Entrevista: Henrique Sampaio, professor

1. Henrique, como surgiu a vontade de sair do papel de professor de história para o de contador de histórias literárias?
Apesar de minha formação original ser em história e de ter atuado muitos anos em sala de aula, há cinco anos exerço o cargo de gestão escolar. Então posso afirmar que estou em contato com outras narrativas que não as dá ciências históricas. Os dramas, as dificuldades, sonhos, alegrias e tristezas dos estudantes, professores e funcionários, são agora os problemas que me mobilizam, fora a parte estrutural e financeira. No final tudo vira matéria prima para a literatura. Sempre fui um observador do mundo e das pessoas, e como professor de história (e também como gestor), aprendi a ver os fios invisíveis que ligam passado e presente, as correlações entre os eventos, as características de determinado personagem e isso me entusiasmava. Porém como sempre fui criativo, senti a necessidade de inventar minhas próprias histórias.. A literatura me permitiu isso: mergulhar mais fundo nas emoções humanas e criar a partir da intuição e da memória afetiva.
2. O que o motivou a escrever Périplo da Expiação especificamente — houve algum momento ou acontecimento que impulsionou essa ideia?
O livro nasceu de uma inquietação pessoal. Eu já havia escrito um primeiro livro que não foi publicado e estava procurando um tema que realmente me mobilizasse. Na mesma época, decidi parar de beber, iniciei o processo de análise e estava lidando com questões profundas. Foi natural que muitas dessas questões transbordassem para o romance.
3. Você mencionou que o livro nasceu de uma inquietação. Poderia falar mais sobre essa inquietação e como ela se transformou em narrativa? O protagonista Nando é um homem em busca de redenção. De onde veio a inspiração para criar esse personagem?
Nando carrega muitas das minhas próprias perguntas não respondidas. A inquietação vinha da culpa, do medo de não ter sido bom o suficiente em algumas relações, da sensação de ter deixado rastros mal resolvidos pelo caminho. Transformar isso em narrativa foi quase um processo de organização interna. A lista de pedidos de perdão do Nando é também a minha tentativa de nomear ausências.
4. E a Lola — como ela surgiu na história e o que ela representa dentro da trama?
A ideia original do romance era construir uma ode ao encontro. Queria colocar em diálogo um homem mais velho e uma mulher mais jovem, debatendo temas sob a ótica de diferentes gerações. Mas foi só durante o processo de escrita que descobri, de fato, sobre o que eu queria falar.
Nesse contexto, Lola surgiu ao mesmo tempo que Nando — como um espelho invertido.
Se ele está voltado para o passado, tentando compreender o que ficou, ela olha para a ausência que ainda a move: o pai que foi embora. Lola representa essa juventude ferida, mas ainda cheia de força vital.
Ao colocá-los juntos, eu quis explorar o que acontece quando duas dores se encontram: elas colidem, sim, mas também se reconhecem.
5. O livro aborda temas como alcoolismo, machismo estrutural, solidão urbana e relacionamentos tóxicos. Como foi trabalhar com essas questões tão densas sem perder a sensibilidade?
Eu escrevi com muito cuidado. Fiz uma pesquisa muito intensa, fui ler outras vozes que tratavam do tema. Não queria romantizar nada, mas também não queria cair na denúncia óbvia. Esses temas fazem parte do tecido da vida dos personagens, mas não são tratados como bandeiras — estão ali, silenciosos, do jeito que a dor real costuma se manifestar. Acho que a sensibilidade veio justamente de respeitar esse silêncio.
6. A lista de pessoas a quem Nando quer pedir perdão funciona quase como um mapa emocional. Como você chegou a esse recurso narrativo?
Muitas coisas mudaram durante o processo de escrita, mas essa ideia permaneceu intacta.
Desde o início, imaginei o personagem percorrendo esse caminho como uma tentativa de redenção — uma forma de remover os entulhos emocionais que o impedem de seguir em frente.
Uma ideia que me acompanhava o tempo todo era essa: para seguir adiante, às vezes é preciso voltar. E voltar com nome e sobrenome.
A lista surgiu como uma estrutura possível para a jornada do Nando. Ela dá forma à culpa, delimita a travessia. Cada nome é uma memória que precisa ser revisitada com um novo olhar.
7. Quais foram os maiores desafios que enfrentou ao escrever seu primeiro romance?
O primeiro grande obstáculo foi o tempo. Como gestor escolar, meu cotidiano é tomado por compromissos, urgências, demandas que se acumulam. Encontrar espaço para escrever exigiu disciplina, acordos internos e, muitas vezes, escrever nos intervalos entre um cansaço e outro.
Mas, depois de encontrar o tempo, veio o segundo desafio — talvez o mais difícil: calar a voz que dizia que o texto era ruim demais, que eu não deveria me arriscar a ser artista. Essa voz crítica é insistente, cheia de dúvidas, e por vezes me paralisou.
E junto com ela, vieram os bloqueios. Posso listar alguns que me acompanharam durante a escrita: o medo de me expor demais, já que há muito de mim no livro. O bloqueio da comparação, aquela armadilha de achar que nunca será tão bom quanto os autores que admiro. O bloqueio da desistência súbita, que aparece quando você já escreveu bastante, mas acha que nada faz sentido. O bloqueio da espera de uma grande ideia, como se só fosse válido escrever quando tudo estivesse claro — o que raramente acontece.
Aprendi, aos poucos, a conviver com esses bloqueios. A escrever mesmo com medo. A aceitar que nem sempre o texto flui como a gente gostaria — mas que vale a pena insistir. Porque, no fim das contas, a literatura também é sobre resistir.
8. O quanto da sua vivência pessoal ou como professor influenciou a construção da narrativa e dos personagens?
Muito. Minha experiência como professor me ensinou, acima de tudo, a escutar — e eu acredito que a escrita começa justamente pela escuta.
Muitos traços dos personagens vieram de histórias que ouvi, de pessoas que passaram por mim ao longo dos anos. A gente vai coletando pedaços: um gesto aqui, uma maneira de falar ali, uma situação vivida, um silêncio marcante. Junta isso aos lugares por onde se passou, aos afetos que marcaram, e desse caldeirão afetivo e sensorial, nascem os personagens — com cuidado e respeito.
É quase como romancear a realidade. Uma pergunta me guia muito enquanto escrevo: e se isso tivesse acontecido de outro jeito?
Essa interrogação — o que poderia ter sido, mas não foi — é um dos motores da minha escrita. É nela que realidade e ficção começam a se misturar.
9. Você utiliza sessões de terapia como estrutura para a narrativa. Por que escolheu esse caminho?
Comecei a fazer terapia com quarenta anos e fiquei encantado com o processo .Foi através da terapia que comecei a organizar as emoções que antes me atravessavam sem nome. Colocar o Nando dentro de sessões de análise foi uma forma de trazer esse movimento para o texto — o de tentar compreender a si mesmo aos pedaços.
10. Sua escrita é descrita como sensível, introspectiva e simbólica. Como você desenvolveu esse estilo?
Acho que não foi uma escolha racional. Foi o jeito que encontrei de me expressar com honestidade. Sempre gostei do que é dito nas entrelinhas, do que se sugere em vez de afirmar. E fui percebendo que era por esse caminho que minha voz aparecia.
11. Quais autores ou obras influenciam a sua escrita, especialmente neste romance?
Quando estou em estado de escrita — completamente imerso na história — me sinto poroso e acabo absorvendo mais facilmente o ambiente ao meu redor. Então minhas influências ultrapassam a literatura. Elas vêm do cinema, dos quadrinhos e da música, todas se entrelaçando na construção da narrativa.
Na escrita de O Périplo da Expiação, busquei referências que tratassem de temas como trauma, culpa e silêncio. Obras de Jarid Arraes e Julián Fuks foram fundamentais nesse percurso, mostrando como é possível abordar feridas com delicadeza sem perder a potência da linguagem. Também estava lendo Édouard Louis e Annie Ernaux.
O cinema, no entanto, foi a arte que mais me atravessou. O olhar melancólico de Valerio Zurlini, o tempo suspenso de Jacques Rivette e a poética da ausência em Karim Aïnouz me ensinaram a trabalhar com o que não se diz — os silêncios, os gestos contidos, o afeto que escapa das palavras.
Também me refugiei nos quadrinhos. O Solitário, de Christophe Chabouté, foi uma das leituras mais impactantes. A solidão do personagem ressoava profundamente com a jornada de Nando, protagonista do livro.
Desse caleidoscópio de referências — fragmentadas, sentimentais, visuais e sonoras — nasceu meu livro. Acho que a literatura, para mim, é isso: uma forma de reunir todos os afetos que me atravessam e devolver em forma de narrativa.
12. Que tipo de reflexão você espera provocar nos leitores com Périplo da Expiação?
Apesar de todos os personagens carregarem fissuras causadas pela vida, o livro é sobre as formas que desenvolvemos para superar esses traumas. Quero que o leitor se veja em alguma dobra do livro. Que perceba que, mesmo diante das ruínas, ainda é possível seguir. Que o silêncio, quando compartilhado, também pode ser linguagem. E que, às vezes, só o ato de nomear a ausência já nos transforma.
13. O livro termina com uma abertura para a reconstrução. Você acredita que a literatura pode ser uma forma de cura — tanto para quem escreve quanto para quem lê?
Toda a minha vida foi mediada através das artes, e a literatura teve um papel central. Foi com ela que aplaquei a solidão de uma adolescência tímida e, já adulto, compreendi muitos dos acontecimentos da minha vida. A literatura tem esse poder: através da história de um personagem, você compreende um pouco da própria vida.
Então, sim. Talvez não cura no sentido terapêutico clássico, mas como forma de reorganizar o caos. Para mim, escrever foi um modo de atravessar dores. E acredito que ler também pode oferecer essa travessia a outras pessoas — mesmo que sem prometer respostas.
14. Como tem sido a recepção dos leitores até agora, mesmo neste momento de pré-venda?
Outro dia recebi uma mensagem de uma amiga dizendo que tinha encontrado o livro em um aplicativo de leitura — e eu fiquei emocionado. Para alguém que teve a vida mediada pelos livros, estar agora do outro lado da história é algo profundamente comovente. Tenho curtido cada fase do processo.
Os primeiros feedbacks começaram a chegar, e têm sido muito positivos. Me lembro especialmente de dois. O primeiro foi de uma leitora que disse que há muito tempo não lia nada, mas que, depois de começar O Périplo da Expiação, o difícil era parar — que se viu naquela sensação clássica de ter que escolher entre sair com os amigos ou continuar lendo. Achei esse comentário engraçado e bonito, porque eu mesmo já vivi esse dilema muitas vezes.
O segundo veio do meu pai. Ele me mandou uma mensagem dizendo: “que história emocionante, filho.”
Apesar da opinião ser suspeita, mas essa frase simples me tocou profundamente.
Então, sim. A recepção tem sido bonita e surpreendente. Alguns leitores se emocionaram só de ler a sinopse — e isso, honestamente, já é mais do que eu poderia esperar.
15. Já há planos para um próximo livro?
Sim, tenho um original pronto que está na fase de leitura crítica e já comecei a rascunhar um novo romance. Ainda está em estado de planejamento, mas a história deve se passar nos anos 90, em um bairro periférico de uma cidade que poderia ser qualquer metrópole, com personagens que crescem entre fitas VHS, a liberdade de uma infância mais analógica e a busca por protagonismo. Ainda é cedo para dizer mais, mas a inquietação já começou.