Entrevista: Wem, cantor e compositor

- O título do álbum, “ Posto, Logo Existo” , é uma provocação direta ao nosso tempo. Como nasceu essa ideia e o quanto ela reflete sua visão atual sobre o uso das redes sociais e a construção da identidade?
O título “Posto, Logo Existo” é um verso de uma música da faixa número 3 deste álbum que se chama Tudo Atrás da Tela. Ela fala assim, “Posto logo existo, que esquisito”. E essa música retrata um pouco, assim, desde o começo, em que a gente estava muito otimista com a coisa da virtualidade, das redes, da internet, da democratização do acesso à informação, a educação, a quebra de barreiras. Então o mundo ia se unificar, a globalização… Tem todo esse ímpeto e toda essa vontade, e a esperança estava muito nessa coisa da internet. E hoje o que a gente está vivendo, no fundo, é exatamente o oposto disso.
A gente tem ficado cada vez mais polarizado, cada vez mais nas bolhas – as redes, refletem muito só o seu próprio pensamento. Então as pessoas estão só falando com iguais, tem muito pouca diversidade, muito pouca gente pensando e argumentando e contra-argumentando, que é o que faz o pensamento se movimentar.
Então acho que a gente tem que sair desse lado um pouco inocente, que a gente ainda está, que a gente ainda vive um pouco. Acredito que a gente ainda está meio alegre nessa história toda, e a gente precisa dar uma refletida no que é bom e no que não é. Então, na frase, “porque posto logo existo” vem da célebre frase “penso logo existo” e eu acho também muito curioso tirar o pensamento dessa frase, não só pelo “posto”, porque o posto ali na repetição, de você se mostrar, de você se colocar, de você mostrar. Porém, tem a falta de reflexão, a gente tem pensado pouco, e pensado pouco também em relação às redes.
- As músicas falam de excesso, de tempo escasso, de relações mediadas por telas. Como foi o processo de transformar essas inquietações em arte sem cair no tom de denúncia ou amargura?
As músicas, geralmente, têm um processo de composição que eu componho sempre – eu tenho um espaço reservado no meu dia a dia pra compor. Tendo ideia ou não, eu sento – é um ofício de sentar e compor – e aí, quando comecei, até a ideia de fazer um álbum novo, eu fui ver, reunir as coisas que eu tava escrevendo e as músicas que eu tava fazendo, e comecei a perceber que essa inquietação dos excessos – da falta de tempo na verdade – tinham esses dois conjuntos de música bem separados. Assim, músicas que falavam das coisas essenciais da vida, fundamentais da vida, pra ela acontecer e continuar acontecendo, coisas que estão fora da contemporaneidade, e músicas muito falando dessa inquietação dos excessos todos, do excesso de tela, do excesso de informação, das coisas das redes, da coisa bem contemporânea que a gente tem vivido.
Então, foi assim, fui olhando isso e percebi que também ali tinha igual nas redes, tem a polarização. Você tem um lado e o outro. Comecei a ver esse conjunto de canções bem separadas, bem distintas, um que falava da vida, da natureza, das coisas fundamentais e os outros que falavam das inquietações e das problemáticas que o próprio ser humano, a gente, foi se colocando.
E as redes sociais como fator principal aqui desse outro polo. E aí eu comecei a compor também mais músicas pensando nisso. Então, foi assim que surgiu.
E eu acho que não tem um tom de denúncia nem de amargura, porque a ideia da minha composição e a minha ideia é que essas músicas sejam um ponto de partida para reflexão. Porque a gente gosta das redes sociais, elas têm coisas boas. Se a gente está viciado, é porque também tem coisa boa ali.
A gente gosta de estar lá, a gente gosta de interagir, a gente ri, a gente, enfim, a gente aprende também. O problema é que, como não tem nenhuma regulamentação e a gente também não tem nenhum repertório para saber como lidar com isso, estamos lidando mal. Acho que tem muitos excessos, mas também tem coisa boa.
Eu acho que o disco, ele é um ponto de partida para a gente criar diálogos e para a gente refletir sobre o que é bom e o que é ruim disso tudo.
- A faixa “ A felicidade veio pro jantar” trata com ironia a busca por uma felicidade constante. Qual foi o ponto de partida para essa composição?
O ponto de partida dessa composição foi exatamente as redes, essa coisa de ser da vida editada, principalmente da vida editada das pessoas. E que só tem momentos felizes, só tem as viagens, as coisas boas, e a gente vai mandando pro nosso cérebro dizendo pra ele “olha só, os outros é que são felizes, né? Olha essa pessoa, eu vejo aquilo aqui, deixa eu entrar aqui nesse perfil, nossa, olha, ela foi na praia, nossa, ela foi na montanha, nossa, ela foi em tal restaurante, nossa, ela tá com tanta gente, olha, ela foi em festa, nossa, ela vive uma vida tão boa”. – para o nosso cérebro que tá vendo aquilo, imagina que o outro é super feliz, ao mesmo tempo que questiona do porquê não tenho essa mesma felicidade.
Então, a faixa foi pensada nesse contexto e nessa busca, como se a felicidade fosse algo constante, perene – o que é uma falácia. Foi uma “brincadeira” com isso, e pra gente começar a pensar que a felicidade são os momentos que temos de felicidade, ela vai e vem e é isso, é normal, tem que ser assim.
- Seu trabalho é marcado para transitar entre o universo adulto e o infantil. Como essas experiências – especialmente no Tiquequê e na Palavra Cantada – influenciam o olhar com que você construiu suas canções hoje?
Eu acho que o trabalho com o Tiquequê e com a Palavra Cantada, me ajuda e me influencia muito, porque eu bato muito na tecla da diversidade – a vida se dá na diversidade. Eu acho que quanto mais experiências diversas a gente vai acumulando e tendo na nossa vida, mais completa e mais rica ela vai ficando, então, nesse sentido, acho que compor e estar permanentemente em contato com as crianças é fundamental. Se tem uma coisa que as crianças ensinam é essa abertura, a gente tá aberto ao novo, aberto para experimentar, aberto pra conhecer, eu acho que isso é o grande aprendizado que fica ali quando estou com as crianças. Então, eu acabo, quando eu vou compor, muitas vezes a música já vai puxando pra uma, ah, isso aqui é mais pro Tiquequê, ou é mais pro meu trabalho adulto.
- Há também um cuidado estético e sonoro muito presente no álbum, que vai do minimalismo à riqueza de camadas. Como foi o processo de produção musical e escolha dos arranjos?
Primeiro, obrigado, que bom que você gostou. Realmente eu tive um cuidado bem grande em fazer todo esse trabalho. É um álbum muito autoral meu, esse processo começou ainda no fim da pandemia, foi um processo que demorou alguns anos, eu fui fazendo um pouco, parando e voltando, mas esse é o meu primeiro disco que eu fiz praticamente inteiro sozinho.
Eu gravei quase todos os instrumentos, a não ser uma ou outra bateria, que eu não gravei, mas o saxofone, as flautas, os violões todos, as guitarras, os baixos, os arranjos vocais, os pianos, a percussão, tudo eu fui gravando, e que eu queria me entender em todos esses instrumentos, buscar as minhas sonoridades e o que falar com cada um desses instrumentos, com essas músicas. Coloquei esse desafio pra mim, e fui gostando muito desse processo, e depois ainda mixei todas as músicas, coisas que eu também nunca tinha feito, que é a finalização do trabalho. Depois para a masterização eu chamei, claro, uma pessoa que também me ajudou muito na mixagem, que é o Eduardo Garcia. Então, foi um processo muito primoroso, muito pessoal. Se tem alguma coisa ali que alguém achou ruim ou bom, não tem como eu me esquivar, eu vou ter que falar, fui eu que fiz – se está ruim, estou aqui; se está bom, estou aqui também. Por isso que fiquei, inclusive, lisonjeado com a sua pergunta.
- No show que acompanha o disco, há releituras de Gil, Rita e Ney. Como essas referências dialogam com a mensagem que você busca passar neste momento de sua carreira?
Quando eu comecei a pensar no show, eu também quis trazer músicas que dialogassem com o tema do álbum. Músicas que trouxessem de alguma maneira, seja com a letra, ou com a própria composição ou arranjo musical. No caso, essas músicas entram um pouco fazendo essa costura, até coisas mais antigas. Por exemplo, a música do Gil é a música “Cérebro Eletrônico”, que ele estava lá atrás pensando nisso já. Então quer dizer, essa temática da tecnologia, do computador e tudo mais já estava presente em outros tempos – e como isso mudou de lá pra cá, e achei interessante trazer. Da Rita Lee é o “Alô, Alô Marciano”, que é essa coisa da gente mandar um recado para um extraterrestre, fica tão nítido como o planeta é uma coisa só, que somos uma espécie só viajando aqui nessa bola azul. A gente se perde em picuinhas e cria barreiras bestas, muito menores do que o milagre da vida. Tem a música “Televisão” do Arnaldo Antunes, que fala sobre a televisão, que me deixou burro; Era a questão da TV naquela época, e hoje a gente tá aqui debatendo sobre as redes. As músicas foram todas muito pensadas ali com o roteiro do show, para conduzir essa experiência para vários diálogos possíveis.
- A arte, como você mesmo afirma, pode ser um farol diante do caos. Que tipo de escuta você espera provocar em quem se depara com esse álbum pela primeira vez?
A minha pretensão maior com o álbum, primeiro, é que ele seja um momento gostoso, de prazer, de escutar música. Você está ali, tem tantas camadas nesse álbum, eu acho que as camadas musicais, das letras, tem esses dois pólos que eu falei anteriormente: das coisas fundamentais da vida, da natureza, da beleza e das inquietações do cotidiano, como a gente se perde um pouco e tudo isso que está permeando. Eu sinto que essas inquietações que eu tenho, são inquietações que estão em todas as conversas, nos grupos da escola, nos bares, no trabalho. Onde a gente está, está todo mundo um pouco preocupado, sem saber um pouco também o que fazer com tudo isso, porque a gente esquece que existem mentes muito brilhantes trabalhando para essas empresas e, no fundo, elas estão visando lucro, e elas não querem que a gente saia dali.
Então, eu sinto que tem uma angústia grande da sociedade em relação às redes e ao tempo que a gente está perdendo ali, mas, ao mesmo tempo, a gente não consegue sair disso. Eu acho que, se tem uma pretensão do disco, é primeiro que ele seja um momento bom, gostoso, e que ele causa um pouco essa reflexão da gente pensar, começar a pensar quais são as possíveis saídas, uma música pode dar um estalo, ou você se ver naquela situação e fala que está de fato fazendo exatamente isso que essa música está falando, porque as músicas acabam sendo muito autobiográficas.
Essas inquietações que estão lá são as inquietações que eu tenho passado, ou que eu passei num momento que eu estava escrevendo. Então, é isso. E as respostas que eu tenho tido desde o lançamento agora, com o mês de lançamento, são maravilhosas, dos relatos das pessoas me escrevendo justamente isso, falando que tal música me fez pensar: “nossa, eu passei exatamente por essa situação com um amigo”; “ah, mandei pra fulano digital essa música”; “fui lá raptar meu amigo pra gente sair na sexta-feira”, que é uma frase de uma música. Enfim, é isso. Agora o próprio disco vai criando a história dele.
- Para fechar: que conselho você daria para quem, como você, está tentando “ existir com verdade em meio aos excessos”?
Eu acho que a gente tem que buscar a diversidade, sempre. Acho que é isso que faz a vida ficar mais rica, mais potente. Então, falando ali das crianças, que quando eu tenho muito contato nos shows e a gente vê muito essa abertura das crianças para o diverso, para o diferente, essa coisa da novidade, o olhar.
E acho que a gente, ao longo da vida, vai perdendo um pouco isso, e a gente buscar encontrar isso e proporcionar para a gente mesmo momentos diversos, acho que é um bom caminho para se testar. E aí para isso a gente precisa sair um pouco das redes, porque as redes vão cada vez mais só repetindo coisas e cada vez mostrando coisas mais parecidas para a gente, mais clichês e menos diversidade.