Entrevista: Ana Paula Gonçalves, jornalista

1.       O que motivou você a escolher Vale Tudo como tema central para sua tese de doutorado e, posteriormente, para o livro?

No primeiro momento eu só sabia que queria estudar o Brasil e o brasileiro na época do final da ditadura, temos poucos livros que falam sobre o assunto, a década de 1980 muitas vezes é retratada como “perdida”, mas sempre me intrigou, pois foi repleta de acontecimentos importantes para a nossa história e sociedade. Como comunicóloga cheguei no recorte das novelas da época pelo alcance e sucesso, depois foquei em Vale Tudo por ser uma obra que tratava do momento de uma maneira direta e, por isso, fez muito sucesso.

2.       A novela foi exibida em um contexto político e social conturbado. Como você acredita que esses elementos contribuíram para o impacto da trama na época?

Na medida que os autores colocavam situações que estavam acontecendo no contexto da obra, fazendo com as pessoas se sentissem representadas em alguns momentos e partes da trama.

3.       Você descreve Vale Tudo como atemporal. Quais aspectos da novela continuam relevantes no Brasil atual?

Nem sei por onde começar (risos), acho que muito do Brasil de Vale Tudo em se tratando de sociedade, preconceitos, corrupção e desigualdade, infelizmente seguem relevantes.

4.   A novela aborda questões como ética e corrupção. Como você vê o papel das telenovelas na conscientização social e política do público?

Atualmente pouco e, mesmo na época, acho que esta questão de conscientização é complexa, a telenovela servia e serve como uma forma de sair um pouco da realidade, o grande público que chegava em casa cansado do trabalho, no geral, não problematizava as novelas. A não ser obras específicas, que fizeram sucesso com campanhas de conscientização – como muito bem faziam, por exemplo, Manoel Carlos e Gloria Perez, não acho que é pela telenovela que teremos consciência social e política, especialmente enquanto não tivermos a grande população com estudo de qualidade e detentora de seus direitos, da política e de nossa sociedade.

5.       Quais foram os principais desafios ao analisar Vale Tudo e conectá-la com As transformações da sociedade brasileira nas últimas décadas?

Na verdade eu não busquei conectar a obra com as últimas décadas, meu foco foi a sociedade, a política, a televisão daquela época. É claro que muitas coisas são ainda contemporâneas, mas era outro Brasil, não temos como comparar, por exemplo, uma televisão com sete, oito canais com os tempos de hoje.

6.       Você menciona que a novela foi a última a passar pela censura. Qual foi o impacto dessa censura na narrativa e na recepção do público?

Acredito que para o público, em meio a tantas questões políticas, na época não foi tão impactante, estamos falando aqui já do final da ditadura. Apenas a longo prazo, em análises posteriores, pudemos ter conhecimento do que as emissoras e os autores passavam, na época poucas vezes houve impacto para o grande público, a não ser eventos pontuais como o emblemático veto de Roque Santeiro às vésperas da estreia, o que foi noticiado pela emissora em seu jornal principal e chamou a atenção de todos.

7.       Rosane Svartman destacou sua habilidade de unir pesquisa acadêmica com paixão por telenovelas. Como foi esse processo de escrita e pesquisa para o livro?

Primeiro eu estudei Brasil, passei meus dois primeiros anos do doutorado focada na história da época, li sobre a formação da sociedade brasileira, busquei os clássicos do pensamento social. Depois me debrucei nas telenovelas e na televisão no Brasil e por último assisti todos os capítulos de Vale Tudo, fazendo uma relação com a trama e o momento que o país estava vivendo.

8.   Você acredita que a teledramaturgia brasileira ainda tem o mesmo poder de mobilização social que tinha nos anos 80 e 90?

Não. Hoje a internet mobiliza de maneira bem mais efetiva, a teledramaturgia segue forte, um ótimo produto de entretenimento, mas poder de mobilização não podemos comparar o seu auge com os dias atuais. Para exemplificar: uma telenovela tinha índices de ibope na casa de 70, 80 recorrentemente. Atualmente isso é quase um milagre quando acontece.

9.   Em seu estudo, você aborda temas como racismo e machismo nas telenovelas. Como você avalia a evolução do tratamento desses temas na TV brasileira?

Estamos caminhando, mas o processo é lento pois a televisão é um produto, ela precisa ter anunciantes e estes querem que a sociedade se sinta representada. Isto é, enquanto a sociedade for racista e machista, dificilmente teremos muita representação nos produtos televisivos. Agora, não posso negar que evoluímos muito! Só de termos personagens protagonistas negros, já diz que estamos caminhando.

10. Quais foram os principais aprendizados que você tirou desse mergulho na história de Vale Tudo e na análise do Brasil daquele período?

Muitos, como falei anteriormente, estudar esta época foi muito importante para entender nosso processo democrático e como nossa sociedade se formou ao longo das últimas décadas.

11. Como foi a experiência de ter Rosane Svartman na sua banca de doutorado e o apoio dela na publicação do livro?

A Rosane é uma pessoa muito importante para meus estudos. A tese dela me ajudou quando estava escrevendo a minha, com conhecimentos e informações muito importantes. Não a conhecia e tive medo quando fiz o convite, felizmente ela é uma das pessoas mais generosas que conheço, inclusive acho que seu talento de enxergar o outro e escrever tão bem tem relação com esta generosidade. Em todo o meu trajeto depois da defesa ela sempre foi muito generosa comigo e eu sou muito fã dela, achando inclusive que Vai na Fé foi a melhor novela que vi nos últimos dez anos.

12. Você tem planos de continuar estudando outras novelas que marcaram a teledramaturgia brasileira? Se sim, quais seriam as próximas?

No momento não, meus estudos estão voltados nos últimos anos para as relações raciais, muito do que estudei para a tese sobre o assunto ficou de fora e o letramento racial é uma questão que hoje me faz querer estudar mais e mais. Claro que sempre estou de olho nas novelas, especialmente para ver se a questão racial está sendo bem debatida e representada.

13. O título do seu livro faz referência à música de Cazuza, “O Brasil mostra a sua cara”. Como essa canção dialoga com a mensagem central da novela e do seu livro?

A abertura emblemática, a voz de Gal Costa, esta música foi uma união perfeita: fala muito sobre o que autor quis contar.

14. Com o lançamento próximo, quais são suas expectativas para a recepção do livro pelo público?

Eu espero que as pessoas mais velhas lembrem da época e que tenham acesso a curiosidades, informações que encontrei em meu estudo e, a geração mais nova, possa entender como era a televisão na época, tão diferente, assim como o Brasil os brasileiros.

15. Que mensagem você gostaria de deixar para quem ainda não assistiu Vale Tudo e para aqueles que pretendem revisitar a obra a partir do seu livro?

Assista Vale Tudo (a original) pensando no contexto que vivíamos: final da ditadura, inflação, grande número de analfabetos, miséria, corrupção etc. Mas, também assista por ser uma obra de uma qualidade incrível, com texto e atuações que a fizeram ser uma das novelas mais lembradas e queridas.