Entrevista: Projeto Toca do Canário

1. “Suíte Caipira” é um título que já carrega identidade. Como surgiu esse nome e como ele traduz a proposta do álbum?
Precisamente! O álbum é uma reflexão musical sobre essa identidade. Eu como caipira me pego mergulhando nessa expressão em tudo que faço, invariavelmente. E, como guitarrista, me pergunto como manejar isso. A guitarra elétrica tem um cordão umbilical ligado à música norte-americana e o Brasil tem uma sonoridade simbólica mais voltada para o violão e à viola. Mas são todos instrumentos, e o que se expressa através deles sim, carrega identidade. A proposta no álbum é celebrar esse caldeirão de sonoridades da nossa música.
2. O disco tem uma variedade de influências – da música caipira ao ijexá, do choro ao maracatu. Como foi o processo de costura desses elementos tão distintos em uma obra coesa?
Penso que expressões culturais, das quais a música faz parte, vão além do ritmo e da técnica. Acho que existem elementos simbólicos que carregam significado na música, como as texturas, os gestos, o sotaque. É nesse lugar que a música se conecta com nossas memórias e é nesse lugar que vamos. Não tocamos maracatú como um grupo de maracatú tocaria. Tocamos um imaginário de maracatú, cheio de simbologias. A partir disso que as obras se encontram e se amarram no processo criativo e na identidade pessoal do compositor.
3. Vocês gravaram ao vivo no Estúdio Gargolândia. Qual foi o impacto dessa escolha na sonoridade final do álbum? Que tipo de atmosfera buscavam capturar?
Nossa ideia foi registrar o momento. Essa música que a gente propõe muda, se desenvolve, amadurece a cada gig.. Captar o momento, a performance, assim como uma fotografia, exige excelência. E na Gargolândia sobra excelência. É um ambiente onde a gente submerge no processo de gravação e o resultado é esse retrato honesto da caminhada – com tropeços, com acertos, com temperamento variável, sem atalhos
4. O que significa para você, Lula, trazer a música caipira para um diálogo com a improvisação jazzística? Há uma intenção de resgate, releitura ou expansão desse universo?
É curiosa essa pergunta.. no fim, é um resultado mais íntimo das minhas vivências na vida. Caipira sempre fui, mas a gente se envereda pela capital, pelo trabalho com uma música mais “vanguardista”, passa por ritmos do mundo, estuda música “erudita” e o jazz que é infelizmente um baú mais elitista né? E acho que quando saí desse transe, me vi caipira de novo. E me conectei ao virtuosismo da natureza, que é o virtuosismo do simples, do assobiável, do silêncio e dos sons que trilham nossas melhores memórias. É ali que entrou esse diálogo porque o jazz é maravilhoso também, e dali a gente busca essa exploração dos elementos da música que vão muito além das notas.
5. Como se dá a dinâmica criativa entre os três músicos do Toca do Canário? O quanto da improvisação em estúdio influenciou o resultado final?
O Igor Pimenta e o Carlito Mazzoni são, além de músicos excepcionais, grandes amigos. A gente tocou muito junto nessa vida, em projetos diversos.. Quando compus essas peças já sabia que precisava da sonoridade que eles trariam. Eles têm essa sensibilidade que essa música precisa e o trabalho fica fluído. São poucas partes escritas. Os arranjos são orientados, mas só se resolvem quando passam pela percepção que eles têm das peças também. Sem eles o trabalho seria outro, sem dúvida.
6. Faixas como “Cuchilô perdeu o trem” e “Memória de coisa boa” têm nomes que evocam imagens e sentimentos muito brasileiros. Como esses títulos conversam com as composições?
Muito interessante essa pergunta. Na gênese do álbum resolvi criar um fio narrativo dentro do universo da simbologia.. Foi uma parte do processo criativo onde me inspirei em grandes discos que adoro até hoje como o Imaginary Day (Pat Metheny) e o Guitarra Brasileira (Heraldo do Monte). Então sim, a obra se completa quando a gente vê a capa, lê os títulos, ouve e reconhece essas propostas. Como antigamente, quando a gente comprava um vinil, botava pra tocar e ia mergulhando no encarte, a obra fica cada vez mais complexa quando as propostas, qualquer que sejam, se relacionam!
7. O disco equilibra composição e liberdade interpretativa. Como vocês definem o papel da espontaneidade em um álbum tão cuidadosamente arquitetado?
A arquitetura é grande mesmo, mas ela está na fundação. A espontaneidade está no manejo desse material musical, nos períodos de improvisação, na dinâmica, na intenção de cada toque. Está espalhada nas sutilezas por todo o álbum. Por isso o registro ao vivo faz tanto sentido porque a música muda a cada performance, mesmo com o alicerce arquitetado.
8. Como vocês enxergam o papel da música instrumental brasileira hoje? Há espaço e interesse do público por esse tipo de trabalho?
Curiosa a pergunta. O papel da música instrumental brasileira pode parecer variável, ter seus momentos de protagonismo, mas quando a engrenagem gira ela volta pro lugar que ela realmente pertence.. que é um lugar de resistência, de guardar nossa história, de passar mensagens de forma subversiva. De provocar, de alegrar, de levar a mente para grandes viagens.. de manipular o tempo e o espaço! Claro, pra uma experiência tão sensorial precisa de dedicação dos sentidos né? Então, claro, dificilmente vai ocupar a caravela dos hits e da cultura de consumo, mas estaremos sempre no bote escrevendo sobre nosso tempo, deixando nossa versão da história pra posteridade.
9. Cada um de vocês tem uma trajetória sólida com colaborações diversas. Como essas experiências anteriores influenciam a proposta do Toca do Canário?
É o encontro de vivências muito amplas, mas eu destacaria essa cultura rural se encontrando com a urbana. Acho que foi muito acertado isso, porque provoca o tradicional e a vanguarda ao mesmo tempo, sem deixar de ser uma celebração dessas expressões.
10. Por fim, quais os próximos passos do projeto? Há previsão de shows de lançamento, circulação ou outros desdobramentos?
Queremos muito circular o trabalho em espaços que permitam essa imersão no som e, claro, sejam acessíveis a todos. Quero ver essa música amadurecer a níveis que não foram planejados, e naturalmente desdobrar para o volume 2 com, se a vida permitir, um olhar revigorado de exploração da música. Deixar a poética do compositor seguir sua natureza. Seria lindo de ver.