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Entrevista: Lígia Helena, atriz e escritora

1.   Lígia, o que motivou a criação de “URUCUM: as árvores não têm culpa”? Como a obra reflete sua própria jornada pessoal e familiar?

Um dia, em meio a pandemia, meu filho precisou fazer um trabalho de escola sobre ancestralidade, mandou um áudio para minha mãe pedindo os nomes e origens dos meus avós, a resposta de minha mãe veio com uma frase que me pegou em cheio: “tinha o avô holandês que casou com uma índia”, – na época eu tinha 36 anos e nunca tinha ouvido falar desta avó indígena, a narrativa sobre ela veio no mais da ausência de narrativa que da narrativa em si. Até hoje sei muito pouco sobre ela, mas sei muito sobre minha avó, sua filha, e sobre tudo que ela plantou no quintal da casa onde eu moro hoje, dentre as plantas um pé de Urucum que passou a fazer muito mais sentido em sua existência, assim como alguns gestos e costumes que minha avó tinha – provavelmente aprendidos de minha bisavó – como o de sempre catar piolhos em nossas cabeças cada vez que avançávamos sobre seu colo pedindo cafuné. 

Esta história foi o que me moveu a esta escrita, que acabou se debruçando sobre o entrelaçamento das histórias das mulheres das várias gerações de minha família, inclusive a minha – um desejo de demonstrar o quanto, apesar do passar dos tempos, seguimos vivendo histórias muito parecidas, salvo algumas alterações de cenário e possibilidade de reações diante delas.

2.   A obra parece transitar entre o passado e o presente, o que a levou a escolher essa abordagem não linear para contar a história de sua família?

Exatamente o desejo de evidenciar os ciclos da história, aquilo que se repete de geração em geração, aquilo que conseguimos romper não porque descobrimos algo novo, mas exatamente porque pudemos mirar a trajetória de nossas antepassadas e perceber os caminhos pelos quais não podemos mais caminhar, a contradição das relações mãe e filha e o espanto de, ao fazer 37 anos, recordar a minha mãe aos mesmos 37 anos e me perceber tão parecida com ela, não só fisicamente. Quebrar a linearidade para aproximar as contradições e as coincidências.

3.   O livro trata de temas como identidade, ancestralidade e o peso das histórias familiares. Quais são as reflexões mais profundas que você espera que os leitores façam após a leitura?

Acho difícil dar conta de todos os caminhos que os leitores e leitoras possam fazer – meu desejo é que possam tocar eles e elas também suas memórias familiares e reconhecer o caminho que os fizeram chegar até aqui, que eles e elas possam se reconhecer nos sentimentos mais bonitos e mais doloridos causados pelas relações de afeto. Pra mim o que fica de mais profundo é a percepção, enquanto escrevia e agora, quando releio a obra, de que ao final é preciso caminhar pela vida consciente de que nunca se caminha sozinha, por mais sozinhos que estejamos sempre houve uma história antes – a que nos trouxe até aqui, sempre haverá uma história depois, e esse é o bonito da vida.

4.   Como o simbolismo do pé de urucum se conecta com a memória e ancestralidade das mulheres da sua família?

O pé de urucum é minha bisavó, Enedina Francisca de Almeida – a que minha mãe chamou de india e que eu chamo de indígena – a história não narrada, apagada que eu tomei a liberdade de fazer existir a partir da existência de um pé de Urucum no quintal de minha casa no ABC Paulista – na minha ficção dramatúrgica criei uma imagem em que minha avó atravessa a estrada no pau de arara do Pernambuco até aqui com as sementes do urucum presas no punho fechado – o vermelho alaranjado escorrendo no punho – no desespero de trazer consigo a única memória de sua mãe, minha bisavó. É o urucum quem observa a história. Quem nos vê, a mim, à minha mãe, a minha avó, sendo mulheres.

5.   A escolha do gênero dramático é algo interessante. O que você espera que os leitores ou ouvintes experimentem ao se depararem com essa narrativa no formato de teatro?

A escrita é dramatúrgica porque o projeto é de fato transformá-lo em espetáculo. Há um exercício proposto ao leitor de imaginar a cena para além da história, compor comigo o caminho da encenação – em alguns momentos indico inclusive alguma possibilidades para que – ao ler esta dramaturgia – a pessoa possa vivenciá-la de forma mais intensa. O gênero dramático me deu mais possibilidades de brincar com o imaginário das pessoas e de fazer uma interlocução com quem eu sou e com a minha relação com as outras mulheres da história no momento mesmo em que brinco – como atriz – de ser elas.

6.   O que você acha que faz a literatura feminina tão importante e necessária nos dias de hoje, e como sua obra se insere nesse movimento?

Sem as mulheres não há história, ou pelo menos ficamos apenas um uma parte dela, uma narrativa incompleta da realidade. Passei a vida ouvindo sobre a parte masculina de minha ancestralidade, o avô holandês, o avô portugues, nunca as mulheres – pouco ouvi sobre os feitos de minha avó, mas muitos sobre as histórias todas de meu avô – quando mulheres escrevem, e escrevem sobre mulheres, submerge uma narrativa que estava apagada, nos miramos e nos reconhecemos e podemos então, traçar novos caminhos.

7.   Como a consultoria de dramaturgia da escritora Adélia Nicolete contribuiu para o desenvolvimento da obra?

Adélia foi quem o tempo todo evidenciou o caráter dramático desta obra, a importância de que eu pensasse como dramaturga a cena em que eu mesma iria atuar, que eu me permitisse fazer o jogo entre a Lígia atriz, a Lígia dramaturga e a Lígia bisneta, neta e filha das mulheres desta história. Foi também ela quem me ajudou a fazer escolhas e recortar excessos, ela foi o olhar de fora essencial pra que a obra pudesse ser o que é hoje.

8.   Como foi o processo criativo de construir uma história tão íntima, ao mesmo tempo que ressoa com as experiências coletivas das mulheres?

As histórias estavam todas em mim, as minhas, as de minha mãe, as de minha avó – situações contadas ou vividas ao longo de minha existência de forma repetitiva ou que tinham cravado uma tatuagem em meu corpo pela força de suas imagens –  a rotina dos casamentos, as violências vividas por parte dos maridos, as maternidades, mulheres desencarnando-se de si para serem a representação que se espera do feminino – eu sabia que muitas delas eram histórias que se repetiam na vida de muitas mulheres – ao mesmo tempo a força que se pode ter quando estas mesmas mulheres reconhecem a medida de suas alturas, reconhecem a importância de caminharem juntas.

9.   O que significa para você poder lançar essa obra de forma tão acessível, com a versão audiobook e eventos como este no lançamento?

A versão audiobook é o desejo de veicular outras formas de mediação da obra, para pessoas não videntes, em especial, mas também para outras experiências sensitivas com a obra, por isso fiz questão de cuidar desse processo garantindo uma trilha sonora muito delicada e bem feita pelas musicistas Camila Ruiz e Michelle Lomba, e pelas vozes de diversas mulheres que, mesmo em um solo, puderam compor a narrativa do livro completo em sua estrutura. Para além das pessoas não videntes acredito que esta versão torna acessível a obra á mulheres sobrecarregadas pelo trabalho, pelos filhos nos braços, impossibilitadas de uma pausa para ler um livro, mas possibilitadas de um play no celular enquanto caminham para o trabalho ou cuidam da casa.

O lançamento será um momento de celebração e partilha – inclusive de trechos do próprio audiobook.

10. Você menciona que a obra propõe uma reflexão sobre como contamos nossas histórias. Como você acha que a narrativa pode mudar a forma como vemos nossa própria identidade e passado?

Não acredito que seja uma questão de mudar como vemos, mas talvez que seja um deslocamento do olhar para esses pontos, muitas vezes ignorado na urgência da vida cotidiana e da sobrevivência e então, a partir dai, reconhecer os caminhos que nos trouxeram até aqui.

11. O audiobook é uma parte importante do lançamento. Como você vê essa versão da obra ampliando a experiência do público? Há algo que se perde ou se ganha ao escutar ao invés de ler?

São possibilidades de acesso e uma não elimina a outra, apenas amplia. A ideia veio da experiência de “ler” livros a partir do canal criado por Adélia Nicolete no youtube – partilhas literárias – e do quanto este canal me permitiu, como mulher e mãe, acessar mais livros – em especial os de Elena Ferrante – porque me permitiam “ler” enquanto cuidava da casa, estendia roupas no varal, limpava o banheiro ou até mesmo em momentos de descanso, mas que me aproximavam de outra sensibilidade da obra pela voz interpretativa mesma de Adélia. São experiências diferentes, complementares, não opostas, assim como será quando houver a montagem do espetáculo.

12. Quais aspectos da performance e das vozes no audiobook você considera fundamentais para essa experiência imersiva e sensível?

O do encontro com a criadora mesma da obra eu sua interpretação das palavras escritas.

13. A versão audiobook permite um acesso mais inclusivo para pessoas com dificuldades de leitura ou deficiência visual. Como você vê o impacto dessa inclusão no público geral?

é mais que urgente pensarmos em ações de acessibilidade a obras literárias, teatrais, artísticas  – nosso cuidado para que obra fosse de fato acessível – não apenas lendo a dramaturgia, mas fazendo a áudio descrição das imagens e cuidando para que a experiência fosse e fato de leitura e não de uma encenação em áudio da peça é o desejo de que essas pessoas possam viver também a experiência da leitura.

14. O evento de lançamento será uma oportunidade única para os leitores se conectarem com a obra. O que você espera para essa noite especial no Cine Theatro Carlos Gomes?

Não acredito que será única – ele é o começo, a aproximação, para uma história que espero, será longa. Mas aqui espero poder contar um pouco para as pessoas dos caminhos pelos quais caminhei para que essa obra existisse, pra que, ao lerem, elas possam levar um pouco de quem eu sou com elas.

15. Haverá uma exposição das ilustrações do livro feitas por Drica Sousa. Como você enxerga a relação entre as ilustrações e o conteúdo do livro? O que elas acrescentam à história?

Quando Drica apresentou sua proposta de ilustrações eu fiquei chocada com a potência narrativa e autoral que ela me trouxe, não são imagens ilustrativas no sentido realista da coisa, mas trazem uma segunda camada narrativa para a obra e acabam por criar outras perspectivas. Uma das coisas mais bonitas que Drica propôs foi o uso de trechos de um caderno de estudos de minha avó materna como base para as ilustrações, um caderno de quando, já com mais de 70 anos, ela ingressou no EJA para aprender a ler e escrever – Drica encontrou trechos que parecem  compor a dramaturgia da obra como se minha avó soubesse que um dia esse livro seria escrito. Além disso ela compõe uma linha narrativa a partir da interpretação de cada uma das gerações de mulheres com o urucum em uma etapa de floração, nos apresentando 4 tempos do Urucum – o broto – a filha, a flor – a mãe, o urucum maduro – a avó, o urucum aberto, a bisavó – compondo visualmente com a ideia do passar do tempo entre as gerações.

16. O coquetel de lançamento e a possibilidade de receber dedicatórias personalizadas também são destaques. O que isso representa para você como autora?

Uma possibilidade de aproximação e afeto com os primeiros e primeiras leitoras.

17. O projeto foi realizado com o apoio da Lei Paulo Gustavo e da Secretaria de Cultura de Santo André. Como você vê a importância de políticas públicas para o fomento da cultura local e para iniciativas como essa?

É uma conquista dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura e uma luta de permanência por políticas como essa. Com certeza esse livro não existiria sem uma política como essa. É o segundo livro que lanço, o primeiro foi “Pupa – contos fantásticos e outras narrativas sobre adolescências” produzido em parceria com outras 3 escritoras por meio de Lei Aldir Blanc de 2021.

18. A Cia. Estrela D’Alva tem um trabalho consistente no teatro. Como a companhia influenciou sua obra literária? Quais aspectos do teatro você incorporou ao livro?

Tudo o que sei sobre teatro e sobre as possibilidades de articulação estética e ética de histórias a partir da linguagem teatral aprendi fazendo teatro com a Cia. que ano que vem completa 20 anos. Por muito tempo os processos de construção de espetáculos foram colaborativos e em sala de ensaio, é a primeira vez que invertemos a ordem e começamos pela escrita, mas é só porque vivi os processos anteriores em coletividade, que me sinto à vontade para agora compor algo autoral.

19. Em relação ao projeto “Urucum e outras árvores: encontros e escritas entre mulheres”, que se desdobrou em oficinas, qual foi o impacto dessa troca de experiências com outras mulheres na sua própria escrita?

De cada uma das oficinas há com certeza ao menos um trecho que compõe a dramaturgia de frases ditas por mulheres durante esses encontros, por exemplo quando Marilena Nakano, na oficina ministrada por Michelle Lomba na Biblioteca Comunitária Parque Andreense disse “meu tempo é agora” e eu usei esse trecho no epílogo ou quando Tatiana Azeñas, na oficina ministrada por Solange Dias da Universidade Popular Nossa Casa, criou uma imagem sonora que falava do “ruído do céu” e eu usei esse trecho para falar da chegada de minha avó a São Paulo. Além disso, é claro, o sensível e a subjetividade dos encontros também me ajudou a compor imaginários e diálogos da dramaturgia.

20. Com a pré-venda já aberta, qual é a sua expectativa para o público que adquirirá o livro antes do lançamento? O que você quer que esses primeiros leitores levem dessa experiência?

 A do acesso sensível às memórias que compõem e constituem nossas famílias, nossas existências, nossas territorialidades, nossos sonhares.