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Entrevista: Gustavo Gasparani, diretor teatral

Entrevista: Gustavo Gasparani, diretor teatral

1. Gustavo, como surgiu a inspiração para criar “Julius Caesar – Vidas Paralelas” a partir da obra de William Shakespeare? 

Eu li a peça em 2014, e achei que ela combinava muito com a formação da Cia. dos Atores. São quatro atores na companhia e quatro personagens masculinos muito fortes na peça. E me chamou a atenção a relação do poder. Como a relação do homem com o poder em Roma, no âmbito da política governamental, se assemelhava às questões da política interpessoal, das relações do poder, dos afetos, numa relação pessoal que pode ser numa família ou numa escola. Eu quis criar uma história paralela, para que elas fossem correndo juntas e a gente fosse vendo como aquela política romana espelhava uma vida cotidiana. As questões do poder são as mesmas, só varia o ambiente.

2. Você pode nos falar sobre como a peça aborda as complexas relações de poder, tanto na trama original de Shakespeare quanto nos bastidores do processo criativo do teatro? 

Eu fiz um espelhamento. Shakespeare foi à Roma Antiga pra falar das relações de poder da Inglaterra renascentista dele, do período Elizabetano. E nós fomos ao texto de Shakespeare sobre a Roma Antiga, para falar das questões do nosso tempo. O que me chamou a atenção é que as questões do homem com poder são muito semelhantes, tanto no âmbito governamental como no âmbito pessoal, nas relações familiares, de trabalho. Então, à medida que a peça começa, você tem a história do Shakespeare e você tem a história de uma companhia ensaiando a peça de Shakespeare. Você vai vendo questões de relacionamento tanto naquela Roma Antiga quanto no grupo de teatro. À medida que a trama vai evoluindo, você vai percebendo que as relações são semelhantes a um ponto tal que elas se juntam no final. E você tem uma única história, que serve tanto à história de Shakespeare quanto à história da companhia. É um espelhamento total.

3. A contemporaneidade do texto de Shakespeare é surpreendente. Quais elementos da obra original você achou mais relevantes para o nosso contexto atual?

Exatamente a relação do homem com o poder, ela não varia em nenhuma época. A ambição, o desequilíbrio, o destempero do homem diante da possibilidade do poder é enorme, sempre foi assim e sempre será. Nós estamos vivendo agora uma questão de guerras que estão ligadas a esse destempero, essa ambição desmedida, esse desequilíbrio, então eu acho que o tema principal já é contemporâneo e já justifica montar o texto.

4. Na celebração dos 35 anos da Cia. dos Atores, qual foi o desafio mais marcante ao dirigir essa peça? 

O desafio mais significativo e mais marcante foi ser durante a pandemia. Nós começamos, paramos, mudamos equipe, mudamos elenco, voltamos, recomeçamos, paramos, enfim… Foram quase três anos para conseguir montar. Era para estrear em 2020 e estreou em 2023.

5. Como foi o processo de escolha do elenco e o que os atores trazem de especial para seus respectivos papéis?

Eu escrevi os personagens para a Cia dos Atores. Por conta da pandemia, houve milhões de impossibilidades, mudanças de agenda, e aí eu chamei outros atores. Chamei atores que tinham ligação com a gente. Por exemplo, Gilberto Gawronski, que foi o primeiro diretor a dirigir a companhia, que até então só era dirigida pelo Enrique Diaz, que também era membro. Isio Ghelman é um ator com quem eu trabalhei algumas vezes, somos amigos, parceiros, e eu ansiava retornar a trabalhar com ele. O Cesar Augusto [integrante da Cia] já estava, Gabriel Manita trabalha comigo em musicais. E a Suzana Nascimento, eu não a conhecia e fizemos uma leitura, achei que tinha tudo a ver a personalidade dela com a do personagem, e a escolhi por conta dessa força, dessa vitalidade que ela tem em cena.

6. Muitos críticos apontam a audácia de adaptar uma obra clássica de Shakespeare para o contexto moderno. Como você lida com essas críticas? 

Honestamente, eu não me preocupo com isso, não. Me preocupo em fazer algo legal. Essa foi a minha quarta experiência com Shakespeare. E graças a Deus, todas foram muito bem sucedidas. A primeira foi “Otelo da Mangueira”, a segunda foi o monólogo “Ricardo III”, a terceira “Romeo e Julieta ao Som de Marisa Monte”, e agora “Julius Caesar –  Vidas Paralelas”. Em todas as vezes que montei Shakespeare,  trouxe alguma coisa diferente do meu tempo, e fiz o que ele na verdade fez com as histórias que pegava sempre de alguém e transformava de uma forma dele, adaptava para ele, para o tempo dele. Mas não parto do princípio que é um problema adaptar Shakespeare.

7. “Julius Caesar – Vidas Paralelas” lida com temas políticos. Como você enxerga a conexão entre a peça e o atual cenário político no Brasil? 

Essa é questão do cenário político atual – o Brasil tem um cenário muito criativo. De tempos em tempos tudo muda, tudo se transforma, traz muitos atrativos para quem quer trabalhar com o tema. Quando eu fiz “Ricardo III”, que também é uma peça política, a cada verão o espetáculo ganhava novo contexto graças à criatividade dos nossos políticos, da cena política brasileira. Acho que com “Julius Caesar – Vidas Paralelas” é a mesma coisa: a cada estação, a cada semestre, nós temos um novo dado que contribui para fazer a peça, e ela foi ficando cada vez mais moderna e foi se tornando melhor o momento para montá-la. Eu acho que agora, em 2023, e se Deus quiser em 2024, continuaremos fazendo, e será o melhor momento para montarmos essas peças.

8. Existe uma preocupação em relação à interpretação da peça como uma crítica indireta à política contemporânea? Como você encara essa possibilidade?

Não há preocupação alguma. Eu só não quero fazer uma peça didática, nada que aponte uma verdade. Assim como Shakespeare nunca fez isso – ele aponta possibilidades, cabe ao espectador escolher a sua verdade, escolher o seu caminho. Então, nós vamos ter um espectador que vai achar que a peça é mais para a direita, outro que é mais para a esquerda, outro que é mais para o centro, e a partir daí ele vai tirar as conclusões dele. O que a gente expõe são as situações do homem com o poder. E aí cabe à plateia refletir, e cada uma reflete de um jeito – em cada cidade é de um jeito, numa semana é de um jeito, na outra semana é de outro. E a gente conversa com a plateia, porque tem um momento da peça em que a personagem da diretora fala com o público, como se ele fosse o coro do espetáculo. E os espectadores opinam, a gente discute e continua a peça.

9. Como um dos fundadores da Cia. dos Atores, como você vê a evolução do grupo ao longo dos anos e qual é o papel da peça “Julius Caesar – Vidas Paralelas” nesse contexto?

Nós estamos com 35 anos. É claro que existem milhões de mudanças nesse relacionamento. Começamos com oito integrantes, saíram dois, ficamos com seis, uma faleceu. Hoje em dia, somos cinco. Temos todos 50 e poucos anos. Então, a vida transforma também as necessidades, os desejos. No momento, quem está à frente desse projeto sou eu e o Cesar Agusto. Antigamente a gente fazia todo mundo junto as peças. Hoje em dia a gente não tem essa necessidade. E os dois elementos da companhia que estão à frente sou eu e o Cesar, e o Marcelo Olinto também participa, porque ele é o figurinista e o produtor da peça. Mas eu acho que é sempre renovador. Você tem que renovar para conseguir suportar e sobreviver – o melhor o verbo é sobreviver – durante 35 anos de relacionamento. Estamos mais para 36 agora. E uma das coisas que aconteceu foi essa “ventilada”. Eu sempre na Companhia dos Atores trabalhei como ator e ponto. Embora no mercado eu trabalhe como diretor, como autor, produtor… E aqui, nessa peça, eu estou dirigindo e fazendo a dramaturgia. Tem o texto do Shakespeare e tem o meu texto juntos. Então é um desafio bom estar nesse lugar. Já é uma nova forma de se relacionar com os outros elementos da companhia. Eu acho que é uma coisa salutar. Você sempre tentar buscar novas possibilidades, novos pontos de vista para manter o relacionamento fresco, jovem, com tesão.

10. O que a Cia. dos Atores representa para o cenário teatral do Rio de Janeiro e do Brasil, considerando seus 35 anos de atividade?

Isso é tão difícil responder, porque qualquer coisa que eu diga vai ficar cabotino. Mas inegavelmente é um grupo de pessoas amantes das artes cênicas, do teatro sério, obstinadas em seu trabalho, dedicadas ao que fazem, ao seu ofício, um grupo que contribui claramente para a cena contemporânea carioca há muitos anos e acho que no Brasil também. Nós viajamos bastante, também para fora, temos prêmios internacionais. Fizemos turnê na América Latina, América do Norte e Europa. Acho que com a maturidade, com esses anos todos de vivência, a gente vai virando também uma referência para os jovens, como outros grupos foram referências para nós. Então eu acho que é bacana a gente estar em atividade. Porque, por exemplo, eu estou dando aula na faculdade da CAL agora, e você vê as pessoas estudando. Estudam o movimento teatral dos anos 80, 90, e a gente aparece, a Cia dos Atores aparece como referência para esses jovens atores, mas eles também podem ver essa companhia em atividade, dialogando com o tempo deles, com o nosso tempo atual. E eu acho que isso é importante, porque teatro mesmo se faz em grupo, não tem outro jeito.

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