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O projeto de lei do "marco legal para a indústria de jogos eletrônicos" e os limites da pauta liberal - Marramaque

O projeto de lei do “marco legal para a indústria de jogos eletrônicos” e os limites da pauta liberal

O projeto de lei do “marco legal para a indústria de jogos eletrônicos” e os limites da pauta liberal

Nichollas Alem

Esta semana está previsto para entrar na pauta do plenário da Câmara o Projeto de Lei n.º 2796/2021, de autoria do Deputado Kim Kataguiri (DEM-SP). Há muitos anos os desenvolvedores de jogos lutam por aprimoramentos legislativos e políticas públicas específicas para este segmento. Porém, o PL em questão não enfrenta os reais desafios enfrentados pelo setor e demonstram mais uma vez os limites da ideologia liberal quando se pensa em instrumentos jurídicos para formação de uma indústria nacional.

De partida, o artigo 1º do PL propõe um conceito de jogo eletrônico confuso, que compreende tanto o jogo em si como o console (o suporte utilizado para jogar), além dos periféricos e acessórios: o software executável em microcomputadores ou consoles dedicados, em que o usuário controle a ação e interaja com a interface; o console, para uso privado ou comercial (fliperama), dedicado a executar o software, independentemente de ter ou não capacidade de acessar a internet ou outras redes; os acessórios necessários para a operação do console.

Essa classificação ignora que o mercado do console e dos jogos são diferentes, com seus respectivos desafios e problemas jurídicos. Essa falta de técnica conceitual já demonstra um outro problema dentro do próprio projeto. Isso porque o artigo 9º diz que “A patente das músicas e outras formas de arte desenvolvidas para os jogos eletrônicos seguirão as regras do direito autoral” e que “O registro da propriedade intelectual dos jogos eletrônicos observará o mesmo regime do registro de software.

Ocorre que músicas e outras formas de conteúdo criativo não são objeto de patentes, que é um instrumento jurídico de proteção a inovações tecnológicas (mais precisamente, das invenções e modelos de utilidade). Além disso, se o conceito de “jogos eletrônicos” também compreende equipamentos, não faz sentido que estes sejam protegidos e registrados na mesma modalidade dos softwares. São objetos totalmente distintos e com requisitos de proteção próprios dentro do universo da propriedade intelectual. Os jogos em si até poderiam ser aproximados aos softwares, mas não os consoles e acessórios.

Esse conceito também irá gerar uma confusão quando se tratar de instrumentos públicos de incentivo e fomento. Por exemplo, a chamada “Lei Rouanet”, que cria mecanismos de financiamento a projetos culturais, chegou a ser experimentada para o desenvolvimento dos jogos em si. Porém, em uma primeira leitura, não parece adequado aos objetivos legais que esta também possa ser utilizada para a fabricação de consoles e acessórios. O Fundo Setorial do Audiovisual também dedicou linhas voltadas ao desenvolvimento de jogos, mas o PL parece afastar a hipótese de que esse produto poderia ser considerado uma obra audiovisual e, portanto, objeto de apoio da Agência Nacional do Cinema.

Aliás, o PL pouco trata da natureza cultural dos jogos e sua relação com os aspectos simbólicos e sociais desse produto. Não há um diálogo entre a proposta e o programa constitucional da cultura, que obriga ao Estado a garantia do pleno exercício dos direitos culturais (artigo 215), a título meramente ilustrativo e em apertada síntese.

O projeto indica que é livre a fabricação, importação, comercialização e desenvolvimento dos jogos eletrônicos (artigo 2º), o uso em ambiente escolar (artigo 3º), o aproveitamento para fins terapêuticos (artigo 4º) e para fins de treinamento (artigo 5º). A rigor, tais formas de utilização sempre foram livres e em nada mudam no status da legislação brasileira.

O artigo 7º prevê que “o Estado apoiará a formação de recursos humanos para a indústria de jogos eletrônicos”. Por um lado, a conversão do projeto em lei implicaria neste dever de atuação propositiva e constante do Poder Público neste sentido. Porém, sem prever quaisquer instrumentos jurídicos específicos, inclusive de natureza orçamentária, o dispositivo corre risco de ter baixa efetividade na prática.

A única previsão que traz alguma novidade real é a do artigo 6º que dispõe o seguinte:

Art. 6º. Os jogos eletrônicos terão o mesmo tratamento dado aos microcomputadores e outros produtos de informática no que tange à sua importação, comercialização e trâmite aduaneiro. Parágrafo único. A tributação dos jogos eletrônicos será a mesma dos produtos de informática.

De acordo com a justificativa do projeto, o ponto central da preocupação do deputado foi a elevada carga tributária que impediria o desenvolvimento desse mercado no Brasil. Contudo, mesmo que a iniciativa seja bem-intencionada, ela peca por resumir a complexidade de formação de uma indústria nacional a aspectos meramente tributários.

Em primeiro lugar, a Lei da Informática (Lei N.º 8.248/91) foi pensada no início dos anos 90 em um contexto de modernização do setor de informática e automação. O incentivo de créditos tributários para investidores de projetos de inovação, por exemplo, na forma que está estruturado hoje, conversa muito pouco com o mercado de jogos eletrônicos (artigo 4º e seguintes). Além disso, pela forma como o projeto foi escrito, não é seguro que os benefícios fiscais aplicáveis para a informática serão efetivamente ampliados ao setor de jogos eletrônicos.

Em segundo lugar, o projeto parece ignorar pautas do próprio segmento. As associações que representam os desenvolvedores estão há anos articulando pautas e pleiteando medidas para o seu fortalecimento. Algumas delas sequer são complexas do ponto de vista normativo, como a criação de um CNAE próprio para desenvolvedores. Podemos fazer um rápido exercício para imaginar outros tantos assuntos deixados de fora: uso prioritário de jogos nacionais nas escolas, regulação de legendagem e outras medidas de acessibilidade, inclusão dos custos de desenvolvimento como gastos de P&D para fins da Lei do Bem (que incentiva a inovação), criação de um fundo de financiamento ao desenvolvimento (que poderia ser alimentado com recursos advindos do próprio setor, aos moldes do que ocorre com o audiovisual), estabelecimento de parâmetros para formação de equipe, criação de bolsas e programas de retenção de talentos (uma vez que muitos acabam indo prestar serviços para fora), criação de observatórios e outros instrumentos públicos de monitoramento de informações e dados, regulação sobre contas e práticas de menores de idade, regulação de jogos envolvendo criptoativos e looting, entre outros assuntos relevantes e atuais.

O PL, infelizmente, não é um marco legal para os jogos eletrônicos, mas uma tentativa de redução de carga tributária que provavelmente terá muito mais impacto para o consumidor final do que na estruturação de cadeias produtivas nacionais. Não que o acesso à cultura dos jogos eletrônicos não seja relevante.

Contudo, é preciso pensar que, em um contexto de hegemonia das produções internacionais no mercado, uma revisão de natureza apenas tributária fará com que o Estado abra mão de sua receita sem um real incentivo ao agente nacional. Em outros termos, essa renda da renúncia tributária/redução de carga será canalizada para royalties e lucros das empresas estrangeiras que já dominam o mercado e não possuem qualquer obrigação de investimento no Brasil.

É preciso um cuidado com uma certa “contaminação ideológica” de se imaginar que “menos Estado” é a solução para qualquer problema e será suficiente para o fortalecimento do mercado de jogos eletrônicos e dos desenvolvedores nacionais no Brasil. A experiência real de outros países que conseguiram adentrar tardiamente nesse setor nos mostra que o seu desenvolvimento só é possível com regulação e políticas públicas assertivas, ou seja, com a iniciativa e participação do Estado no processo.

Nichollas Alem é Fundador e Presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes – IDEA; advogado atuante nas áreas de Direito do Entretenimento e Direito da Inovação Tecnológica; Mestre em Direito Econômico pela USP; consultor da UNESCO em equipamentos culturais e membro da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.

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