https://abacus-market-onion.top Entrevista: Gabriele Leite, intérprete, arranjadora e compositora - Marramaque

Entrevista: Gabriele Leite, intérprete, arranjadora e compositora

1 O nome do álbum, “Gunûncho”, é um termo afetivo para sua naninha de infância e simboliza uma “reconexão” e um “desmame” de narrativas amarradas. Como este objeto de afeto da infância se traduziu na sonoridade e na curadoria do repertório do disco?

R: Bom, esse processo de curadoria começou a partir de conversas com Sylvio Fraga sobre produzir um disco, voltado para mulheres compositoras, contemplando uma escuta mais atenta para um conjunto de composições com poucos registros fonográficos e muito potentes.  Da conexão do nome foram conversas com meu diretor criativo Pedro Mattos, a ideia inicial era contemplar um nome que traduzisse bem esse viés de sonoridades afetivas, e foi assim reconectando com um elemento da minha infância o “Gunûncho” que a mantinha de crochê ganhou destaque. 

2 O álbum foca em compositoras que não eram violonistas. Qual foi o critério estético e técnico para selecionar obras de Chiquinha Gonzaga, Lina Pires de Campos, Tania León e Thea Musgrave que, mesmo escritas para outros instrumentos ou com outras referências, exploram o potencial expressivo do violão?

R: Bom aqui para exemplificar melhor o contexto é que Musgrave, Leon e Pires de Campos em um determinado momento da vida, escreveram para o instrumento, dedicando essas obras para violonistas, porém a ligação vêm de que elas mesmas não tocavam violão, o que é algo comum na vida de compositores e traçar esse desafio de escrever para um instrumento distante é o ponto de conjunção desse disco. Já os arranjos da obra da Chiquinha, são para também demonstrar o quanto a obra da maestrina se encaixa em diferentes sonoridades, nesse caso o violão virou o centro. 

3 A faixa da cubana Tania León, Paisanos Semos!, é definida como “a obra talvez mais dissonante e radical do disco”. De que forma essa peça dialoga ou contrapõe a sonoridade mais lírica de outras obras presentes no álbum?

R: A obra da Tânia León é o ponto culminante do disco na verdade, eu considero a conexão entre os lirismos do violão de Chiquinha e Pires de Campo e ao mesmo tempo a capacidade autêntica do instrumento em participar de uma esfera que reflete mais o contemporâneo, com suas técnicas estendidas e as dissonâncias comedidas, conversando também com o folclore da música de Musgrave, aqui trazendo ao centro uma ideia renovada de música cubana. 

4 O Gunûncho marca sua estreia como compositora com os Nano-estudos. O que a impulsionou a compor neste momento de sua carreira e como o lapso criativo no inverno de Nova Iorque se manifestou em peças como Gunûncho, Maracatu e Jongo?

R: Esses nano-estudos refletem um pouco da minha personalidade enquanto violonista, eu quis trazer a gentileza de fragmentos rítmicos conectados com algumas abordagens  técnicas do violão. E por sempre ter muito respeito a composição e entender que eu não me contemplo como uma compositora de formação, essa composição caminha mais como um presentinho para os amantes de violão. 

5 A produção musical é de Erika Ribeiro e a direção artística é sua e de Sylvio Fraga. Como se deu a dinâmica e a construção coletiva com essa equipe para moldar um álbum que busca desconstruir as “rigidezes da performance”?

R: Acho que desde as primeiras conversas eu consegui deixar explícito o objetivo de gravar um álbum do qual não me firmasse como intérprete virtuosa, mas sim que traduzisse o meu olhar musical sobre essas obras. E trabalhar com essa equipe foi a melhor das junções. A Erika é uma grande pianista e poder pegar os insights e o olhar da performance, sobre outra perspectiva fora do instrumento (violão) era o que eu estava procurando uma produção um pouco mais fora do viés violonístico. E o Sylvio com um ouvido e olhar atento contribuiu e muito para as clarezas técnicas que o disco sugere. 

6 Você menciona que o projeto celebra o legado de mulheres compositoras que “tiveram um encontro com esse instrumento tão belo e difícil de compor”. Qual a maior dificuldade ou desafio técnico em transpor e interpretar essas obras no violão clássico?

R: Bom, as obras foram escritas para o violão. A dificuldade foi em traduzir e montar o que essas compositoras tinham de ideia com relação a como fazer soar as frases, os momentos. Por exemplo, a obra da Lina Pires de Campos é toda vertical na escrita e na técnica, porém para funcionar é preciso tocar de maneira que soe horizontalmente e é aqui que o desafio começa. Diferente do piano o violão tem menos sustem de notas (elas morrem mais rápido), então a capacidade de conectar as notas precisam realmente de uma atenção a mais o que acaba dificultando bastante porque ela não usou harmonias que são mais desafiadoras para o violão  como no prelúdio no. 1. 

7 O álbum traz gravações inéditas, como as Serenatas de Thea Musgrave. Qual a importância de resgatar e difundir o repertório de compositoras ainda ativas e pouco gravadas para a história do violão de concerto?

R: A importância de fazer esse resgate é justamente propor que ainda se tem uma infinidade de repertórios a serem explorados como é o caso da música de Thea Musgrave, aproveitar o palco que se existe hoje em dia das redes sociais e instiga o jovem violonista estudante que está em busca de novos repertórios.

8 No eixo brasileiro, você revisita Chiquinha Gonzaga e Lina Pires de Campos. Qual a contribuição dessas duas compositoras, de épocas e estilos diferentes, para a música de concerto feita por mulheres no Brasil?

R: Na minha opinião Chiquinha Gonzaga é patrimônio musical do Brasil, por todos os atravessamentos e posicionamentos que ela enfrentou durante toda a carreira, enquanto mulher numa sociedade do final do século XIX e começo do século XX. Lina Pires de Campos, é o resultado dos caminhos que Chiquinha e outras compositoras abriram alas anteriormente. O mais interessante de quando se pesquisa principalmente sobre Pires de Campos, são as associações das quais ela estava atrelada como: “Filha do fulano” Aluna de ciclano” – todos esses homens. Sobre esse olhar eu entendo que a produção musical dessas duas compositoras são sim, um ato político sobre todos os olhares que elas enfrentaram e cada nota ali tem uma profundidade inimaginável de como é a vida de muitas mulheres no meio musical ainda hoje. 

9 Seu álbum de estreia, Territórios, focava na interpretação. Em Gunûncho,você se afirma como intérprete, arranjadora e compositora. Como essa expansão de papéis impacta sua identidade artística e sua visão de futuro na música?

R: A ideia é não desumanizar ou até mesmo não romantizar demais o fazer artístico,  para Gunûncho eu quis trazer meus processos de amadurecimento enquanto artista. O álbum vem para mostrar todas as camadas de um ser humano e tirar um pouco essa ideia do belo e da perfeição, algo que é totalmente vinculado com a música de concerto . Novamente é a fotografia da Gabi de 27 anos, estudante de doutorado, professora, violonista, produtora, arranjadora, compositora, filha, namorada é toda uma trama em conjunto.  

10 Você sugere ouvir o álbum “num sábado de manhã pós-café” ou “numa sexta-feira à noite antes de dormir”. O que torna o Gunûncho um álbum para a escuta íntima e acolhedora, em contraposição a um álbum de performance mais rigorosa?

R: Gunûncho é a representação daquela mantinha, eu enxergo esse álbum como uma calmaria frente à todo o agito da vida moderna. Para começar são obras pouco conhecidas, algumas têm trazem uma reminiscência de Territórios, mas em grande parte as faixas de Gunûncho são mais curtas e menos agitadas, evidenciando mais a expressividade musical não a partir do virtuosismo.  

11 A Rocinante é uma gravadora que enfatiza o som especial do vinil, sem compressão. O que o formato LP acrescenta à sua proposta de “desconstruir certas rigidezes” e se tornar algo “mais pessoal”?

R: O LP tem um som muito característico e que traz sem dúvidas uma proximidade com o que outra geração viveu em termos da relação com a escuta da música. Esse formato físico traz o que eu mais sinto falta hoje em dia que é sentar para escutar e apreciar música fora das reproduções automáticas das plataformas digitais e quase como se eu estivesse dando ali um concerto particular onde se tem um tempo de digestão entre os lados do disco. 

12 Além de ser uma das poucas violonistas clássicas na lista Forbes Under 30, você tem realizado turnês internacionais. Qual a recepção do público internacional (em Portugal e Holanda, por exemplo) a um repertório de violão de concerto com foco em compositoras?

R: Bom a recepção das turnês internacionais tem sido excelente, primeiro pela curadoria de levar esse repertório para lugares mais inusitados, onde a música instrumental tem menos protagonismo e a mágica no palco acontece quando eu comunico com o público que o meu objetivo como artista vem sendo ampliar a escuta da música “de concerto” abrindo espaço para novas percepções de escuta, sem essas rigidezes da música de concerto.