Entrevista: Verônica Fabrini, diretora teatral

Entrevista: Verônica Fabrini, diretora teatral

1. Verônica, como diretora deste espetáculo, como foi o processo de adaptação do texto “Como si Fuera Esta Noche” da autora espanhola Gracia Morales para o palco brasileiro? Quais foram os principais desafios que você enfrentou nesse processo?

A adaptação se deu de um modo muito fluido, como um diálogo, pois as atrizes já estavam em busca de um texto que falasse sobre violência contra a mulher, quando encontraram o texto da Gracia Morales. Acho que diálogo entre tempos (anos 80) e diálogos entre geografias (Espanha-Brasil-Campinas), foi o que guiou, na triste constatação de que essa violência contra a mulher é um problema … da humanidade, do patriarcado mundial! Claro que tem suas nuances e buscamos o que mais nos afligia em 2019 (ano da montagem, com a estreia em 2020, um dia antes do fechamento dos teatros, pela pandemia). Outra coisa que moldou a adaptação, foi fazer caber o texto no corpo-voz-coração de duas atrizes-criadoras que já chegam com uma ginga própria de atuação, com uma visão sobre o texto e sobre o problema que o texto apresenta. 

2. A peça aborda a violência doméstica de uma maneira sensível. Poderia nos contar como você conduziu a dramaturgia do espetáculo para retratar essa temática de maneira impactante?

No âmbito doméstico, você tem um envolvimento intenso dos afetos, que impõe um alto grau de contradição a esse tema. Há o amor, no meio disso tudo, a paixão, o instinto de proteção, a crença que é possível transformar o outro, de que pode ser diferente. E isso que é o que dói. Você transforma aquilo que poderia ser ninho, em prisão, em armadilha. O que poderia ser o lugar de maior proteção, no lugar de maior ameaça. Isso tudo no campo privado. Mas a encenação estica a corda para o lado público, lançando pontes em momentos chaves, com a esfera pública, com casos reais, e isso traz junto uma energia muito forte . Faz a gente lembrar que não se trata de ficção, mas de uma realidade muito forte, muito perigosa e absurdamente cruel, desleal.

3. “Como se Fosse” recebeu vários prêmios, incluindo Melhor Espetáculo e Melhor Direção, que reconhecem seu trabalho. Como você se sente com essas conquistas e qual a importância delas na abordagem de temas tão sensíveis?

Como fazemos parte do grande movimento do teatro de grupo, antes de mais nada é um reconhecimento desse tipo de trabalho coletivo e comprometido. Sinto que o grande mérito de “como se fosse” é o engajamento das atrizes e direção com o tema. Isso imprimi verdade, afeto e urgência ao tema. As atrizes são ativistas em causas sociais e em causas feministas. Isso cria um tipo de comprometimento que vai muito além do estético e creio que é isso que importa. Buscamos uma forma caprichada, pois para nós era fundamental que o “problema” tocasse o espectador, que o engajasse com o tema num campo afetivo – pois esse é o combustível que move. Penso é que um reconhecimento de um modo de produção e da relevância do tema dentro de uma certa abordagem. Essa “certa abordagem” tem um tanto do meu olhar e fico feliz que tenha tocado. 

4. Como diretora, qual foi a sua inspiração para trazer essa história tão relevante para o público brasileiro? Houve alguma experiência pessoal ou profissional que a motivou?

Já tem um bom tempo que venho me debruçando sobre as questões da violência contra a mulher. Talvez a mais longa e dura injustiça que a humanidade vem perpetrando há milênios. Entre 2014 e 2019, realizei com a Boa Companhia e direção da chilena Cláudia Echenique (com apoio em residência do IBERESCENA) a perfoconferencia Mujeres Violentas, a partir de um levantamento sobre a violência contra a mulher nos mais diferentes lugares do mundo. Os dados são vertiginosos. As histórias, igualmente terríveis. Circulamos, rodamos por congressos, escrevemos artigos. Entre 2015 e 2016, dirigi o espetáculo Bonecas Quebradas, resultando de uma pesquisa realizada no México, sobre os feminicídios em Ciudad Juarez (projeto com apoio do Itau Cultural, com a participação do dramaturgo João das Neves e as atrizes Ligia Tourinho e Luciana Mitkiewicz). Ambos os projetos foram aprendizados intensos e muito, muito, dolorosos. Do ponto de vista pessoal, é raríssimo encontrar uma mulher que não tenha sofrido nenhum tipo de violência. Ela está em todas as partes, em diferentes graus, de diferentes formas. O patriarcado não é uma abstração conceitual. É uma forma extremamente violenta de dominação.  

5. Você poderia compartilhar conosco como o espetáculo evoluiu desde a estreia em março de 2020 no Sesc Jundiaí até a temporada no Sesc Pinheiros? Houve mudanças significativas na abordagem da peça?

Há o amadurecimento do jogo das atrizes entre elas e com a encenação, tudo vai ficando mais azeitado, descobre-se nuances. Públicos diferentes também nos ajudam a entender melhor certas passagens, o retorno, as conversas que acontecem depois, de modo formal com os debates, ou informal mesmo. Isso é que acho lindo no teatro. É uma Arte viva, moldada pelo diálogo. Viva também porque absorve a “psicosfera” de cada tempo, de cada lugar, sem deixar de ser ela mesma. Diferente apresentar a peça depois de um feminicídio no dia anterior ser noticiado em todas as mídias, diferente apresentar no sindicato das costureiras ou na agremiação dos caminhoneiros. Diferente apresentar durante o desgoverno genocida anterior e no momento atual. Embora tudo isso venha constante mente afetando a peça, é de um modo sutil, mas muito perceptível. Dilata-se mais um trecho, tensiona-se mais outro, aumenta-se ou diminui-se a “tinta épica”… coisas assim.  E temos os dados objetivos também, pois “alimentamos” sempre com os dados e nomes atuais de mulheres mortas por feminicídio. Temos usado só os dados de Campinas. E o material é farto. Alarmante isso, não? 

6. A direção de um espetáculo tão intenso pode ser emocionalmente desafiadora. Como você lida com a responsabilidade de transmitir uma mensagem poderosa sobre violência doméstica ao público?

Creio que o ato de compartilhar, assim como o cuidado e a beleza, são duas coisas que ajudam a fortalecer as duas baterias que precisamos: a da compaixão, esse sofrer-com o outro e a bateria da digna-raiva, o desejo e a crença de uma transformação possível. Não uma resposta única para essa contradição, não é uma peça que dita palavras de ordem, ou soluções únicas, mas que nos convida a ficar com o problema. E não é agradável. Não foram poucas as vezes que chorei, quando sinto presente a dor e o susto de muitas que se foram.

7. Como você vê a reação do público em relação à inserção de dados estatísticos sobre casos de violência doméstica no Brasil? Houve alguma controvérsia em relação a essa abordagem?

O momento em que aparece esses dados são como pontos em um bordado maior. Há quem goste mais, há quem estranhe, há quem gostaria de mais, outros nem tanto. Os homens tem maior tendência em desconfiar ou mesmo “incluir-se fora dessa” …rs… rs…., mas até agora, sem controvérsias. Particularmente eu gosto, pois evidencia a máxima feminista de que o pessoal é político. 

8. Você acredita que o teatro tem o poder de inspirar mudanças sociais reais em relação à questão da violência doméstica? Como essa peça pode contribuir para essa transformação?

Acredito no teatro, nas artes em geral. Para o bem e para o mal. A arte molda nosso imaginário e nosso imaginário molda a direção dos nossos afetos. Taí todo a guerra cultural (mundial!) que evidencia essa máxima: dominar as mentes (o imaginário) para se dominar um povo. Então, o contrário também deve valer, né? Libertar as mentes (o imaginário) para se libertar os povos. Só que não é assim tão fácil e nem dá pra medir. O grau das complexidades envolvidas é imenso. Há mais de quatro séculos antes de Cristo, o teatro grego nos deu Lisístrata, de Aristófanes, na qual mulheres cansadas da guerra entre Atenas e Esparta fazem uma greve sexual para forçar uma negociação da paz. Até hoje as negociações de paz parecem impossíveis e as maiores vítimas das guerras continuam sendo as mulheres e as crianças. O teatro não é a grande fogueira da transformação, mas pode ser sim uma faísca e se tiver material inflamável ao redor -nem que seja num único espectador – já será maravilhoso. Não foram poucas as mulheres (e alguns homens) que saíram tocados depois de assistir. O que se passou depois… vai depender dos contextos de cada um. 

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