante, até porque cada dia eu tinha um escritório em cenários absurdamente lindos e inspiradores. Me lembro por exemplo de começar a compor com o barulho do concerto de um barquinho na praia, inspirada pelo canto de pássaros, pelas texturas, cores e desenhos de areia, entre tantas outras coisas.  O mar é uma grande memória do mundo e eu sinto que somos feitos dele!

3. MarAdentro mescla uma variedade de gêneros musicais. Como foi o processo de escolha desses estilos? Algum deles é particularmente significativo para você?

Eu amo a diversidade e suingue que tem na musica brasileira, sua raiz africana principalmente. Adoro escutar a conversa de instrumentação e escuto muitas músicas diferentes, principalmente as mais antigas, de samba, iejexá, baião, ciranda… Em paralelo as canções, eu sempre escuto musica instrumental minimalista, impressionista como Debussy, Eric Satie, Philip Glass… esse tipo de música me gera concentração, imaginário e eu fico hipnotizada. Acho que as minhas composições nascem desse balaio. Talvez sejam elas que escolhem os próprios caminhos porque eu não fico pensando no gênero pra compor. Na maioria das vezes depois que a música nasce é que eu penso sobre o gênero. Como eu amo um piano bem tocado, pensei que ele deveria ser o fio condutor do álbum e foi aí que eu convidei a Juliana Rodrigues. Levantamos muitas referências. Sito que ela trouxe referências dos possíveis caminhos musicais e eu das sensações que eles me causam.

4. Em suas músicas, você utiliza muitas metáforas e jogos de palavras. Pode falar sobre a importância desses recursos em sua escrita e como eles ajudam a transmitir suas emoções?

Nas aulas de português, o que eu mais gostava era interpretação de texto, principalmente dos recheados de metáforas e das poesias concretas. Cada um entende de um jeito a mesma história. Figuras de linguagem pra mim são sensoriais e me levam a reflexão seja pelo som, seja pelo sentido. Sensacional é a sensação de surgir o racional sobre o sentir. É sobre o som, sobre a textura, sobre o signo, sobre o sentido e ressentido das palavras em determinada organização. Gosto dessa brincadeira. Em MarAdentro eu já começo no título (Mara dentro/ mar a dentro), tem “Serei A”, “gente que cai e pira, gente que cai e sara”, “sabe o canto (sábio canto) / sabe as dores (sábias dores)”, “o amor é uma ponte, aponte (ou a ponte) pra onde quiser”, entre outras.

5. O álbum reflete a influência de artistas como Dorival Caymmi, Milton Nascimento e Djavan. Como esses artistas e suas músicas impactaram sua jornada musical?

Eu tenho paixão por Djavan e Milton desde criança. Djavan pela rítmica única das palavras com a melodia, os significados não óbvios das frases, o suingue, a musicalidade riquíssima! Pra se entender Djavan é necessário escutar muitas vezes a mesma música, raciocinar. A gente vai criando hipóteses do que ele quis dizer e isso pra mim é uma delícia. Milton eu acho que é imagético, é visual. Eu escuto e imagino mil coisas. Tudo é cenário, é história e me traz sensações profundas que reverberam por muito tempo. Milton toca na minha alma. Dorival eu conheci mais adulta e pelas canções do mar. A interpretação na voz, a melodia teatral, a narrativa única me deixam enlouquecida. Dorival sabe ser simples e complexo ao mesmo tempo. Dorival eu sinto forte mesmo na leveza. Levo com muito carinho todos eles no meu repertório como cantora.

6. Como foi trabalhar com Juliana Rodrigues na produção musical e nos arranjos de MarAdentro?

Eu escolhi a Juliana porque me apaixonei pelas composições instrumentais dela e pela forma com que ela toca piano. Bem antes, quando eu nem sonhava em gravar MarAdentro, eu cheguei a mandar mensagem pra ela, já querendo fazer algum som. Ela estava no meu radar. Pintou a oportunidade de gravar e eu sabia que ela seria a pessoa certa e ela topou na hora! Juliana sempre quis me escutar, me entender, acolher. E olha que eu me considero cheia de dobras. Durante o trabalho posso dizer que a gente riu, se entendeu, se desentendeu, entendeu de novo. Aprendi muito com ela inclusive. Não só musicalmente, mas em algumas sutilezas da vida também. Sinto que tivemos muita troca e momentos bem emocionantes ensaiando e gravando com o grupo de fandango caiçara de Ubatuba por exemplo. Além disso, ela que fez a ponte para a participação especial do Douglas Germano porque já estava em parceria com ele. Foi espetacular!

7. O disco conta com a participação de Douglas Germano e do Grupo de Fandango Caiçara de Ubatuba. Como essas colaborações enriqueceram o álbum e o que elas trouxeram de único para as músicas?

Não teria como ter Ubatuba de cenário e não dar o palco para o Grupo de Fandango Caiçara que é tão importante para a perpetuação da cultura local. A música “Gente que cai” eu compus para ser simples, mas cheia de sentidos, uma mistura entre minha raiz caipira e o meu coração que é caiçara. Como eu não sou nascida no litoral, eu jamais poderia ter a postura colonizadora com a minha música. Então, desde o inicio, a minha ideia e da Juliana sempre foi de abraçar o que viesse neste desafio porque a intenção era a de construir com o que chegasse deles a partir da minha proposta. E eles acrescentaram muito e de forma surpreendente! Foi absurdamente emocionante ver a minha música sendo interpretada por eles e do jeito deles. A Juliana foi coordenando os acordes, mas eles que criaram os fraseados, os ponteados. Por fim, acabamos mudando até alguns trechos da melodia que eu canto para entrosar melhor com a interpretação do grupo.

E sobre o Douglas, eu digo que foi um grande presente que eu recebi! Desde quando eu o escutei pela primeira vez há poucos anos atrás, eu fiquei apaixonada porque as composições e interpretação dele de fato mexem comigo! Douglas tem uma presença forte, ao mesmo tempo potente e delicada. Quando a Juliana fez o convite, ele topou e eu pasmei, foi um processo até me centrar novamente. Gentil, musical e expressivo, Douglas trouxe uma interpretação linda para a faixa “Ubá Guapuruvu”, o que até me inspirou a mudar algumas intenções durante a gravação das vozes. Foi tão legal a troca que eu o convidei a participar do show de lançamento em Ubatuba e para o meu espanto ele topou na hora!

8. A faixa “Ubá Guapuruvu” tem uma participação especial de Douglas Germano. O que essa canção representa para você, e como a presença de Douglas acrescentou à música?

Diferente das demais, esta canção eu compus escolhendo muito as palavras porque através da narrativa, eu queria trazer um pouco do que sinto de rebuscado no linguajar caiçara que me soa de forma quase lírica e arcaica. Morando em Ubatuba infelizmente as vezes a gente fica sabendo de pessoas que desaparecem em alto mar e isso sempre me impacta demais. Então eu passei a imaginar como seria a vida de pescador, os desafios em alto mar, a passagem para quem se vai e também para quem fica e busquei amarrar tudo isso à cultura caiçara. Ubá significa canoa de um único tronco, cavada no centro. Guapuruvu é uma árvore cuja madeira se faz canoa a caiçara. Ambas, palavras de origem tupi guarani. É uma das minhas musicas favoritas e eu quis que ela soasse forte e de forma bem sensorial através das modulações entre as estrofes e instrumentos. Desde o inicio eu imaginava os metais e os pratos de bateria para trazer a ideia do temporal se formando e depois os destroços. Douglas cheio de interpretação, foi a cereja do bolo com sua voz potente, firme e ao mesmo tempo sensível.

9. Algumas músicas têm títulos que chamam atenção, como “Placenta do Mundo” e “Serei A”. Pode nos contar um pouco sobre o que inspirou essas faixas?

Eu gosto de dizer que algumas músicas chegam a jato pra mim, como um sopro, como se já existissem e eu só ajudasse ali no processo de nascer. E por coincidência essas duas foram assim. Eu elaborei pouca coisa, foram muito intuitivas. Pra mim, o mar é uma entidade. É uma grande memória do mundo. É o responsável por toda origem e nutrição da vida na Terra, até porque 97,5% de toda a água do nosso planeta azul é salgada. E eu sinto que de alguma forma nós somos feitos de mar. Então ele é a grande placenta do mundo que nutre a tudo. Cuidar dos oceanos é essencial para a vida e apesar de sabermos disso, ainda sim somos carentes de informação.

Serei A surgiu quando eu estava esperando uma onda no surf, mas desisti pra ficar admirando  tamanha beleza do que eu estava vivendo, tanto no cenário visual, como em momento de vida de transformação, de transição, de coragem. Serei A eu falo da potência do feminino, de transmutação, dos naufrágios das dores de onde nós mulheres, não cabemos mais. Não sou sereia, mas eu Serei A…

10. “Gente que Cai” celebra a cultura caiçara de maneira profunda. Como foi o processo de criação dessa música e o que deseja transmitir ao público por meio dela?

Eu sou nascida no interiro de São Paulo, sou caipira. Fui morar na capital e não me encontrei. Vivi uma depressão profunda e busquei melhor qualidade de vida no litoral. Entendo que assim como eu, muitas pessoas fizeram o mesmo caminho, de buscar uma vida mais tranquila e equilibrada morando na praia. Por isso brinquei com os sentidos. A canção é bem simples, com apenas quatro frases: “não há nesse mundo quem não tenha uma tristeza pra chorar. Não há nesse mundo quem não tenha uma alegria pra cantar. Tem gente que cai e pira (caipira), tem gente que cai e sara (caiçara).” Para amarrar a musicalidade, misturamos a música caipira com o fandango caiçara que é bem alegre. Toda a parte musical foi tocada e cocriada com o Grupo de Fandango Caiçara de Ubatuba e me emociona até hoje lembrar. Para dar aquele toque final característico, Mario Gato (caiçara de grande envolvimento na cultura local) conta um causo bem engraçado entre caipiras e caiçaras.

11. Sua formação é bastante diversa, incluindo teatro, canto, percussão e dança. Como essas várias formas de expressão artística influenciam sua música?

Eu penso que separamos as artes para estudar e se aprofundar, mas no fundo arte é arte e as coisas funcionam melhor de forma interligada. O corpo só dança porque entende e sente a música. A voz só canta porque ela dança dentro do corpo. Um ator pinta com seu corpo-voz uma cena, e assim por diante. Caso contrário, estamos falando de técnica e a técnica sozinha é meio chata. Na minha voz tento sempre colocar o máximo de expressão, a serviço da comunicação e conexão, por isso busco o caminho da interpretação, para viver o que estou cantando. Se eu sinto, eu comunico. O que eu quero é tocar as pessoas, emocionar, me comunicar através do sensível.

12. Você já trabalhou em diferentes projetos e estilos, como no musical Fleetwood Mac Rumours Tribute e com a Banda Diabaria. Como essas experiências contribuíram para a concepção de MarAdentro?

O musical foi o momento em que eu decidi focar no canto e retomar aos palcos. Eu estava tão sedenta por isso que acabei passando no teste. Interpretar Stevie Nicks não foi fácil, mas foi transformador porque pude colocar muita interpretação junto. Numa das apresentações me emocionei de verdade cantando Landslide. Ali eu tive certeza de que era isso o que eu queria, me emocionar e tocar as pessoas. Já a Banda Diabaria é a minha grande diversão porque eu adoro ter o publico cantando comigo, se divertindo, dançando. Como ela é toda carnavalesca tropical, eu deito e rolo no repertório! Faço muitas brincadeiras durante o show e o pessoal se acaba! Acho que essas duas experiências me deram muita confiança em mim mesma e eu pude olhar para as minhas várias facetas artísticas, principalmente no quesito da plasticidade vocal.

13. Em 2023, você gravou backing vocal para Adriano Salhab. De que maneira colaborar com outros artistas molda ou inspira sua música?

Tudo é troca nessa vida. Se a gente se abre para o conhecimento, tudo é aproveitado, ainda mais quando se trata de troca com pessoas, e o Adriano é querido demais. Eu nunca tinha gravado backing antes. Aliás, aquela foi a minha segunda experiência em estúdio profissional gravando voz. Backing vocal parece ser fácil, mas não é muito porque precisa timbrar legal, costurar na música. Fico muito feliz com convites assim. Em shows eu costumo sempre que possível, chamar participações porque dá outro colorido, outro astral, e é muito legal ver o que nasce a partir de caminhos que outra pessoa propõe. O mesmo aconteceu no álbum MarAdentro. Tanto Douglas quanto o grupo de fandango caiçara trouxeram suas características pessoais e isso soma muito no resultado final.

15. Que mensagem você espera que os ouvintes tirem de MarAdentro? Há algum sentimento ou reflexão específica que gostaria que eles levassem consigo?

Cuidemos de nossos oceanos, sejam os nossos mares calmos e turbulentos da mente, repleto de criaturas, sejam os mares de fora e todo o bioma marinho, essa grande placenta do mundo, essa grande memória ancestral!