Entrevista: Lílian Rocha, cantora
1. O que te inspirou a criar “Do Nilo” e como você decidiu explorar as conexões entre a arte brasileira e as músicas africanas?
Do Nilo nasceu da minha trajetória como artista do corpo e da palavra, atuante em espetáculos e projetos de variadas linguagens da cena. O meu começo no palco foi através das danças do ventre, passando por danças afro-brasileiras e depois o universo Mandeng (Oeste Africano) em 2016, através do Ballet Koteban. De lá pra cá, tive experiências profissionais com artistas de diversas partes do continente africano, principalmente Moçambique. Durante a pandemia, participei de um disco que foi feito na collab Brasil-África do Sul. Então, por todas essas experiências incorporadas desde a minha infância até a vida adulta, sempre com referenciais mais ou menos próximos de musicalidades africanas, o meu trabalho autoral floresceu.
2. Como foi o processo de combinar as sonoridades das canções populares brasileiras com as musicalidades do Magreb, Oeste Africano e jazz? Qual foi o maior desafio nessa fusão de estilos?
Foi um processo artesanal, lento e bastante cheio de referências compartilhadas entre eu e o Otis Selimane, que assina a direção musical junto comigo. Passamos meses compartilhando artistas, ouvindo juntos diferentes repertórios e escolhendo como cada sonoridade se relacionava com o que queríamos traduzir em termos de arranjo. Paralelamente a isso, também fomos pesquisando no próprio repertório as dicas pro momento de referenciar cada linguagem e por isso, os discursos sonoros do disco são de extrema profundidade. Daria pra dar uma entrevista sobre cada música e seu arranjo.
Por outro lado, misturar as linguagens de diversas africanidades com jazz e canção popular brasileira foi um processo orgânico e natural porque para além de um conceito, é uma realidade no meu corpo, no modo como foi gestada a minha escuta e como, consequentemente, eu componho. Isso tudo já vem na composição. Os arranjos colocaram luzes sobre o que já era fundamental na composição.
3. Você menciona que o álbum transmite uma mensagem de reconhecimento histórico da cultura afro-diaspórica. Pode nos contar mais sobre como essa perspectiva é refletida nas faixas?
O álbum DO NILO faz uma espécie de viagem, que começa em Minas Gerais, terra dos meus ancestrais, com a música Raiz Forte e viaja até as sonoridades do Norte Africano com o alaúde de Gracinha misturado a sotaques musicais diversos: o atabaque, os pandeirões e até o ritmo Marrabenta, de Moçambique, que a bateria cita, mostrando os diálogos interculturais do disco. Depois, em Brinco de Princesa de Mali, descemos ao Oeste Africano, já dialogando também com as linhas de cordas Bantu tocadas pelo músico congolês Erick Khalo N’ji. Em Redonda, navegamos de novo ao Atlântico, com um arranjo que faz referência ao gênero musical Morna, do país Cabo-Verde, um dos lugares que mais me inspiram musicalmente. Em Cumbuca, voltamos a um Brasil ainda mais diverso, nordestino, com a voz baiana de Josyara e a percussão Pernambucana de Mestre Nico, além dos arranjos vocais da paulista sambista Victória e da hermana uruguaia Luana. Em O Perfume do Caju vemos essa América do Sul com o bolerão ao estilo clássico cubano, interpretação dividida com Bia Doxum. Em Amefricana abrimos o “lado B” do disco, com a presença da moçambicana Lenna Bahule, artista tão marcante em minha trajetória. Daí a viagem continua por paisagens ainda mais profundas com as faixas Batizado de Lua ouvimos um fundamento de medicina popular tradicional, colhido durante as gravações do meu primeiro documentário, ainda inédito. Em Ventre Minas e Lua Nova, trago composições instrumentais em voz, com a presença da mineira Júlia Tizumba, meu mestre Amauri Falabella (compositor de Brinco) e o grandioso Jota.Pê. São faixas sem texto, que promovem um mergulho em sonoridades ancestre-futuristas.
Em Te Encontro em Dakar, viajo pro futuro através do som do Sabar, tocado pelo músico senegalês Moustapha Dieng e através dos sopros de Sidmar Vieira e o contrabaixo de Sidiel Vieira. Ali acaba o disco, que ainda conta com uma faixa bônus, mais pop, chamada Sua Vez, onde eu apresento o que pode vir a ser um dos próximos trabalhos, numa linguagem conceitual mas também bastante popular.
Emtão, DO NILO é esse rio que corre e conecta Brasis e Áfricas, em uma perspectiva contemporânea, de futuro.
4. Como a obra e o pensamento de Lélia Gonzalez influenciaram a criação deste álbum? Quais aspectos do seu legado você buscou incorporar em “Do Nilo”?
Lélia é uma intelectual que eu venho estudando desde 2019 por conta do meu trabalho acadêmico em Educação Musical. No ano de 2024, junto a Guinho Nascimento, com a obra Gorée, pude abrir a maior exposição a respeito da obra dela, no Sesc Vila Mariana, em 26 de Junho, dia do meu aniversário e do lançamento do primeiro single do disco. Então, como cita outra grande referência nossa, Leda Maria Martins, o tempo é espiralar e Lélia vive no pensamento negro contemporâneo, do qual eu sou consequência, também. O conceito de PRETUGUÊS de Lélia me influencia na liberdade poética dos meus textos, assim como na percepção de que existe uma “idiomática” própria dos povos descendentes dos africanos que aqui chegaram. E eu levo isso inclusive, ao limite do som: como fazer uma música popular brasileira que seja original em termos de linguagem/idioma? Como cantar de modo que eu não pareça uma cantora genérica de qualquer lugar do mundo? Como trazer esse pretoguês pra linguagem do nosso som mpb/jazz/brasileiro? É nisso que Lélia me instiga. E disso nasce também o interesse pela Amefricanidade, no sentido de pensar que somos frutos dessa mistura/encruzilhada de mundos e isso não apaga a nossa matriz africana, só a coloca ainda mais em relevância por sua capacidade de diálogo e reinvenção.
5. O álbum conta com várias colaborações. Como foi trabalhar com artistas como Bia Doxum, Josyara e Otis Selimane? Essas parcerias trouxeram novas perspectivas para o projeto?
As parcerias são a principal riqueza deste álbum, justamente por toda a sua poética ser a respeito do encontro, da memória coletiva e da perspectiva que só pode haver no horizonte, na encruzilhada. Lenna Bahule, Bia Doxum, Amauri Falabella e Ballet Koteban são parcerias com as quais já trabalho há pelo menos 7 anos e poder tê-los no meu trabalho de estreia é um retrato da nossa bonita história compartilhada. Otis chegou em 2019, em 2021 gravei a música de abertura de seu primeiro álbum e através da nossa parceria decidi convidá-lo para co-dirigir o disco comigo pela sua musicalidade expressiva e por ser uma pessoa africana. Pra mim, era de extrema relevância que houvesse pessoas do continente envolvidas no processo de produção musical. Juntos, trabalhamos em detalhes os arranjos, a produção e a pós-produção e ele também trouxe músicos maravilhosos pro trabalho, além de botar fé comigo em um disco ousado. Outras pessoas como Josyara e Júlia Tizumba, eu já admirava e pude, através do disco, poder me aproximar. Jota.Pê já era um querido há muito tempo, vi toda a sua ascensão e ter ele comigo foi uma benção. Cada pessoa, das participações especiais aos/as instrumentistas são fundamentais na construção da sonoridade do disco e colaboraram de forma profunda pro resultado impactante do disco.
6. O que o título “Do Nilo” representa para você e como ele se conecta com a temática do álbum?
Nilo é o nome do maior rio do continente africano, lugar de conexão entre mundos/culturas e é também o nome do meu ancestral direto, meu pai. Deste modo, DO NILO é um culto à ancestralidade, ao meu caminho nas artes (que começou através das danças do ventre) e é uma referência a essa necessidade ancestral e presente de criar diálogos entre Brasil e continente africano.
7. Qual é a principal mensagem que você deseja transmitir ao público com “Do Nilo”? Como espera que os ouvintes se conectem com as músicas?
A principal mensagem é a ousadia de sermos originais em nossa forma de fazer cultura, de ser um povo diverso, de cultuar as nossas matrizes e as nossas formas únicas de nos projetar pro mundo. É um trabalho sobre a liberdade, sobre o ventre livre, a amefricanidade, sermos mais que o estereótipo colonial histórico e atual nos impõe. Que possamos quebrar com o padrão estético e possamos nos reinventar a partir da pesquisa de quem realmente somos.
8. Você já lançou alguns videoclipes e há mais por vir, como o de “Brinco de Princesa de Mali”. Como a parte visual complementa a narrativa e a mensagem do álbum?
Nos audiovisuais, feitos de forma independente e colaborativa, contando com uma rede de profissionais afim de “fazer acontecer” mesmo sem as condições ideais, temos a chance de dialogar com o público através de imagens que apresentam diferentes personas da artista principal. Em cada um dos videoclipes é uma “Lílian” diferente que aparece. Isso é uma coisa muito massa porque me oportuniza demonstrar a construção de performance que também faz parte do trabalho.
9. Você menciona que o álbum é uma fotografia da cena musical preta em São Paulo. Como você enxerga essa cena atualmente e qual é o papel de “Do Nilo” dentro dela?
Somos uma geração de artistas que têm a oportunidade de assistir em vida algumas das nossas grandes referências, agora encerrando carreiras e ao mesmo tempo estamos nos construindo em um período que nos exige alta performance, profissionalismo e capacidade de adaptação a contextos diversos. A cena musical preta em São Paulo é muito rica em musicalidade e potencial, ela é composta por referências contemporâneas do Brasil e do mundo. Precisamos é de mais valorização e também de uma cultura interna de mais respeito recíproco e fortalecimento coletivo, não somente discursivo.
Não sei responder o papel de Do Nilo nela, o tempo dirá! Rs!
Como artista, estou fazendo o que posso: o meu trabalho.
10. Agora que “Do Nilo” está lançado, quais são seus planos futuros? Podemos esperar mais projetos que explorem essas temáticas e sonoridades?
Do Nilo vai se desdobrar em projetos afluentes. Para além do Espetáculo Musical, ele também vai se tornar um Espetáculo de Contação de Histórias e se relaciona ao meu documentário, ainda inédito “Bença: do Kotegipe ao Koteban”. Paralelamente a isso, estou reelaborando o show “Canção da Améfrica: Tributo ao Clube da Esquina e Milton Nascimento”, que estreei ano passado e outras edições da série de shows que estou elaborando dentro do tema Memória da Música Popular Brasileira. Ainda, neste movimento, continuam os trabalhos em colaboração com artistas de diversas partes do continente africano, com possibilidade de trânsitos entre Brasil – Guiné Conacry – Senegal – Cabo Verde – Moçambique e África do Sul. Desejo que DO NILO seja um passo a mais nessa estrada de conexões que vislumbro pra hoje e pro aman