Entrevista: Hélio Morais, cantor e compositor

Entrevista: Hélio Morais, cantor e compositor

1. Como foi o processo de criação do álbum “Pisaduras” e como ele difere do seu trabalho anterior?

Pisaduras é um disco muito pessoal e autobiográfico. Foi quase todo escrito com voz e violão, no sofá do meu escritório, sem que um comandasse o outro. Ambos foram se guiando, à vez. Essa é uma das grandes diferenças para o solo anterior (sob pseudónimo de MURAIS), em que fiz todos os instrumentais nos teclados e só depois coloquei as vozes e as letras. Além do mais, “Pisaduras” é um disco que foi escrito num curto espaço de tempo, porque sabia que queria escrevê-lo. Em MURAIS nada foi planejado. Este é, também, um disco no qual eu sinto que me descobri enquanto escritor de canções. Encontrei um registo no qual me sinto confortável e isso me permite apurar outros aspectos de cada música, particularmente nas letras. As letras acabam tendo um peso muito grande na composição e nos arranjos finais. Daí ter, finalmente, assumido o meu nome próprio, Hélio Morais.

2. Você poderia falar um pouco sobre a influência dos artistas brasileiros na sua música e como isso se reflete no novo álbum?

Uma coisa que sempre me fascinou na música brasileira, foi essa coisa da partilha. Essa ideia de comunidade. Me interessa muito trazer isso pra minha música. Tem muita relação com a forma que a minha família sempre teve de se relacionar. Sou filho de pais angolanos. Os almoços cheios de gente, escutando música e dançando, ao redor da mesa, eram normais. Talvez pra quem nunca tenha crescido em Portugal, isso não soe estranho. Mas é. A casa da minha bisavó não era como a da maior parte das casas dos meus colegas de escola. E sempre senti essa disponibilidade para a partilha, nas pessoas que fazem música no Brasil. A verdade é que tenho sido muito acarinhado e me sinto privilegiado pela quantidade enorme de afetos que venho construindo desse lado do atlântico. Depois, como o Benke mora no Brasil e tem produzido os meus discos solo, a rede acaba se alargando e vou conhecendo cada vez mais gente. Nesse disco, em particular, quase todas as percussões foram gravadas no Brasil, o que acabou mudando muito um disco que, à partida seria enquadrado num registo cantautor/folk. O ritmo que Kastrup, Toca Ogan e ÀIYÉ trouxeram para as canções, tornou-as em algo distinto. E isso me agradou bastante. Depois ainda tem as vozes de LUMANZIN, que são especiais. Sou muito fã.

3. Qual o significado por trás da escolha do nome “Pisaduras” para o álbum?

As pisaduras são conhecidas como roxas, no Brasil. Nesse disco eu acabo narrando uma história de dor, apesar de não me sentir refém dela. Eu vivi essa história, mas não passei por cima dela, ignorando-a. Me demorei olhando para ela, questionando cada parte dela, tentando entender o seu significado e, também muito importante, não a romantizei. Eu não acredito que artistas devam viver traumas para terem assunto para criar. Quem dera eu não ter essa história para contar. Mas a verdade é que tenho, e cantar sobre ela com consciência da mesma e do privilégio de lhe ter sobrevivido, é, também, uma forma de empoderamento. Isso só foi possível porque tive ouvidos que me escutaram, tive gente que se importou comigo. Por isso acho tão importante essa ideia do coletivo, do comunitário. Olharmos para quem está do lado. Isso me fez  tornar num adulto que encontrou o seu caminho e formas de ser feliz, apesar do começo de vida conturbado. Eu existo, como existo, porque fui visto. Nem todes têm esse privilégio ao longo da vida. E todo esse processo acaba sendo traduzido pelas pisaduras. Vem um trauma, dói, fica visível, vai mudando de tonalidade e de cor, até acabar por se extinguir da pele. 

4. Como foi trabalhar com uma variedade de músicos brasileiros e portugueses no álbum? Quais foram os desafios e benefícios dessa colaboração?

Não sei se teve desafio. À partida, o desafio seria entender quão aberto eu estaria para interferência externa nas canções que escrevi. Mas acabou sendo muito tranquilo. Gosto muito de ver outras abordagens à música que escrevo sozinho. Sempre tive bandas e estou muito acostumado com esse processo. E isso acabou transformando qualquer desafio em benefício. Sinto que as músicas que escrevi ganharam uma vida e cor que não teriam de outra forma. 

5. O que você espera que os ouvintes sintam ou compreendam ao ouvir “Pisaduras”?

Não espero mudar a vida de ninguém. Esse disco é só parte da minha história. Não é guião pra ninguém. Cada qual tem as suas condicionantes. Infelizmente não partimos todos do mesmo lugar. Acho essa noção importante, porque é muito fácil moralizar sobre outras pessoas, sobre as quais não conhecemos o contexto. A nossa história é só a nossa história. No bairro onde cresci, outras pessoas viveram histórias semelhantes. Algumas conseguiram chegar num lugar melhor, mas outras não. E isso não é necessariamente responsabilidade sua. Tudo conta, o entorno conta, o momento conta. Não concordo com positividade tóxica. Eu tive sorte. Mas foi, essencialmente isso; sorte. 

Em todo o caso, espero que, se alguém estiver passando por situações possíveis, consiga ter alguém do lado que ouça, que possa ajudar.

6. Em “Pisaduras”, você revisita seu passado de maneira íntima. Você já teve algum receio de expor essas experiências tão pessoais em suas músicas?

Não devo ter receio da minha história, por mais que não tenha sido sempre assim. Sou o que sou, por tudo o que foi me acontecendo ao longo da vida. Já não tenho nada a esconder. Acho que já fiz isso durante parte da minha vida. Por muitos anos, o peso das circunstâncias me obrigava a seguir em frente, olhando pouco para trás. Era questão de sobrevivência. Talvez ainda não tivesse as ferramentas emocionais para conseguir fazê-lo. E ainda estou aprendendo sobre isso. Mas receio é coisa que já não tenho, faz tempo. A minha maior preocupação era com algumas das pessoas que passaram por isso junto comigo. Conversei com elas antes de botar esse disco no Mundo e foram super apoiantes.

7. Algumas pessoas podem interpretar as letras de suas músicas de forma literal, especialmente aquelas relacionadas à violência familiar. Como você responde a essas interpretações?

São, elas mesmas – as letras -, uma visão minha da história que vivi. Outra pessoa, na mesma sala, talvez tivesse uma narrativa diferente da minha. Mas sim, algumas contam uma história de violência de género, que continua sendo um assunto tabu. Precisamos acabar com isso. Ela existe e precisamos fazer com que acabe. E sem falarmos sobre ela, sobre as razões pelas quais acontece, como acontece, como é ocultada, os traumas que deixa, nunca vamos conseguir erradicá-la. E atenção que isso não é estar responsabilizando as vítimas por não falarem. A culpa nunca é da vítima; acho importante essa consciência. A responsabilidade é de todes que estejam em situação de privilégio; na educação, na escuta, na atenção, no cuidado, na presença. 

8. O uso de termos como “indie pop” e “folk” para descrever sua música pode limitar sua audiência ou influenciar suas expectativas? Como você vê essas categorizações?

Essa é uma pergunta à qual não sei responder. Não gosto muito de categorizar música, mas acaba sendo meio que imposto, até para quem procura. Então, acho que não são categorias erradas, apesar de serem redutoras.

9. Como sua experiência como membro de bandas influenciou seu trabalho solo, especialmente em “Pisaduras”?

Acho que aprendi muito com todas as pessoas com quem tive, e tenho, bandas. Há certo tipo de progressões de acordes que reconheço em Linda Martini, há ritmos que reconheço nos PAUS, e muitas outras subtilezas. Em Pisaduras, sinto que não me restringi. Fiz muito isso no MURAIS, tentando que não soasse a nenhuma das bandas, para encontrar meu próprio espaço. Mas no final das contas, sinto que não era exatamente eu. Encontrei esse espaço, mas perdendo alguma personalidade. Em Pisaduras me deixei levar pela fluidez do processo. E a verdade é que sempre fui mais Linda Martini que PAUS (apesar de ser, também, as duas coisas), no sentido em que me relaciono mais com coisas melancólicas.

10. Você mencionou uma conexão afetiva com o Brasil. Como essa conexão influenciou sua jornada musical e criativa ao longo dos anos?

Me influenciou muito. A leveza, a fluidez, o gosto pelo acaso. É muito coração, na hora de fazer música. E sinto que, a solo, ainda não tinha encontrado isso. Mas acho que desde que gravei o EP LXSP (PAUS) em SP, com produção do Kastrup e participações de Maria Beraldo, Novíssimo Edgar e Dinho (Boogarins), ganhei um horizonte infindável de outras possibilidades. 

11. Se “Pisaduras” fosse um prato de comida, qual seria e por quê?

Uma muamba, prato angolano muito parecido com alguns pratos da Bahia. Arde na boca, machuca um pouco o picante extremo, você chora, sua tudo e termina dançando em volta da mesa.

12. Se pudesse escolher um animal para representar cada faixa do álbum, quais escolheria e por quê?

Nem lua, nem marés: uma baleia, pelo fato da música narrar a tomada de consciência de estar perante uma situação de uma enorme dificuldade de compreensão.

Pra que chegue ao fim: um cachorro vivendo num ambiente hostil, sem conseguir fugir.

Voltas e voltas e voltas: um peixe dentro de um aquário.

Olhos salgados: um pássaro domesticado  que vê uma janela aberta e segue a sua vida.

Sonhei coisa proibida: um pássaro sonhando com uma janela aberta.

Tábuas, pregos e flores: uma gazela correndo feliz, depois de atravessar um rio de crocodilos.

Almoço de domingo: Um hipopótamo se esfregando na lama.

Deixa o resto: Um gato lambendo suas patinhas depois de uma briga.

13. Se você tivesse que descrever “Pisaduras” usando apenas emojis, quais escolheria e por quê?

💥🥺🫂❤️🩻⚰️💐🕊️🌈🌞🎉🚤

choque, dor, apoio, amor, introspecção, funeral, flores, paz, cores, sol, celebração, navegar.

marramaqueadmin

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