Entrevista: Banda Colibri

O que motivou a continuidade da trilogia 3R e como 3R [pt. II] se diferencia do primeiro capítulo?
Essa trilogia nasceu da necessidade de comunicar um álbum longo de forma mais acessível. Tínhamos umas 15–20 músicas que se completavam, criadas desde 2021. Quando decidimos começar a lançá-las, entendemos que, dessa forma, conseguiríamos aproveitar melhor todo o material que surgiu, além de permitir que qualquer novidade integrasse o conjunto, já que levaria um tempo para tudo tomar forma. Isso possibilitou uma fluidez, mesmo diante das mudanças que vieram nos anos seguintes. A entrada e saída de alguns membros, bem como a passagem do tempo desde que tudo começou, fez com que o 3R funcionasse como uma série em três temporadas: há um sentimento base, uma estética que percorre os três, mas novos personagens podem aparecer, o tom da narrativa pode mudar e até mesmo algumas reprises de estágios anteriores (como o instrumental “The Roadhouse”) podem surgir.
Esse segundo capítulo tem uma atmosfera de rebeldia e inconformismo, com novos elementos e participações especiais que deram um tempero único. Tem mais libido, ainda que numa alma melancólica. Houve um intenso esforço de exacerbar as nuances dos sentimentos com uma produção afiada, de extrapolar a ideia prévia que tínhamos da nossa musicalidade. O primeiro é um pouco mais romântico, nostálgico e reflexivo. Usando o tarô como referência: a parte I seria como a carta “O Louco” e a parte II como “A Lua”.
A banda se isolou em Cachoeira do Itanhy durante a pandemia para criar esse projeto. Como esse período influenciou a sonoridade e a temática do disco?
O período de isolamento colaborou para que temas intensos e catárticos refletissem os desafios do momento. Sonoramente, toques de progressivo, pós-punk e dream pop abriram espaço para movimentos que vão desde a nostálgica psicodelia dos anos 70 até o romantismo gótico e a irreverência fantasiosa de bandas como Joy Division e Cocteau Twins. Nas letras, os conflitos internos e as transformações pessoais dos integrantes, ao longo dos últimos quatro anos, são colocados em evidência. Em meio a desafios como luto, distanciamento e dissolução do ego, o registro se posiciona como um rito de passagem.
Estávamos rodeados de más notícias o tempo todo e sem tocar havia tempos, em virtude da pandemia. Não poder sair de casa ou sequer vislumbrar quando poderíamos retornar aos ensaios e palcos foi um baque. Quando decidimos ir para Cachoeira, foi uma espécie de retiro. Definitivamente, um ato em prol de não deixar aquilo engolir a gente.
Uma vez lá, tudo isso era contrastado por um ambiente muito belo e positivo — já que a casa onde estávamos era afastada da área residencial, onde podíamos tocar a qualquer hora do dia sem incomodar ninguém, e respirar um ar fresco.
A produção do álbum levou oito meses, com gravações semanais em dois estúdios diferentes. Como foi esse processo e quais foram os principais desafios?
Foi um ano de muito movimento, entre gravações e ensaios para shows que também ocorreram no meio disso. Para nós, tem sido gratificante ter uma rotina intensa em torno da banda — sempre almejamos isso. Esse disco foi marcado por um momento mais experimental, no qual a banda foi adicionando detalhes ao arranjo em camadas. Algumas canções estavam prontas há muito tempo e tiveram várias versões, o que favoreceu enxergarmos elas de maneira mais profissional e crítica. Além disso, não tínhamos medo de tentar, sabe? O que ficou nas músicas foi resultado de olhares satisfeitos e sorrisos fraternais que solidificaram essas escolhas.
No quesito lírico, buscamos sacudir um pouco. Trouxemos amigos para mudar o tom da história com suas narrativas lindas, e isso fez o álbum saltar mais aos olhos. Os maiores desafios eram o tempo e os deslocamentos: alguns membros estavam finalizando seus cursos de graduação, outros moravam em cidades diferentes e levavam uma hora (ou mais) para chegar ao estúdio. Mas nada que atrapalhasse o fluxo. A maioria foi gravada no ano passado, entre o Estúdio Mangus (na Ribeira) e o Cremenow (em Brotas). Além disso, a parte II tem duas músicas criadas e gravadas em Cachoeira: “The Roadhouse, pt. II” e “Out of Grrrasp” (apesar de as respectivas participações terem gravado suas vozes após nosso retorno do isolamento).
A identidade visual do álbum, assinada pelo tecladista Rodrigo Santos, apresenta paisagens abstratas e texturas marcadas pelo tempo. Como essa estética dialoga com o conceito do disco?
A estética dessas pinturas expressa a passagem da própria banda, que, no primeiro álbum, vinha de uma paisagem bucólica e idílica, e chega agora a um ambiente urbano, onde o movimento e a vibração são ditados por estruturas racionais e matematicamente organizadas. Fala também do crescimento da própria banda, que de lá para cá adquiriu mais sintonia e pôde se aprofundar numa convivência criativa e harmônica.
A introdução do saxofone na banda trouxe novas possibilidades sonoras. Como foi explorar essa nova textura no rock progressivo e no jazz experimental?
Foi prazeroso esse encontro. Para além de o saxofone ser um dos principais instrumentos do jazz, a forma como Pitta o aborda — conseguindo colocar muito da sua trajetória musical nas composições e interpretações — inspirou e acendeu novas chamas criativas em todos nós. Sonoridades concebidas a partir de materiais melódicos, rítmicos, técnicas não tão usuais no saxofone, e a mistura disso tudo com os pedais de efeito que ele vem utilizando ao longo da sua carreira, incendiaram “Cuban Coffee” e transformaram a faixa num jazz-rock-progressivo-experimental, por assim dizer!
O disco aborda temas como a passagem do tempo, o consumo desenfreado e a busca por conexões autênticas. Qual a principal mensagem que vocês gostariam que o público absorvesse?
Para nós, a ideia de que cada cabeça é um mundo diferente, que pode dar novo sentido à nossa música, é empolgante. Valorizamos demais essa magia que surge quando as pessoas se identificam conosco e dão um mundo de significado para algo que, por vezes, é maior do que imaginávamos. Por isso (com todo cuidado para não macular essa ponte onírica que cada um gera com nossa música e encerrar o mistério), diríamos que nossas músicas são o diário da busca por uma conexão com a alma, com os impulsos inexprimíveis do nosso eu mais profundo. Mapas das soluções que achamos ou dos tesouros que ainda procuramos dentro de nós. Acreditamos na capacidade de regeneração da alma humana diante da dureza da vida — e na arte como celeiro da liberdade. Sem acesso a uma arte livre e expressiva, uma comunidade não se sustenta por muito tempo. E esse tronco é a nossa contribuição para a fogueira da Arte.
3R [pt. II] transita entre rock progressivo, pós-punk e jazz experimental, além de flertar com folk, dream pop e música eletrônica. Como a banda equilibrou essas influências diversas?
Essas relações acontecem de forma muito rápida e raramente calculada. Algumas músicas surgem como um mantra que se repete na nossa cabeça até se tornar maior que tudo e vir ao mundo em forma de composição. Outras são como pensamentos que vagueiam e retornam a cada encontro para serem executados e ouvidos. Nisso, vamos testando o que funciona e colhendo do repertório que cada um tem as ideias possíveis. Na gênese das músicas, há sempre um sentimento que predomina, e ele se associa com um instrumento ou gênero musical quase que por tradução. Tem um valor inefável aí, onde não dá pra apontar bem por que cada coisa se relaciona — e há uma beleza nisso. Dessa forma, pela variedade de vivências e referências de cada membro da banda, essas misturas brotam de forma natural. Compartilhamos muita música entre nós e já temos uma afinidade com o caminho criativo um do outro, que nutre um calor familiar no modo de tocar que compartilhamos. Não conversamos tanto sobre o que esperamos das partes uns dos outros — só deixamos fluir até chegar a um ponto em que todos conseguem se enxergar nas músicas. Só então gravamos, e depois vamos esculpindo um fonograma final.
“Cuban Coffee” discute a alienação moderna e traz influências afro-diaspóricas. Como vocês trabalharam essa fusão de estilos para traduzir a temática da faixa?
Zé Neto: Essa música vem de uma toada de composições que surgiram de pequenas inquietações diárias. Adquiri de uma amiga o costume de andar por aí com um caderno de folhas brancas na bolsa, e costumo anotar nele ideias que surgem na rotina. Numa visita ao shopping, escrevi “I guess nature isn’t meant to rush” e comecei a pensar nessa dicotomia entre o super-artificial e a natureza. A fusão entre aspectos mais modernos e influências mais espirituais de um mundo que não é atravessado pela tecnologia ou pela racionalidade exagerada vem desse contraste entre o autêntico e o artificial. O rock, o jazz, a música afrobahiana — todas são manifestações muito autênticas, então tudo aponta para a busca por algo mais real (um bom café coado em casa), em detrimento de tudo que é superproduzido/industrializado (latte de baunilha).
O álbum conta com colaborações de Bianca Gonzales, Galf AC, Dubzoro e Alfão. Como surgiram essas parcerias e qual a importância delas para a identidade do disco?
São todos parceiros contemporâneos da música baiana, que atravessam a cena há anos e, de diversas formas, nos inspiram e apoiam. Bianca é amiga pessoal de Zé Neto, fundadora da Noite Suite e dona de uma voz única. Quando a ouvimos cantar ao vivo pela primeira vez, Zé tinha acabado de criar a música “Boca Que Quis” e fez de tudo para ela participar. Ficou incrível, e certamente mais coisas virão dessa parceria. Galf A.C. é um rapper de ouvido muito apurado e refinado… um veterano do Cremenow (estúdio do nosso produtor e baixista Tiago Simões). Nos aproximamos aos poucos, entre uma gravação e outra, trocando figurinhas e sempre com referências em comum. Foi de Galf a ideia de trazer rimas para “The Roadhouse, pt. II”. Logo depois, por conhecer e admirar bastante o trabalho deles na Underismo, conectei com Dubzoro e Alfão — uma dupla de artistas incríveis e de uma versatilidade única — para completar a track. Isso aconteceu através de Gabriela Bonfim, uma amiga minha que frequentava os shows e conhecia membros do grupo.
A faixa “The Roadhouse, Pt. II” une rock e rap, criando uma atmosfera intensa e reflexiva. Como foi o processo de composição e gravação dessa música?
Essa música nasceu de uma jam session gravada em setembro de 2021, quando estávamos em Cachoeira. É a segunda parte de uma jam de 36 minutos, que surgiu numa das últimas noites da nossa estadia na cidade. A sonoridade vem dessa inquietação criativa vivida num tempo tão incerto. Misturamos ruídos noturnos e melodias para criar uma atmosfera misteriosa, cheia de pequenos detalhes e texturas.
Como assistíamos quase todas as noites à série Twin Peaks, do David Lynch, decidimos chamar a faixa de The Roadhouse, em referência a um dos lugares mais marcantes da série. Todo o clima da música bebeu dessa estética sombria e errante. As rimas dos convidados se somaram de maneira precisa ao ambiente da faixa, trazendo contexto e força para a camada instrumental. Falam sobre OVNIs, ciclos, vícios e as incertezas que nos cercam — tudo isso se revelou naturalmente nessa construção coletiva.