Entrevista: Claúdio Frêp, cantor e compositor

Entrevista: Claúdio Frêp, cantor e compositor

1. Cláudio, poderia nos contar o que o inspirou a criar o EP “Manifesto Caboclo” e qual é a mensagem central que você deseja transmitir?

A mensagem do Manifesto Caboclo converge para a valorização da miscigenada cultura brasileira e seu poder de expressão resultante do encontro das inúmeras etnias que nos formaram como um povo de alma singular e que se revela em um mosaico étnico/cultural pulsante a reverberar um sentimento universal de humanidade. Na verdade a ideia do manifesto surgiu em 2014 durante a produção do álbum “Tereza” que tem como mote a liberdade sob vários aspectos. Nesse álbum utilizo a figura feminina para desenvolver o conceito de liberdade de forma lúdica, poética e amoral, para isso crio personagens como Rita Morena e Margarida Fina-flor, me inspiro em personagens literários como Joana de “Perto do Coração Selvagem” de Clarice Lispector e Cíntia, uma prostituta da antiga Roma, musa inspiradora do poeta Propércio. No entanto, foi “Cobra Norato” do escritor Modernista Raul Bopp que despertou em mim o desejo de lançar um  manifesto de exaltação a força da nossa rica cultura com a música “5 x AI!”. Nela faço uma analogia entre o mito amazônico da Cobra  Grande e os cordões carnavalescos por onde o povo segue serpenteando, trocando de pele para vivenciar os muitos que trazem em sua essência. Na época fui questionado por fazer alusão ao AI5 da ditadura militar. Diziam que na boa conjuntura social de então, não tinha sentido fazer referência, mesmo que de forma sutil, ao golpe de 64…  pois bem, deu no que deu!  O que aconteceu poucos meses depois, nós já sabemos e é tema para muita história a ser contada.

2.      “Manifesto Caboclo” parece ser um chamado à vida e à resistência. Como você equilibra temas sombrios, como a pandemia, com uma abordagem positiva em sua música?

Costumo dizer que este disco reúne canções feitas no escuro, ou seja, durante o período medieval pelo qual passamos com direito a “peste negra” e tudo. “Promessa Alegre” é a música do EP que faz referência ao sentimento de medo, solidão e angústia que vivenciamos durante a Covid 19. No entanto, apesar do clima melancólico da canção, podemos perceber o sentimento de esperança que a envolve a começar pelo título dado a ela. A caixinha de Pandora foi aberta, mas dento dela ficou a esperança e é nela que procuro me agarrar no sentido do verbo esperançar dado por Paulo Freire. Não falo explicitamente da Covid, mas de sentimentos humanos. Além disso, gosto de trabalhar com as contradições da vida como fomento para a própria vida. Se você quer brincar com a luz,  é preciso aprender a lidar com a sombra que você quer projetar e expor sobre a parede iluminada. Trabalhar com o contraste, mais do que uma das características do Barroco, é uma necessidade humana de enfrentamento ao que lhe é estranho ou você se recolhe sob o domínio do medo ou avança ao que será já esboçado no sonhar humano.

3.      Sabemos que o EP inclui músicas com temas variados, como conservadorismo exacerbado, feminismo e a experiência da pandemia. Como você escolheu esses tópicos e como eles se conectam?

Não foi bem uma escolha, na verdade fui conduzido a socos pelo sentimento de indignação  provocado por esse conservadorismo exacerbado que você menciona, vendido como salvação para os desatentos, mas que não passa de instrumento de guerras que se alastram pelo mundo a fora, dividindo famílias, sociedades, nações. Não planejei ou esquematizei nada. Segui o fluxo dos que não se calam diante da violência, do inaceitável. Não me considero um militante, mas um artista consciente e atento ao que acontece ao redor e ao nosso redor está o mundo inteiro. Então, como otimista incurável que sou, acreditando no porvir de dias melhores, decidi fechar o caixão reunindo em disco flores musicais que exalam temas e impressões desse doloroso momento pelo qual passamos e essa decisão foi tomada antes mesmo da Terra voltar a ser redonda… rsrsrs.

4.      Alguns críticos podem argumentar que a música e a arte não deveriam se envolver em questões sociais e políticas. Como você responderia a esses críticos que questionam o papel da arte na transformação social?

Ignorando o conceito raso de arte que trazem, a esses responderia com uma pergunta  -Qual atitude ou discurso humano que não tem em menor ou maior grau um vínculo político? Há mais de 23 séculos Aristóteles já definia o homem como um animal político. O homem se manifesta politicamente em  tudo que faz  para o bem e o mal, seja através da religião, sexo, futebol, um corte de cabelo, uma roupa que veste…, e até mesmo a pregação do não envolvimento da arte com a política é disseminada como ato político por correntes conservadoras que se sentem ameaçadas pelo pensamento crítico que a arte é capaz de imprimir nas pessoas. A arte é o único campo onde o homem pode correr livremente sem se preocupar com os muros da “matrix” social em que vive. É claro que de alguma maneira, o guarda da esquina sempre estará de prontidão. Mas minha música não é panfletária, trabalho com alegorias para que minha obra seja atemporal. Gosto de explorar recursos linguísticos. Em “folhinha de Couve” por exemplo, uso de ironia para com humor e deboche ridicularizar atitudes preconceituosas e festejar a força agregadora do samba.

5.      O termo “caboclo” tem sido historicamente usado de maneira negativa. Como você acredita que sua ressignificação pode impactar a sociedade e a cultura brasileira?

Quando lançamos um trabalho é natural que esperemos algum tipo de reconhecimento, mas no processo de criação o artista deve fugir da armadilha de querer impactar ou “causar” para que sua verdade não se perca sob o manto acetinado da vaidade. Quando componho, meu compromisso é comigo mesmo e com o que tenho  a dizer e isso é uma atitude de respeito que procuro estabelecer com o público que pode gostar ou não do que apresento. A arte é libertária,  contando a história humana possui o dom de transformar as pessoas, mas  o que impacta mesmo a sociedade é a economia, daí a importância de políticas públicas voltada para  arte como geração de vida. Quanto ao termo caboclo, acredito que cada palavra tem seu sentido construído intimamente e seu significado não é único nem engessado. É um termo que nos remete ao Brasil profundo e o que faço é ampliar o seu sentido de mistura de mistura étnica. A raça humana é uma só. Somos todos misturados e o Brasil é a melhor síntese dessa mistura universal. Somos todos Caboclos!

6.      O EP faz referência a Michel Foucault e seu livro “Vigiar e Punir”. Como você aborda a filosofia em sua música e como ela se relaciona com as questões contemporâneas?

Gosto de filosofia, mas não tenho embasamento para discussões  filosóficas. Tenho consciência de sua importância no desenvolvimento de um pensamento crítico humano e social. História e sociologia também cumprem esse papel, por isso os conservadores tentam banir essas matérias da grade curricular das escolas. Na música “Amor Perfeito” recorro a foucault para de forma cínica criticar os “isentões” que preferem acreditar que o quê ocorre ao seu redor, ou no mundo, não lhes diz respeito. São os chamados corpos dóceis e úteis, segundo o filósofo, construídos e usados socialmente para a manutenção de mundos em ruínas como este que estamos vivendo. São capazes de assistir pela mídia um genocídio de milhares de crianças e mulheres em tempo real e achar que isso não lhes diz respeito.

7.      Cláudio, conte-nos sobre sua jornada como músico e compositor. Quais foram os momentos-chave que o levaram a este ponto em sua carreira?

A música é algo natural em mim desde criança. Na adolescência, comecei a compor de forma intuitiva, mas somente na fase adulta comecei a estudar violão popular e teoria musical. Certa vez, ao ouvir uma aluna tocar o “Tico-tico”, decidi  trancar a matrícula da minha primeira faculdade para estudar piano clássico, mas inconstante como toda geminiano que se preze, depois de seis anos de estudo me deixei ser abduzido pelo teatro sem nunca, contudo, me afastar  da música. Em 2008 produzi meu primeiro disco “I-N-T-E-I-R-O” com o Tom da Bahia da dupla Tom e Dito, mas foi com o lançamento de “Tereza” que me senti envolvido de modo mais profissional e com a ideia de uma carreira que no meu entendimento está apenas começando. O meu terceiro álbum “ Sebastião e o cú do tempo” foi lançado algumas semanas antes da chegada da Covid 19. Assim, o show de apresentação desse álbum  que traz a assinatura de André Muato nos arranjos e direção, não aconteceu e o que ficou como registro desse período pandêmico foram  dois clipes com as músicas “What Poor’s That?” e “Sobre as Mãos de Burle Marx”.

8.      Você mencionou que a opereta pop “Encruzilhada” encabeça o manifesto. Como você vê a importância dessa música no contexto do disco?

Encruzilhada de certo modo é a música que dá nome ao EP e que resgata a ideia do Manifesto Cobra Norato que pensei fazer em 2014 com a música 5 XAI.  A narrativa é a mesma. Se em “5 x AI” a cultura brasileira é exaltada tendo como contraponto o AI5, em “Encruzilhada” o contraponto usado é a violência recorrente dentro de uma certa rede de supermercado onde um cliente sofre um enfarte fulminante e simplesmente seu corpo é coberto com guardassois sem que as vendas fossem interrompidas. Em outro momento um cão é morto a pauladas no estacionamento dessa mesma rede e ainda em outra situação um negro é morto por seguranças por suspeita de furto. Como o nome dessa rede em português significa encruzilhada, uso como oferenda a imolação dessas vidas para invocar a força do Caboclo brasileiro estabelecendo um linque com o universo da umbanda.

9.      Trabalhar com arranjos e direção musical de André Muato é uma escolha interessante. Como essa colaboração contribuiu para o som e a mensagem de “Manifesto Caboclo”?

Ninguém cresce sozinho. Crescemos em contato com o outro. Existem pessoas que sem perceberem nos conduzem a patamares mais altos, nos ampliando o horizonte. No meu caminhar Muato é uma dessas pessoas não só por seu talento inquestionável, mas também pela sua  personalidade generosa, atenta e  desprovida de vaidades corrosivas. No processo criativo, Muato sabe ouvir e usar o silêncio como respostas assertivas que nos conduzem com requinte àquilo que queremos dizer com reverencia a tradição sem abrir mão da contemporaneidade.

10.   Para finalizar, Cláudio, se você pudesse resumir “Manifesto Caboclo” em uma única palavra, qual seria?

Devo ressaltar que sozinho este EP não traduz a ideia do Manifesto Caboclo que virá como show. Com ele apenas completo a trilogia iniciada com o álbum “Tereza” e seguida com  “Sebastião e o Cú do Tempo”. Os três álbuns se conectam com a atmosfera libertária que a arte nos proporciona. Portanto, se existe uma palavra que possa traduzir o conceito que apresento, essa palavra é: LIBERDADE.

Muito agradeço pela entrevista.

                                                                    Cláudio Frêp

marramaqueadmin

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