Entrevista: Mary Del Priore, historiadora

Entrevista: Mary Del Priore, historiadora

1. Como foi sua pesquisa sobre a vida da Princesa Isabel e do Conde d’Eu para escrever “O castelo de papel”?

Eu tinha adquirido bastante familiaridade com os Arquivos do IHGB e do Museu Imperial ao escrever sobre a Condessa de Barral e o Príncipe Maldito, o que me permitiu receber importantes premios literários e detectar novos personagens que ainda não tinham sido examinados. Mas, descobri que existia um importante acervo sobre a família Orléans em Bruxelas, onde passei um tempo lendo a correspondência do conde com seu pai, o duque de Nemours, sua avó, a rainha Maria Amélia da França, e outros familiares. Esse esforço foi fundamental pois lá encontrei material  inédito sobre o que realmente pensavam e sentiam os Orléans em relação ao Brasil e à própria família imperial. O acervo digital da BNRJ e a ajuda de particulares que se interessam pela história do Brasil e que me auxiliaram com documentos inéditos completaram a pesquisa.

2. Qual a importância dos documentos oficiais e das correspondências na reconstrução dos detalhes da relação entre Isabel e Gastão?

Documentos oficiais revelam a vida pública de um protagonista da história. Na maior parte das vezes, são secos e objetivos. A correspondência, sobretudo a familiar, revela sentimentos, aspectos psicológicos da natureza humana, tristezas e alegrias da vida cotidiana. É onde mais nos aproximamos dos personagens no passado, pois nos permite ver o quanto somos ainda parecidos.

3. Ao retratar a aristocracia brasileira do século XIX, quais aspectos você considerou mais fascinantes e desafiadores?

A aristocracia urbana que se denvolve com o café, tinha vontade de se modernizar, de consumir, de se europeizar, mas convivia, sem questionamentos, com a escravidão e a falta de investimento em educaçáo para o povo. Houve intelectuais importantes que embora em contato com tudo o que acontecia na Europa, continuavam a viver de favores políticos, patrimonialismo e a apostar na manutenção da escravidáo como fator de  segurança para o crescimento econômico do império. Nossa elite sempre teve duas caras. Uma para si, outra para o povo.

4. Você poderia compartilhar conosco um momento ou detalhe da vida de Isabel e Gastão que mais a surpreendeu durante sua pesquisa?

O momento tristíssimo e profundamente sentido da morte da primeira filhinha do casal, a princesa Luisa Vitoria.  Isabel ficou particularmente afetada pois ela havia insistido com o pai que queria dar à luz na França. Mas a teimosia do imperador a obrigou a voltar ao Brasil, onde o parto se passou muito mal. O casal tinha esperado dez anos por essa criança que, infeliz e tristemente teve que enterrar.

5. Como você descreveria o impacto de Isabel e Gastão nos eventos políticos do Brasil do século XIX?

A complexa vida política na segunda metade do século XIX foi muito impactada pela luta entre liberais e conservadores, a ascensão e queda de vários ministérios, a centralização política nas mãos de D. Pedro II e as mudanças societais: as comunicações, a imprensa, o consumo. Salvo em três Regências, quando Isabel tomou simbolicamente o lugar do pai, o casal tinha uma vida bastante reclusa, voltada para a educação dos filhos e práticas religiosas que ocupavam Isabel na maior parte do tempo. Fica claro na correspondência de Gestão com o pai, que D. Pedro os afastava o quanto podia da vida política. Há conjecturas e razões para isso, que o livro demonstra e outros historiadores também. O envolvimento de Isabel com a chamada Questão religiosa, em que sua intransigência se mostrou muito forte, foi suficiente para afastá-la de uma parte da sociedade identificada com uma visão laica e liberal dos tempos.

6. O que a levou a escolher este período específico da história do Brasil como tema para sua obra?

Fui professora de História do Brasil Colonial e Império por mais de trinta anos. Sempre fiquei à vontade trabalhando com fontes documentais, fatos e personagens desses períodos que considero apaixonantes. 

7. Há alguma descoberta ou revelação feita durante sua pesquisa que você acha que mudará a maneira como as pessoas vêem a Princesa Isabel e o Conde d’Eu?

Eles foram um casal que, como tantos outros, apostava na harmonia e na vida familiar como um objetivo a ser construído. A família vinha em primeiro lugar. O trono e a política, depois. 

8. Como você equilibrou os aspectos históricos e emocionais ao escrever sobre o relacionamento entre Isabel e Gastão?

Historiadores são mais ou menos sensíveis a certos temas, mas nenhum trata fatos históricos com emoção. Isso é o papel dos ficcionistas. Daí a preocupação enorme em  apontar os dados colhidos na documentação histórica. Nosso trabalho não tem invenção. Mas é uma construção a partir de extensa pesquisa que tem que ser comprovada na bibliografia ao final de cada livro  

9. Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao escrever “O castelo de papel”?

O maior desafio, quando se começa uma pesquisa, é pôr um ponto final. Dizer: chega! Pois,  mais e mais, novos documentos vão nos levando adiante e iluminando cenários desconhecidos. Para alguém que gosta do que faz como eu, a maior dificuldade é saber que é preciso parar, chegar a um ponto final. Pois a história é inesgotável. Quanto mais arranhamos, mais encontramos informações sobre um passado encoberto. 

10. Na sua opinião, qual é o legado mais duradouro deixado por Isabel e Gastão para a história do Brasil?

O exemplo de um casal comprometido com valores morais, uma vida cristã e voltada para a família.

11. A Princesa Isabel e o Conde d’Eu tinham animais de estimação exóticos?

No fundo de sua casa em Laranjeiras, atual palácio do governo, Isabel tinha aves exóticas, cavalos, um pequeno cachorro que era o xodó de todos. Ela colecionava orquídeas.

12. Qual era a comida favorita do casal real?

Ela gostava de fazer sorvetes, na cozinha de casa. 

13. Isabel e Gastão trocavam mensagens de texto?

Kkkkk! Piada né? Eles trocavam cartas, algumas muito amorosas como, por exemplo, quando ele vai para a guerra do Paraguai. 

14. Alguns historiadores argumentam que a Princesa Isabel deveria ter agido mais rapidamente em relação à abolição da escravidão. Qual é sua opinião sobre isso?

Essa questão está bem documentada no livro. Isabel só se juntou ao movimento abolicionista em fevereiro de 1888. Antes, ela se encontrava na França, preocupada com o nascimento de seu terceiro filho Antônio, e da educação de Pedro e Luís. Alijada da política pelo próprio pai, ela vivia uma vida burguesa e despreocupada dos problemas do Império do Brasil. 

15. O casamento de Isabel e Gastão foi realmente baseado no amor, ou foi apenas uma fachada para fins políticos?

R: Não há dúvidas que Isabel se apaixonou por Gastão. Para ele, foi uma saída, pois era um príncipe pobre e sem perspectivas de bom casamento na Europa. Mas o casal tinha uma relação de  cumplicidade, carinho e companheirismo. Foram muito unidos até o fim da vida. 

16. Há rumores de que o Conde d’Eu tinha influência sobre as decisões políticas da Princesa Isabel. Você encontrou alguma evidência disso em sua pesquisa?

Há vários documentos, inclusive correspondência dela mesma, que comprovam que Isabel era orientada pelo marido, o que talvez desgostasse D. Pedro, pois Gastão era um liberal. Sempre é bom lembrar que foi ele quem aboliu a escravidao no Paraguai e avisou várias vezes a D. Pedro do crescente movimento republicano no Exército.  Na correspondência de figuras importantes da Corte como o Barão de Cotegipe, Nabuco e outros, há informações sobre essa influência. Além do mais, na época, era impensável para uma mulher  tomar decisões importantes sem consultar o marido. 

17. Como sua experiência como historiadora influenciou sua abordagem ao escrever “O castelo de papel”?

Minha preocupação maior é com a fidelidade dos fatos e a seriedade dos documentos. A partir daí, procuro escrever o texto mais agradável possível, pois parto do princípio de que a “história é um romance verdadeiro que aconteceu”, como definem alguns historiadores. É preciso construir um texto musical, fácil de ler, que leve o leitor a se apaixonar pelos personagens e querer saber sempre mais sobre o cenário em que se moveram. 

18. Você poderia nos falar sobre o papel da pesquisa histórica no contexto da sua obra literária?

A pesquisa é a parte mais fascinante pois ela tem a ver com nossa curiosidade sobre “como, o quê, onde e quando aconteceu”. Por isso uso todos os documentos possíveis: manuscritos, impresso, imagem, música, pois tudo colabora para fazer o melhor cenário e texto. O historiador é uma espécie de detetive que tem que reconstruir um crime ao qual nao assistiu. Daí, ser um trabalho de paixão para apaixonados. 

19. Qual é o próximo projeto em que você está trabalhando e o que podemos esperar dele?

Podem esperar um novo livro: “Memórias de uma família imperial no exílio”, onde conto a história de Isabel, Gastão, mas sobretudo dos três príncipes que poucos brasileiros conhecem. Os três irmãos têm vidas e personalidades muito diferentes e seguir seus caminhos, depois que deixam o Brasil, vão morar na Europa, se casam, e enfrentam a I e II Guerra Mundial, foi uma experiência fantástica. O livro deve estar nas livrarias no segundo semestre de 24. 

marramaqueadmin

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