1. Amanda, como surgiu a ideia de escrever “Tempo-abstrato”?
A ideia inicial surgiu de forma corriqueira. Eu estava no aeroporto, voltando de Curitiba para São Paulo, quando me veio à cabeça: e se uma mulher que sempre pensou ser hétero um dia viajasse para o futuro e descobrisse que agora está casada com outra mulher? E pensei, “caramba, eu adoraria ler um livro com essa temática”. Passei o voo inteiro rascunhando a cena final — sim, a primeira cena escrita do livro foi a última.
2. O que te inspirou a criar a personagem Victória Conti?
A Victória nasceu das minhas frustrações com a vida. Ela é resultado da idealização das minhas qualidades, exacerbação dos meus defeitos e elucubração de quem eu poderia ser.
3. Quais desafios você enfrentou ao escrever um romance com temas tão profundos como a polarização política e o conservadorismo?
Esse não é o foco principal do livro, mas é algo que está presente na narrativa porque não vejo como falar sobre a complexidade da vida em sociedade sem adentrar de alguma forma a esfera política. Meu maior desafio foi conseguir retratar isso de uma maneira natural. Foi o que tentei fazer, pelo menos. A polarização política e o conservadorismo se mostram no cotidiano, em uma simples fala de nossos pais, em uma conversa corriqueira com a vizinha. Grande parte de “Tempo-abstrato” se passa entre 2012 e 2014, uma época crucial para o cenário político e que tem consequências que ecoam até os dias atuais. Não tinha como eu deixar isso de fora, mas a minha preocupação foi inserir esse cenário ao dia-a-dia das personagens de um modo que fizesse sentido para a trama, sem que parecesse uma cartilha informativa.
4. Como você lida com as expectativas e pressões da vida adulta, temas que também são explorados no livro?
Lido do jeito que dá, como todo mundo. Acho que não tem muito segredo, né? Vou levando, procuro não me cobrar muito (mas em geral falho bastante nesse quesito). O que me resta é não faltar a terapia, ler uns bons livros e dar umas risadas com meus amigos. Acho importante procurar entender quais são suas válvulas de escape para assim não explodir.
5. Você acredita que “Tempo-abstrato” pode ajudar jovens adultos a se sentirem menos sozinhos em suas jornadas?
Eu espero que sim. Uma outra motivação para eu ter escrito “Tempo-abstrato” foi justamente o fato de perceber que a maioria dos meus amigos ou conhecidos também se sentem perdidos. Sempre que conversamos sobre esse sentimento, eu me sinto menos sozinha. Eles, assim como eu, colocam uma cobrança sobre si mesmos que não faz sentido. A gente não precisa resolver toda a nossa vida antes dos trinta, antes dos quarenta ou até mesmo antes dos cinquenta. A verdade é que nós sempre estaremos um pouco perdidos, isso faz parte da vida. É isso que eu tento dizer ao longo da trajetória da Victória.
6. Pode nos contar um pouco mais sobre as conexões humanas que inspiraram a trajetória de Victória?
Eu tenho um grupo de amigos que é como uma família para mim, inclusive, todos os personagens do livro têm um pouco de cada um deles, como uma homenagem mesmo. Eles também estão aprendendo a navegar na loucura que é a vida adulta, e é nessa confusão compartilhada que a gente se ajuda, nem que seja só para rir da nossa própria desgraça. Isso está muito presente nas relações da Victória, todos em sua volta estão tentando se encontrar, algo que a ajuda a matar a solidão, mesmo que ela não entenda isso de imediato.
7. Como foi o processo de desenvolvimento da viagem no tempo na narrativa do livro?
Sempre gostei de ver documentários sobre o universo e as teorias que buscam explicar o espaço-tempo. A teoria do universo em bloco é a que mais me fascina. Meu pai faleceu quando eu era criança, e essa ideia de que passado, presente e futuro se convergem, a possibilidade do eterno mesmo na morte, me acalenta desde então. Também procurei referências nas artes, revi “De Volta para o Futuro” (que marcou a minha infância) e li livros como o visceral “Kindred”, da Octavia E. Butler, por exemplo.
8. De que forma suas experiências pessoais influenciaram a escrita de “Tempo-abstrato”?
A morte do meu pai na minha infância certamente influenciou a maneira como encaro a vida e o luto, dando um certo cinismo à escrita do livro, mesmo que também tenha uma visão mais poética e, por vezes, esperançosa. Minhas frustrações como atriz (faço teatro desde os dez anos) e como jornalista também invadem toda a premissa de Tempo-abstrato. Por fim, sofro de ansiedade e tentei dar voz a isso por meio da Victória.
9. O que você espera que os leitores tirem de mais importante da leitura de “Tempo-abstrato”?
Que a vida é instável demais para ficarmos nos preocupando com um futuro que talvez até já esteja escrito.
10. Se você pudesse viajar no tempo, qual época gostaria de visitar e por quê?
Para a Idade das Pedras! Só por algumas horas, o suficiente para entender o que é viver em uma realidade em que não existam expectativas, sem capital, sem preconceitos, sem poluição. A modernidade traz muitas regalias, mas também esmaga a alma. Eu só queria algumas horinhas de sossego na sua mais pura forma.
11. Qual personagem do seu livro você gostaria de levar para um jantar e o que vocês conversariam?
Pode ser um pouco narcisista, mas sem dúvidas a Victória. Como poderia perder a oportunidade de conversar com alguém que viaja pelo tempo por meio de sonhos?
12. Se “Tempo-abstrato” fosse adaptado para o cinema, quem você gostaria que interpretasse a Victória?
Uma atriz nova no mercado, que seja descoberta especialmente para interpretar a Victória. Uma mistura de Phoebe Waller-Bridge, Fernanda Torres e Rose Byrne. Pode ser? hahaha
13. Você acredita que a sociedade brasileira está pronta para discutir abertamente temas LGBT+ como os que você aborda no livro?
Se ela está pronta, eu não sei. Mas, mesmo que não esteja, continuarei escrevendo livros com personagens LGBT+. Eu não escrevi sobre o amor entre duas mulheres para provocar ou para ensinar ou para chocar ou para “militar”. Eu escrevi um livro sobre a realidade que conheço, afinal, sou uma mulher bissexual, quase todos os meus amigos são LGBT’s, é natural que eu escreva sobre isso. Este é o problema de muitos heterossexuais conservadores, eles veem a sua sexualidade como o padrão, então qualquer história que saia dessa bolha cishet com a qual estão acostumados se torna uma afronta, uma “forçação”, como já vi sendo dito em diversos comentários nas redes sociais. O Brasil melhorou, mas ainda assim, infelizmente, é um país muito homofóbico. Diante da onda conservadora pela qual o mundo inteiro está passando, histórias com amores homoafetivos se tornam ainda mais importantes de serem contadas. Elas não podem ser reprimidas, ser LGBT+ não é um tabu, ou pelo menos não deveria ser.
14. O que você diria aos críticos que acham que a literatura deve ser neutra e evitar temas políticos?
Ao meu ver, nenhuma expressão artística, seja literária, teatral ou enfim, consegue ser neutra. Até porque, a neutralidade em si também é de certa forma um posicionamento, é ceder a sua voz para aquele que oprime (o que, se é esse seu objetivo, tudo bem, só não me diga que isso não é uma forma de posicionamento político). Os que esperam — e às vezes exigem — neutralidade dos artistas, realmente não sabem nada sobre arte. O artista (escritor, ator, cantor, pintor etc.) não é um bobo da corte que deve entreter meramente pelo ato de divertir, a verdadeira função do artista na sociedade é estimular o pensamento crítico.
15. O que te motivou a cursar uma pós-graduação em Tradução e uma segunda graduação em Produção Editorial?
Durante a escrita de “Tempo-abstrato” e o processo de revisão e leituras críticas do livro, acabei tendo maior contato com a área editorial. Percebi que esse ofício me interessava. Como não estava feliz com minha profissão de jornalista e estava completamente desiludida com minha carreira de atriz, migrar para o mercado editorial me pareceu um caminho sensato. Recomeçar nunca é fácil, demanda coragem e disposição, mas para mim valeu a pena.