Entrevista: K. Aomine, escritora
1. Meu Desfruto nasceu como um conto ou fanfic e acabou se transformando em um romance épico de quase 500 páginas. Em que momento você percebeu que a história tinha força para se tornar um livro completo?
R: Logo após o capítulo “Pesadelos e Transformações”. Eu percebi o potencial da história quando observei o quanto era interessante expandir esse universo e os deuses que o “governavam”. Me peguei muito interessada em criar mais, em desafiar a minha imaginação e inspiração escrevendo sobre isso. Neste capítulo, (alerta de spoiler) diante da morte do pai e da decisão rompante do Leokalyan em fazer do Tomásio seu rei, a história cresceu e isso inundou minha mente de ideias.
2. O relacionamento entre Leokalyan e Tomásio rompe barreiras de classe, poder e gênero. Como foi construir esse romance dentro de um contexto de fantasia monárquica e ainda assim manter a conexão emocional real e humana?
R: A relação entre Leokalyan e Tomásio sempre foi, pra mim, um grito de liberdade dentro de um mundo que vive de aparências, o mundo que criei para a história e o mundo real. Mesmo inseridos em uma estrutura monárquica e fantasiosa, onde tudo é hierarquia, controle e devoção divina, eu queria que o amor deles fosse uma forma de desobediência que desafiasse não só o poder, mas também o medo e a vontade absoluta dos deuses.
Escrever esse romance foi como observar e ter a oportunidade de contar sobre o amor entre duas almas tentando se reconhecer e se reencontrar apesar das camadas que uma deusa impôs. A fantasia me permitiu criar esse cenário grandioso, mas o que realmente importava era a intimidade entre eles, o toque, o olhar, a hesitação antes da entrega, o desejo de pertencer. No fim, eu não queria um amor idealizado; queria um amor impossível e, ainda assim, forte e implacável. Um amor que doesse, que curasse, que fosse humano mesmo entre coroas, guerras e deuses.
3. A obra apresenta um universo com forte presença de mitologia e deuses. Que referências — literárias, culturais ou religiosas — influenciaram a criação desse panteão e da ambientação de Regnum?
R: O Tomásio é muito inspirado no cristianismo. Desde o primeiro momento em que o imaginei e escrevi, quis trazer nele essa sensação de “uma entidade que se sacrifica pela humanidade” até o momento em que ele se apaixona, em que escolhe cair da graça e amar mesmo contra a vontade de seus criadores. Também me inspirei um pouco na mitologia romana e na forma como ela explica a natureza e os sentimentos. Na literatura, As Crônicas de Gelo e Fogo, principalmente na geografia e ambientação.
4. Você mencionou que os protagonistas não são “mocinhos” tradicionais. Qual foi o desafio de trabalhar com personagens moralmente complexos sem perder o vínculo afetivo com o leitor?
R: Acho que o maior desafio e o mais doloroso, foi permitir que eles fossem humanos antes de serem heróis. Principalmente o Leo, ele é um personagem do tipo “fins justificam os meios” e foi a primeira vez que escrevi alguém assim. Ele é o vilão de um dos vilões da história, mas ainda assim, o leitor continua ali, tentando entendê-lo, assim como a gente tenta entender quem ama e reconhece na vida real. Eu nunca quis que eles fossem “bons” no sentido clássico de um romance, mas que fossem verdadeiros e capazes de tudo por “um bem maior”, fosse para eles mesmos ou um todo. Trabalhar com personagens moralmente complexos, pra mim, é caminhar num fio delicado entre empatia e a repulsa, é pedir ao leitor que veja além da superfície, que perceba as rachaduras, os medos e o porquê das escolhas.
No fundo, acredito que é isso que mantém o vínculo afetivo na leitura: não a perfeição, mas o reconhecimento. A gente se apega não a quem é puro, mas a quem sente como a gente.
5. A presença de um casal gay negro em uma narrativa épica é algo ainda raro no mercado editorial. Como você enxerga o impacto dessa representatividade dentro da fantasia brasileira?
R: Eu sou brasileira, nordestina e venho de uma família miscigenada como mais de 80% do povo brasileiro. Pra mim, representar um casal gay negro em uma narrativa épica é um ato de reexistência. É dizer: nós também merecemos o impossível. Dentro da fantasia, onde tudo pode acontecer: dragões, reinos, magia, por que não o amor entre dois homens? Por que não ter um homem preto como a representação grandiosa de um deus? Por que não tê-lo no centro da história, amando, errando, vivendo, revivendo, governando e tudo aquilo que sempre foi negado?
Eu acredito que a representatividade, dentro da fantasia brasileira, é uma forma de cura coletiva. Ela reescreve o que foi silenciado, abre espaço pra novos imaginários e lembra que a fantasia também pode e deve ser um espelho. Quando o leitor preto, LGBTQIA+ ou marginalizado se vê ali, no trono ou no campo de batalha, algo muda. Ele percebe que o impossível também pode ter o seu rosto.
6. A trama mistura temas como guerra, destino e amor proibido. Em sua visão, o amor em Meu Desfruto é um refúgio, uma arma ou uma maldição?
R: Arma e maldição! Pra mim, o amor em Meu Desfruto é o que resta quando tudo o mais desaba, quando os ganhos não somam mais que as perdas. Não vem como a cura de todos os males e escrever essa história foi como admitir que o amor nem sempre salva, às vezes, ele apenas nos mostra quem somos quando não há mais nada pra esconder.
7. O livro tem uma estética adulta e intensa, tanto no erotismo quanto na carga emocional. Como você equilibra paixão e narrativa sem perder a sutileza literária?
R: Acho que o meu segredo está em entender que o erotismo também é linguagem. Em Meu Desfruto, a paixão não é um adorno é uma extensão da narrativa e o corpo, muitas vezes, fala com mais facilidade aquelas palavras difíceis. Pra mim, o equilíbrio nasce da minha intenção com a cena, não escrever o ato em si, mas o que ele significa para o momento. Desejo, culpa, poder, entrega, amor, tudo isso é literatura quando é escrito com verdade e coerência.
8. A Editora Euphoria tem um papel importante na publicação de romances LGBTQIA+. Como foi sua experiência de trabalhar com uma editora que abraça abertamente essas narrativas?
R: Essa é a nossa sexta aventura literária e cada uma delas me lembra por que confio tanto na Euphoria. Estar com uma editora que acredita nas mesmas histórias que eu acredito, que acolhe narrativas LGBTQIA+ com tanto respeito e entrega, é um privilégio e um orgulho imenso. Acompanho esse crescimento desde o início e me sinto verdadeiramente em casa. A Euphoria não apenas publica livros, ela cuida de vozes, de sonhos e de quem escreve com o coração!
9. Que tipo de leitor você imagina quando escreve? Há um público específico com quem você dialoga ou você prefere pensar suas histórias de forma universal?
R: Eu escrevo pensando em leitores adultos, porque gosto de explorar a complexidade dos sentimentos, o que acontece depois do “felizes para sempre”, o que fica quando o amor já não é simples. Mas, acima de tudo, escrevo para quem sente. Para quem já amou, já perdeu, já teve medo de desejar. Acredito que, mesmo quando minhas histórias têm temas maduros, elas ainda falam sobre o que é universal: o desejo de ser visto, de ser compreendido, de encontrar um lugar no mundo. Então, talvez eu escreva para adultos, mas com a esperança de tocar qualquer coração que esteja disposto a sentir junto comigo.
10. Como escritora e formanda em Letras, de que forma a formação acadêmica em Literatura influencia o seu processo criativo?
R: Estudar Letras mudou completamente a forma como eu enxergo a escrita. Desde que comecei a me aprofundar na teoria literária, passei a ser mais exigente, não só com o enredo e a construção de personagens, mas com a estrutura da narrativa, a coerência interna, a escolha das palavras, a musicalidade da frase. A formação me ensina que escrever é também envolve consciência, entender por que algo funciona, por que um silêncio pesa mais do que uma fala. Me deu ferramentas para lapidar o que antes era apenas instinto, sem nunca apagar a emoção que me fez começar. Hoje, tento equilibrar as duas coisas.
11. Você costuma compartilhar dicas de escrita criativa com outros autores. Que conselho deixaria para quem sonha em publicar sua própria fantasia com representatividade queer?
R: Pesquisar, antes de tudo, é ter respeito com a história que você quer contar e com quem vai se reconhecer nela. Criar uma fantasia com representatividade queer exige mais do que imaginação; exige cuidado. Mergulhar em referências, estudar culturas, compreender vivências. A pesquisa dá corpo ao universo, mas também verdade às emoções e incentiva a imaginação do leitor. Quanto mais você entende o mundo que está criando, mais livre é pra subvertê-lo. Então, meu conselho é esse: sonhe alto, mas construa com fundamento. A fantasia é o espaço da invenção e toda invenção nasce de quem se permite aprender.
12. E para encerrar: Meu Desfruto é uma história autônoma ou podemos esperar uma continuação no universo de Regnum?
R: Eu penso muito sobre isso, mas ainda não tenho uma resposta definitiva. O universo de Regnum é vasto, cheio de histórias possíveis, e eu gosto de acreditar que ele ainda tem muito a oferecer, talvez em outros tempos, outras perspectivas, outros amores.
Por enquanto, há apenas um vislumbre dele em Strani Amori, meu próximo lançamento pela Euphoria. É como uma fresta entre mundos, uma forma sutil de mostrar que Regnum continua vivo, mesmo quando o livro termina
