Entrevista: Jéssica Linhares, cantora e compositora
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1. O título do álbum, Metrô Pra Outro Mundo, carrega uma metáfora forte. Como surgiu essa ideia e o que ela representa para você?
A ideia surgiu de uma relação intensa com a cidade e os sentimentos contraditórios que ela provoca. Se a gente parar pra refletir, o problema da nossa vida em São Paulo não é o meio de transporte em si, mas para quê a gente se desloca e em quais condições. Eu me sentia angustiada com tudo que envolvia os deslocamentos em São Paulo. Entrar num busão, num metrô lotado, aquele silêncio matutino aglomerado, compartilhando um espaço pequeno com tanta gente desconhecida se apertando pra que mais gente possa entrar, sem conhecer nada da vida dessas pessoas, sabendo apenas que formamos parte dessa grande massa trabalhadora em trânsito, colocando muitas horas da vida em uma rotina de trabalho muitas vezes degradante, na condição de seres quase invisíveis, atravessando a cidade… Daí é que surge o título do álbum, desse desejo por encontrar brechas e outros mundos.
2. Suas composições transitam entre a dureza da vida urbana e a esperança. Como você equilibra esses elementos na sua música?
Acho que na minha trajetória de vida até aqui eu precisei (e preciso ainda) visualizar a esperança, almejar a utopia, buscar transformações… justamente por reconhecer a dureza do lugar de onde eu vim, por perceber as injustiças pelas quais os meus passavam e passam, e por entender que a arte é um caminho para eu escapar e me expressar. É isso ou sucumbir. Então esses são temas do trabalho porque são temas da vida também. Sinto que isso se vê presente nas músicas não somente nas letras, mas em toda a sonoridade, que é bem urbana, popular, solar, ainda que com o pesado das dificuldades.
3. Você cresceu na periferia paulistana e estudou Letras na USP. Como essa trajetória influenciou sua arte e sua forma de compor?
Na real eu fui descobrir o que era USP bem depois de começar a compor. Eu conheci o poder transformador da poesia, da literatura e da música muito antes de poder ingressar na Letras USP – uma universidade feita para o povo paulistano, que eu nem sabia que existia. Foi na igreja, no cursinho popular e nos saraus que eu pude aperfeiçoar meu interesse musical, e é desses espaços que vêm minhas influências. A trajetória na universidade foi conflituosa. Eu precisei deixar de lado meus sonhos com a música, para trabalhar e estudar. Parei de compor, de cantar, de escrever, para focar só na formação. Às vezes eu sentia minha arte e minha história diminuída. Mas acho que isso vem mudando. E se hoje estou podendo realizar esse trabalho artístico, é pelo resultado de ter estado na universidade, ter conseguido um diploma, acessado outros mundos… Mas ainda assim sinto que houve um desencaixe. É por isso que sempre gosto de dizer que a universidade precisa começar a enxergar as pessoas da periferia menos como um alvo de pesquisa, e mais como potenciais pesquisadores e produtores de conhecimento e cultura. Para que a gente possa se reconhecer mais, se integrar mais, vislumbrar mais para nossa vida individual e para o nosso povo.
4. Você mencionou que compunha no trajeto entre a escola e o trabalho. Alguma música do álbum nasceu diretamente dessas anotações?
No lado A, Samba do sonhador foi rascunhada no metrô, mas foi a Metrô do outro mundo, em breve no lado B, que nasceu no busão. Eu tenho até hoje o caderno com a letra garranchada da escrita no chacoalhar do ônibus.
5. O álbum mistura MPB, hip hop, samba-rock e pop florestal. Como foi o processo de costurar essas influências de forma orgânica?
Tudo isso é o resultado de muita coisa que escutava. Criolo, Tulipa Ruiz, Emicida, a galera mais nova… E também os mestres Djavan, Jorge Ben e Di Melo, que já faziam isso de unir diversas musicalidades. Eu acho que que me vali de tudo o que aprendi com eles.
6. O Lado A do álbum já foi lançado. O que podemos esperar do Lado B?
Acho que dá para esperar uma linguagem mais amadurecida, mas que ainda está bem conectada às reflexões da ainda menina que compôs tudo o que ouvimos no lado A. Contem com o protagonismo da cidade, com parcerias e com shows, é claro! Rs
7. Como foi a parceria com Dan Silva nas composições e com João Antunes na produção?
Eu adoro compor em conjunto. É um deleite juntar cabeças que sabem se comunicar e se expressar pra concretizar algo. Com o Dan, foram várias… deve ter umas cinco músicas perdidas de milianos que a gente nunca vai encontrar. Ele é um artista de uma musicalidade extremamente brasileira e tem um amplo repertório.
Já o João, o que dizer… Minas Gerais, né? haha Brincadeiras a parte, sinto que aprendi muito com esse encontro. Aprendi a conhecer a rotina de trabalho no estúdio. A desenvolver a paciência e a colaborar na criação de coração aberto, sem tesourar muito. E sinto que pude fazer isso porque ele acreditou, ouviu, leu e direcionou tudo com a atenção e o cuidado que a coisa exige. Me sinto muito feliz com o resultado dessa minha estreia no mundo da música.
8. O disco reflete dez anos de reflexões suas. Como você percebe sua evolução artística nesse período?
Nossa! Acho que em primeiro lugar, poder me dizer artística. Reconhecer que o que foi criado dez anos atrás era de fato uma trajetória, para então, entender como uma trajetória em evolução. Ainda assim, sinto que só estou começando. Que tenho muito a aprender. Mas que adquiri a maturidade para ver o tempo controlar o que eu não conseguia. E que o processo pode ser muito mais divertido do que doído. Isso é massa!
9. Quais artistas ou referências musicais ajudaram a moldar o som de Metrô Pra Outro Mundo?
No campo da temática, sempre me liguei muito em Tom Zé, Di Melo, Adoniran Barbosa, Emicida, Criolo, Chico Science e Racionais MC’s, nomes que dissecaram suas cidades e suas realidades com um olhar crítico e curioso. Depois, vi minha musicalidade sendo moldada por Djavan, Jorge Ben, Elis Regina, minhas obsessões adolescentes haha mas também por artistas jovens como eu, que me inspiravam pela maneira com que cantavam suas vivências, como Kamau, Rashid, Emicida, Criolo, Josyara, Duo Avua, Liniker, Nayra Lays e por aí vai! A lista é grande. Rs
10. A música tem um papel forte na luta por representação e resistência. Como você enxerga seu trabalho nesse contexto?
Acho que já falei um pouco sobre isso. É uma benção para mim ter a arte como uma forma de compreender meu mundo, o mundo e os mundos a fora. Nos momentos mais difíceis é reconfortante saber que essa história que construí com a música desde pequena não pode ser apagada. Ainda que eu não tenha um emprego, que eu não tenha uma estrutura familiar e financeira da hora, que eu não saiba lidar com tantas situações de dor que vemos o nosso povo ser submetido todos os dias nessa sociedade desigual, racista e machista, eu sei que eu tenho minha música, que ela é minha voz, e que com ela eu posso elaborar alegrias, tristezas, ódios e vislumbrar transformações, sabendo que com ela conecto minha história com tantas outras.
11. Você acredita que a arte pode ser um meio de fuga, mas também de transformação social?
Sim. A arte dá pra gente uma coisa que o sistema nos tira: o exercício do imaginar, do criar, do vislumbrar, do encantar, do sonhar. Num mundo em que tudo já vem pronto e o que fazemos é “consumir” conteúdos, comprar e adquirir, criar algo é uma fuga e uma amostra de que podemos, enquanto sociedade, questionar o que está dado e refazer muita coisa, construir um mundo diferente.
13. Quais são os próximos passos para divulgar o álbum? Teremos clipes, shows ou formatos especiais?
Tem bastante coisa vindo. Quem quiser me acompanhar pelas redes sociais,no instagram @linharesjazz, esperem pelo lançamento do lado B que sem dúvidas promete show, clipe e o que mais temos direito. Rs.
14. Se pudesse convidar o público para essa viagem de metrô musical, qual seria o recado final?
Era entre correrias, responsabilidades e trampos lembrem-se dos sonhos, lembrem-se de sonhar, mesmo com a constatação de que não será fácil atravessar tantos obstáculos (sociais, geográficos, materiais etc) para viver como se sonhava viver, pra conquistar estabilidade na vida, para pegar um metrô que leve a outro mundo. Mas a viagem vale a pena. Só vem!