Entrevista: Alexys Agosto, artista multilinguagem

Entrevista: Alexys Agosto, artista multilinguagem

1.Você descreve seu álbum “A Fabulosa Viagem de Futurística” como uma aventura interplanetária. Como essa jornada se reflete em sua música e na história de Futurística?

O álbum tem um arco narrativo que é construído através das músicas. O primeiro ato se encerra com a Futurística convidando o ouvinte a viajar pelo sistema solar. E ela vai para o espaço sideral no segundo ato. Nesse segundo ato as músicas ficam mais “espaciais” para narrar essa história. Desde o começo do processo eu queria brincar com sintetizadores que trouxesse essa sensação espacial meio inspirado em músicas do Bowie e The Electric Light Orchestra. Essa atmosfera é para dialogar com a história que está sendo contada no álbum. O estilo das músicas vai mudando também porque os acontecimentos da história transformam a Futurística. Musicalmente eu quis acompanhar essa transformação. 

2.O primeiro ato do seu álbum traz Futurística prevendo o futuro e anunciando o fim do mundo. Essa visão distópica reflete alguma preocupação pessoal ou é mais uma reflexão sobre a sociedade atual?

As composições do álbum foram feitas durante a pandemia e nessa época sempre se falava que era o fim de uma era, que o mundo como a gente conhecia até então não existia mais. As vivências que tive durante a pandemia me passavam essa sensação de estar vivendo numa distopia apocalíptica. Ver na tv as ruas das grandes cidades totalmente vazias, as atrocidades cometidas pelo governo Bolsonaro. Tudo isso passava a sensação de estar presa em um filme de ficção científica e eu queria capturar essa sensação nesse álbum. Agora em 2024 eu acho que essa ideia foi ressignificada. Essa sensação de fim do mundo ainda está presente na nossa sociedade, mas de forma ainda mais literal. As mudanças climáticas estão muito mais fortes do que era o esperado e lidar com elas vai ser cada vez mais parte da nossa realidade. O refrão de uma das músicas pergunta: “De que lado ‘cê quer tá no fim do mundo?”. Eu quis repetir essa frase diversas vezes nessa música que se chama Fim do Mundo para passar essa mensagem de que a gente ainda tem uma escolha. O que você quer fazer no apocalipse? Somos nós que construímos o futuro e a gente pode escolher de que lado queremos estar na história. Ainda dá tempo de adiar o fim do mundo. 

3.Você menciona influências de artistas LGBT+ e também da música brasileira dos anos 60/70 em seu disco. Como essas influências se combinam para criar sua própria identidade musical?

Quando eu tava compondo esse álbum eu sempre tive essa imagem na minha cabeça de misturar todas as minhas referências musicais em um liquidificador para construir algo que refletisse tudo o que eu mais escutei ao longo da minha trajetória. Eu era uma criança fascinada pelo tropicalismo, escutava muito Os Mutantes e o primeiro show da minha vida foi um show da Gal Costa numa virada cultural aqui em São Paulo. Depois na adolescência eu fiquei viciada em Banda Uó e foi a primeira vez que eu percebi que as vivências LGBTs podiam estar presentes na música também. Depois disso surgiu muitos artistas LGBTs importantes pra música prasimeira: As Bahías e a Cozinha Mineira, Pabllo, Glória Groove, Linn da Quebrada, Liniker, Urias. E era esses artistas que mais tocavam nos lugares que eu frequentava. Foram esses artistas que eu estudei como referência para desenvolver minha linguagem musical. Então todas essas influências estão muito presentes nas minhas músicas de uma forma muito misturada. 

4.A personagem Futurística, que você criou, é uma pessoa-ciborgue que se perdeu no espaço-tempo. Como essa personagem reflete sua própria jornada pessoal ou suas visões sobre identidade de gênero?

Eu sinto que nós pessoas trans frequentemente temos essa sensação de não se encaixar nessa realidade. Isso não é à toa. A sociedade tá o tempo inteiro nos dizendo que nós não pertencemos a esse espaço-tempo. Quando estou rodeada de pessoas cis eu ainda me sinto perdida, deslocada. Parece que eu vim de outro mundo, de outro tempo. Eu acho que muitas pessoas trans se sentem assim. Mas nós existimos também nesse tempo. A verdade é que se eu tô aqui falando sobre não binariedade é porque muitas pessoas vieram antes de mim e construíram esse caminho. Eu espero ajudar a construir uma sociedade que seja mais igualitária e que seja mais fácil para as próximas gerações de pessoas trans viverem sendo quem são. Espero que no futuro nenhuma pessoa trans se sinta presa nessa realidade. 

5.Sua música “Ciborgue” aborda a construção tecnológica do gênero na sociedade. Como você acha que a música pode ser uma ferramenta para desafiar e reconstruir essas noções de gênero?

Eu acho que a música tem um poder fascinante de fazer as pessoas pensarem dançando. Com as minhas músicas eu quero fazer as pessoas refletirem sobre a sociedade não só de forma lógica, mas também através do corpo. Existem diversos estudos e teorias para entender o que o gênero na nossa sociedade, mas o gênero se materializa através do nosso corpo, não só nas palavras. A arte tem essa habilidade de fazer a gente pensar para além das palavras. Através da arte, entramos em contato com ideias diferentes de uma forma sensorial, não só lógica. Eu acho que a música pode desafiar as normas cisgêneras sensibilizando os ouvintes e fazendo as pessoas questionarem o que elas têm como verdade absoluta. A gente cresce ouvindo que gênero é natural, mas não é, é uma construção histórica. Acho que a arte é a grande chave para a gente fomentar a construção de uma nova relação com gênero para além da cisnormatividade. Eu mesma só fui me entender como uma pessoa não binária através de poesias, músicas e peças de teatro feitas por outros artistas trans. A teoria veio depois. 

6.Além de cantora e compositora, você também é dramaturga e parte de um coletivo teatral. Como essas diferentes formas de expressão artística se complementam em seu trabalho?

As Artes Cênicas estão presente em todo trabalho artístico que faço. A maior parte da minha formação artística se deu no teatro e foi na sal de ensaio que eu aprendi o que significa fazer arte. O show que estamos montando para A Fabulosa Viagem de Futurística tem muita influência das artes cênicas. É um show com bastante performance e poesia. Acho que esse trabalho consegue alcançar o máximo da sua potência no palco, com o contato com o público, e isso é uma nítida influência do teatro na minha formação artística. 

7.Você iniciou o processo criativo do seu álbum durante a pandemia da COVID-19. Como esse período influenciou sua criação artística e a narrativa de “A Fabulosa Viagem de Futurística”?

Foi meio sem intenção, mas o álbum acabou quase se transformando em um registro metafórico da pandemia. O primeiro ato fala sobre o período antes da pandemia e as primeiras semanas da crise sanitária que geraram uma sensação de fim de uma era. Nesse momento a Futurística está cheia de certezas sobre quem ela é. O segundo ato é sobre o isolamento social, a solidão que esteve muito presente na minha vida nesse período. Esse momento acaba sendo de grande transformação para a persona que canta as músicas. O terceiro ato é o período pós-pandemia, quando a vida continuou e a gente ficou meio sem digerir tudo de ruim que aconteceu nesse tempo que passou. Aí nesse momento a Futurística volta para o nosso planeta e tenta se encontrar novamente. 

8.O estúdio onde gravou seu álbum é parte de uma rede de artistas onde todos são pessoas não binárias. Como essa comunidade influenciou o processo de criação do álbum e sua jornada artística como um todo?

Trabalho com outras pessoas não binárias já há algum tempo. Armr’Ore Erormray é diretore de arte e designer do álbum e a gente tem parceria profissional e de amizade já desde de 2018. Aprendi muito com elu nesse tempo. A gente se conheceu na prova de habilidades específicas do vestibular de artes cênicas, trabalhamos juntes desde então. O nosso TCCfoi o show de A Fabulosa Viagem de Futurística, e ele me ensinou muito sobre como lidar com meu corpo no palco e juntes elaboramos as mensagens que queríamos passar com esse projeto. Sou muito grata por nossos caminhos terem se cruzado. Minha parceria profissional com Helô Badu se deu um pouco depois, quando esse projeto já existia. Aprendi muito com ela sobre música e sobre a vida. Todos esses aprendizados se refletem no álbum. A Rizoma Coletiva é uma rede de artistas da qual faço. Temos um estúdio lá na Vila Calu, no qual foi gravado as músicas de A Fabulosa Viagem de Futurística. A gente gravou ano passado um álbum chamado “Caules Brotos e Raízes”. Neste álbum eu participei como tecladista, e tem uma música minha com Arm’Ore chamada Vai Passar. Foi um trabalho muito legal de de fazer e que me ensinou muito também sobre música. O projeto é mais puxado para MPB e até então eu nunca tinha trabalhado com instrumentos acústicos. Foi desafiador, mas me fez crescer muito enquanto artista. 

9.Você menciona que parte da inspiração para seu álbum veio do Manifesto Contrassexual de Paul Preciado. Como você vê a interseção entre teoria queer e sua prática artística?

Quando eu comecei a compor as músicas para Futurística eu estava lendo e relendo o Manifesto Contrassexual o Preciado e Ciborgue foi composta a partir dessa leitura. O termo Ciborgue foi inspirado em um capítulo do livro chamado Tecnologias do Sexo, no qual ele afirma que somos todos ciborgues por já termos transformado em corpo tantas tecnologias produzidas ao longos dos séculos. O gênero é uma dessas tecnologias. A temática principal dessa música é essa questão de o gênero ser uma tecnologia, e não algo natural. 

10.Com seu álbum de estreia lançado, quais são seus próximos passos e projetos futuros na música e em outras áreas artísticas?

A ideia é manter os lançamentos do álbum por um tempo. Estamos lançando o projeto em EPs e depois quero lançar uma versão deluxe com canções que já estão compostas. Quero muito circular com o show de A Fabulosa Viagem de Futurística para experienciar essas canções em contato direto com o público. Esse show já tá criado antes mesmo das músicas estarem prontas. Eu, Arm’Ore e Helô Badu construímos uma atmosfera bem performativa para acompanhar as músicas. Assim que possível, vamos fazer alguma apresentação. Também quero dar continuidade a projetos no teatro. No segundo semestre, nós de Coletive Avertere iremos fazer uma temporada de Tremores: sobre a luz do vaga-lumes que é um espetáculo no qual sou uma das dramaturgas. A gente já circulou um pouco com essa peça e até ganhamos um prêmio de dramaturgia no Festival de Teatro de Pinhais, mas nos apresentamos pouco em São Paulo então queremos fazer uma temporada por aqui também. 

11.Se Futurística fosse aterrissar na Terra hoje, o que você acha que ela faria primeiro?

Acho que ela sairia para dançar em alguma festa insalubre no centro de São Paulo. 

12.Se pudesse escolher um planeta para ser o próximo destino de Futurística, qual seria e por quê?

Plutão, porque ele foi injustamente rebaixado para planeta anão.  

13.Se você fosse um ciborgue, que habilidade tecnológica adicional gostaria de ter?

Teletransporte, porque é muito difícil demorar horas no transporte público lotado para se locomover aqui em São Paulo. 

14.Como você responde às críticas de que sua música e sua personagem Futurística são apenas uma moda passageira?

Se fosse uma moda passageira, a Futurística já teria ido embora. Mas eu espero que vire moda mesmo para as minhas músicas conseguirem alcançar bastante gente.  

15.Houve alguma resistência por parte de alguns fãs ou críticos em relação à sua abordagem não binária na música? Como você lida com isso?

Muita gente ainda é transfóbica e muita gente não entende a existência da não binariedade. Então o preconceito sempre vai tá ali. Nem sempre é fácil lidar com ele. Mas cantar sempre ajuda. 

16.Algumas pessoas argumentam que a arte deve ser apolítica. O que você diria a essas pessoas sobre a importância de expressar identidade e política por meio da música?

Não existe arte apolítica. Fazer arte é intrinsecamente um ato político porque comunica uma ideia. A cultura é responsável por moldar a nossa visão de mundo e nossa relação com ele. A gente tem essa mania de denominar como arte política as obras que trazem um discurso de esquerda, mas não é assim. O agronejo é um ótimo exemplo disso porque ninguém fala que existe um teor político nessas músicas. É um gênero musical que tem ganhado muita força nos últimos anos e que tem uma mensagem muito presente. Se você analisa as músicas, é claramente uma forma de exaltar o modelo de vida dos grandes produtores rurais. Isso tá ali nas letras e até na estrutura musical. Os personagens são sempre fazendeiros (ricos) e as harmonias das músicas sempre são construídas de uma forma que passa a sensação de grandeza desse estilo de vida. E isso com o tempo vai entrando no imaginário das pessoas, começa a se produzir uma nova imagem do agronegócio. Eu acho esse gênero um ótimo exemplo porque você vê um monte de artista novo com muito dinheiro investido. E de onde vem todo esse dinheiro? Quem está investindo tem o interesse de disseminar esse estilo de vida. Não existe obra artística que não transmita uma mensagem. E isso é extremamente político. 

17.Como sua formação em Artes Cênicas influencia sua abordagem na composição e produção musical?

Eu componho muito pensando em cena e também na narrativa. Conforme eu vou construindo os elementos de uma música eu vou pensando o que pode estar acontecendo no palco se essa música fosse uma cena, e tento trazer isso para a produção musical. Também penso muito em como a persona da canção está se sentindo, o que eu quero transmitir com a música. Então tento trazer uma interpretação mesmo para as músicas de uma forma cênica. 

18.Você mencionou que estava fazendo pesquisa de Iniciação Científica durante a composição de “Ciborgue”. Como a academia e a pesquisa influenciam sua prática artística?

A academia fez eu entender que textos teóricos podem servir de inspiração para criações artísticas. Estudar alguns textos teóricos tem sido o ponto de partida para diversos trabalhos artísticos que fiz nesse último ano. O espetáculo teatral que fiz com Coletive Avertere chamado Tremores: sobre a luz dos vaga-lumes partiu de estudos do grupo de parte do livro Devassos no Paraíso do Trevisan, que é um livro que tenta mapear a história lgbt no Brasil. Quando eu tava criando o universo de Futurística eu tava fazendo essa iniciação científica que me possibilitou estudar a fundo a obra dos Dzi Croquettes, que foi um grupo teatral que questionou a binariedade do gênero lá na década de 70. Eu recuperei diversas dramaturgias do grupo, mexi nos acervos da censura da ditadura militar e entrevistei alguns dos integrantes. Essa experiência me inspirou muito a compor ciborgue e a entender o que eu queria construir artisticamente. Foi nessa época também que eu tava lendo o Manifesto Contrassexual. Usei esse livro na iniciação científica. Considero que Ciborgue é uma influência direta desse trabalho de pesquisa. 

19.Você ganhou reconhecimento por seu trabalho teatral antes de entrar na música. Como essa transição ocorreu e como você vê o papel do teatro em sua vida artística atual?

Na verdade, foi uma transição meio forçada pelo destino. Eu dedicava a maioria das minhas energias a produzir, assistir e estudar teatro. Com a pandemia, não existia mais teatro, eu achava essa história de teatro online muito irritante. Eu tive que reinventar a minha criação artística. Foi quando comecei a me dedicar mais à música e sonhar em ter uma carreira musical. Pouco tempo depois, comecei a criar A Fabulosa Viagem de Futurística.

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