Entrevista: Rachel Cossermelli, cantora
1. Rachel, após três anos de trabalho dedicado, finalmente o projeto Fractal Feminino Vol. 1: Dolores Duran está disponível para o público. Como você descreveria essa jornada de empoderamento histórico?
Foi uma jornada intensa e longa, que ainda tem muito caminho pela frente. Mas eu me sinto extremamente orgulhosa de ter colocado esse disco no mundo, e de homenagear a Dolores de alguma maneira.
2. O que a motivou a escolher Dolores Duran como figura central desse projeto e como você acredita que seu trabalho resgata e recontextualiza a importância dessa compositora na música brasileira?
Parando pra pensar, a Dolores provavelmente esteve presente de alguma maneira na minha vida toda, meus pais são grandes fãs dela. Durante a faculdade encontrei alguns LPs na coleção do meu pai e comecei a escutar com mais cuidado e me apaixonei pelas letras que ela escrevia. Como intérprete ela era incrível, mas como compositora ela era um acontecimento. Eu pensava que, da mesma maneira que eu fiquei impactada pela obra dela, quem mais da minha geração e das gerações mais novas poderia se sentir assim também? Ela morreu muito nova, com 29 anos só. A maneira como ela escrevia a vivência dela pra mim é atemporal. Por isso que nesse disco só temos canções que ela teve participação na composição.
3. Pode nos contar um pouco sobre o processo de produção do álbum, especialmente considerando sua abordagem independente e o apoio do financiamento coletivo?
Lançar um disco independente é sempre muito desafiador. Eu juntei o dinheiro que pude com outros trabalhos como backing vocal, professora de canto e artesã, juntamente com um empréstimo e o financiamento coletivo pra conseguir levantar a verba pra finalizar o disco. O financiamento coletivo é difícil, envolve muita divulgação e incerteza mas ao mesmo tempo traz um quentinho no coração quando você vê as pessoas apoiando e curtindo o seu trabalho. No final das contas é necessária muita persistência e, não vou mentir, uma bela arriscada pra levar um projeto desse de forma independente. O retorno não é imediato, e as plataformas de streaming normalmente nao trazem uma renda significativa para o artista independente. Agora é esperar que o público curta e que a gente consiga fazer bastante show por aí.
4. Ao mergulhar na obra de Dolores Duran, você identificou desafios específicos ao trazer à luz composições que não alcançaram grande reconhecimento em sua voz. Como você superou esses desafios durante o processo de criação?
O processo de criação na verdade foi a melhor parte de tudo. É desafiador fazer releituras dessas canções, mas ao mesmo tempo é incrível descobrir uma música que é um tanto desconhecida e trazer ela pro mundo atual. Canções que são famosíssimas mas que boa parte da galera não sabe que é dela (como Estrada do Sol) também trazem o desafio de inovar no arranjo, de tirar aquela coisa de regravação e mergulhar na criatividade de uma releitura mesmo.
Tivemos um caso muito legal nesse disco, de Falso Amigos, que eu descobri graças à pesquisa de um biógrafo da Dolores, o Rodrigo Faour, que encontrou essa canção no acervo dela e constatou que ela foi gravada no máximo 2 vezes, a minha versão sendo possivelmente a terceira. Isso pra mim é incrível demais, essa faixa é uma das minhas favoritas.
5. A narrativa do álbum segue uma jornada emocional através das faixas, abordando temas como relacionamentos, saudade e recomeços. Como você organizou essa narrativa e o que espera que os ouvintes absorvam dela?
Eu organizei num formato de onda, um início que mostra uma pessoa arrebatada por um relacionamento, um caminho que acabou levando à uma desilusão e finalmente um respiro e renovação pra seguir em frente no caminho. Eu espero levar a galera junto comigo nesse percurso, notando que existe esse processo nas nossas vivências e que no final tudo passa e a vida segue.
6. Além do seu trabalho, o álbum apresenta colaborações significativas com outras artistas, todas com quem você estudou na faculdade de música. Como foi esse processo de colaboração e como essas parcerias enriqueceram o projeto?
As colaborações foram maravilhosas. Estávamos entre amigas, criando juntas como amigas e isso foi especial demais. Cada uma tem sua particularidade , sua zona de brilho, e eu quis destacar isso. As 3 participações vocais: Mari, Loreta e Zi tem vozes que contrastam com a minha de maneiras diferentes e isso deu uma camada de complexidade no todo do disco. A Tamiris, que participou no piano, trouxe uma classe e um repertório de harmonia pra nossa faixa juntas que me deixou embasbacada. Amo demais todas elas. Sem elas esse disco não seria o que é.
7. A capa do álbum é uma representação visual do conceito de fractal, fundindo os rostos de você e Dolores Duran. Pode nos falar sobre o simbolismo por trás dessa imagem e como ela reflete a essência do seu trabalho?
A capa é um bordado que eu criei a partir de uma foto minha e uma foto da Dolores. Na verdade eu namorava essa ideia há um tempo mas não tinha conseguido executar de uma maneira que eu gostasse, até que veio a ideia das linhas que conectam a gente. As linhas saem da boca da Dolores pro mundo, mas também saem dela pra dentro de mim. Isso pra mim simboliza muito a maneira como ela, e todas as artistas que eu encontrei na minha pesquisa, moldaram minha visão da presença feminina na música e minha formação como cantora.
8. Durante a sua graduação, você observou a falta de informações sobre a presença feminina na música brasileira do século XX, o que inspirou diretamente este projeto. Como você vê o papel da educação e da pesquisa na promoção da igualdade de gênero na música?
A questão da educação pra mim é o que mais me inspira a continuar esse projeto. Falando da minha própria experiência, posso dizer que revolucionou a maneira como eu enxergo a carreira na indústria da música. A gente sabe que é um ambiente altamente masculino e difícil pra uma mulher, mas aprender sobre o caminho que essas artistas trilharam pra cravar a obra delas na história é extremamente inspirador. Eu costumo dizer que elas criaram a estrada que a gente anda (e quem sabe um dia até corra) nos dias de hoje.
9. Além de lançar este álbum, você também atua como backing vocal em diversos projetos. Como você equilibra suas diferentes facetas na indústria musical e o que cada uma delas representa para você artisticamente?
A vivência desses outros projetos traz muita bagagem profissional. Você tá lá vendo no dia a dia como as coisas se desenrolam, e também vendo a dificuldade que mulheres profissionais nas mais diversas áreas da cultura enfrentam na rotina, um destaque aqui pras meninas que
trabalham com áudio.
Musicalmente falando é muito legal explorar vários gêneros e descobrir as estratégias e ajustes da voz pra cada um desses projetos.
10. Por fim, com o lançamento do Fractal Feminino Vol. 1: Dolores Duran, quais são seus planos futuros e como você espera que este projeto impacte a cena musical brasileira?
Enquanto existirem histórias de mulheres a serem contadas, eu espero estar lá contando junto. Esse disco é apenas o primeiro volume desse projeto, tenho várias outras artistas que eu gostaria de homenagear nos próximos anos. Espero que o público conheça essas obras , que esse projeto incentiva a curiosidade das pessoas em mergulhar mais no trabalho dessas artistas. Espero muito que outras artistas encontrem nelas as referências que eu também encontrei.