Entrevista: Rafael Segatto Barboza da Silva

Entrevista: Rafael Segatto Barboza da Silva

1. O lançamento de Linha-Mar marca um momento importante em sua trajetória. O que essa obra representa para você em termos pessoais e artísticos? 

Linha-Mar é o meu primeiro livro. É um livro de artista que serve como registro e elaboração da minha existência. Entendo nele o compromisso que tenho com o mar e com as vidas que fazem das regiões costeiras, portanto, influenciadas pelas marés, um maretório. Apresento também a minha trajetória de vida, compartilhando as relações que herdei de meus antepassados com a pesca e a navegação – e como essas memórias se desdobram no meu trabalho. Além disso, o livro se debruça sobre o filme Linha-Mar (homônimo ao livro), que utiliza do jogo entre realidade e ficção para complexificar o que faço artisticamente. Então, através dessa obra consigo olhar e elaborar os caminhos e escolhas que fiz para chegar até aqui, perceber a minha trajetória como um todo. O que ficou e o que seguirá. Ele é um registro do agora e, ao mesmo tempo, um apontador de caminhos, seja para o passado ou para o futuro. 

2. O livro aborda temas como a memória das águas, a travessia atlântica e a ancestralidade. Como você conecta essas questões com a sua pesquisa sobre corpos e territórios? 

Gosto de pensar que estou e não estou encaixado na negritude. E falo disso por entender que, para mim, falar sobre corpo e território é falar sobre o que é ser negro no Brasil. Talvez, essa não seja uma elaboração simples. Pois não há negritude, elas são múltiplas. E a própria ideia de negritude é tanto a possibilidade de criar uma unidade (complexa e insuficiente) como também de reforçar as violências que pousam sobre nossos corpos, que também são múltiplos, devido a intersecção com gênero, classe, território e tonalidade. Sinceramente, em minha prática estou elaborando sobre o que é existir dentro da água. E quais são os aspectos que informam quem eu sou e como nos constituímos socialmente. Acredito que são elaborações sobre um estado de insuficiência, de limitação, de interação, de desencaixe e de conexão também. Estou o tempo todo olhando para o mundo com água salgada correndo em mim. Elas me informam quem eu sou, o que desejo e, principalmente, pra onde gostaria de ir. São interações temporais. 

3. Você cita no livro que as águas carregam histórias e resistências. Pode compartilhar um exemplo de como isso se manifesta em sua obra ou na sua vivência com o mar? 

O meu bisavô Gero era catraieiro. Fazia o transporte de barco a remo entre Vila Velha e Vitória. Para mim, é interessante pensar que hoje eu transito pelas mesmas águas que ele transitiva, e que meu pai foi criado. Pois eu fui criado em outras águas, apesar de ter nascido em Vitória. São encontros de temporalidades, de um histórico familiar. Mas a gente sabe que o transporte de catraia foi impossibilitado pela expansão do porto. Uma prática que resistiu durante muito tempo e que sucumbiu a esse projeto. E lembro do meu pai contar que o meu bisavô morreu com o coração grande, de tanto remar, pois o coração é um músculo e cresce quando estimulado. Quando eu falo que as águas carregam histórias e resistências, eu tô falando do meu bisavô, dessa história familiar, mas também da notícia da independência do Haiti, que foi disseminada por marinheiros que navegam o Atlântico, também estou falando das próprias memórias que constituo no agora, com seres visíveis e não-visíveis que me encontro todas as vezes que estou dentro da água. E eles também me informam sobre histórias e caminhos que eu não necessariamente vivi. O mar é um grande canal de comunicação, de encontros de tempos, de produção de vida e de morte. Ele é, portanto, uma grande encruzilhada. E o meu trabalho é produzir memórias dessas encruzilhadas. Criar encruzilhadas para escutar o mar e os seres que habitam as águas. 

4. O livro foi realizado com a colaboração de curadores renomados, como Gleyce Heitor e Ariana Nuala. Como essas parcerias contribuíram para o desenvolvimento da obra?

Tanto Ariana quanto Gleyce vem do Recife, que é uma cidade-estuário, assim como Vitória, com manguezais e encontro de rio com mar. Além disso, são pessoas que acompanham o meu trabalho proximamente há alguns anos. Outra colaboração é da Renata Segatto Barboza da Silva, que foi diretora dos filmes e também acompanha meu trabalho com proximidade. Então, quando a gente vai para a elaboração do livro, esses dois fatores foram estruturantes para chegarmos no resultado que chegamos. São três pesquisadoras de áreas distintas, mas que convergem, com experiências também distintas, mas que se encontram no livro. A Renata vem da arquitetura, a Gleyce da educação nos museus e a Ariana da curadoria. Conseguimos nesses encontros elaborar sobre corpo, território, memória, sonhos, águas, rio, mar, enfim. Mesmo que o meu trabalho esteja em relação com muitas formas de vidas, humanas e não-humanas, o ato de criação por vezes é solitário, portanto, construir esses momentos com elas foi fundamental para refletir e elaborar sobre os meus processos. Ter outras cabeças observando o que faço, contribuindo para alcançarmos o resultado que alcançamos com Linha-Mar. 

5. O projeto NADO propõe um diálogo entre arte, ecologia e justiça social. Como você enxerga a arte como ferramenta para refletir sobre questões ambientais e sociais contemporâneas? 

A arte pode ser uma ferramenta interessante de ação e reflexão sobre temas sociais. Para tanto, acredito que ela por si só, sem um pensamento educacional e formativo, não consegue dar conta de ser essa ferramenta, às vezes por ser pouco acessível. E quando digo sobre acessibilidade, não estou falando sobre traduzir um trabalho artístico ou narrar o que foi pensando para constituir esse ou aquele trabalho. Não é sobre cognição. A arte é o que é. Porém, acredito que a arte pode ser instrumento para práticas pedagógicas. E foi isso que fizemos quando criamos a plataforma NADO, que é um espaço multidisciplinar de arte contemporânea. É um lugar de encontro de diversos corpos d’água, que vivem nas águas. A arte é um modo possível, mas não o único, de adentrar aos espaços e de levantar questões que são pertinentes para o agora. Uma obra vai falar direta ou indiretamente sobre o tempo e o momento em que ela está inserida, mesmo que ela atravesse vários tempos. Essa é a pulsão de mundo que contém o fazer artístico. São as práticas em educação, os encontros e desdobramentos através dessas práticas que podem contribuir para criar saídas que nem sempre estão visíveis. 

6. O lançamento aconteceu no seu ateliê, na zona portuária de Vitória. Que importância simbólica esse local tem para o projeto e para a obra em si? 

Vitória é uma cidade-arquipélago, repleta de aterros, lugares que foram águas, manguezais, regiões alagadas, enfim, e hoje não são mais. O meu ateliê se situa em um desses lugares. Fruto também do pensamento desenvolvimentista dos anos 1950, em que homem e natureza estão desconectados. Portanto, o que existe no meu ateliê é um espaço de produção de vida, em que faço questão de desvelar a energia vital que existe ali e foi escamoteada pelo tempo. Essa é uma energia marinha. E o que me proporciona essa percepção, para além dos dados históricos da constituição da cidade, é ser um praticante de terreiro. Local onde há um modo de pensar e agir no sentido de reconhecer a integração e agir para que essas relações sejam fortalecidas. De modo mais objetivo, o M’PEMBEIRO, terceiro ato do filme Linha-Mar, foi realizado nesse espaço e fala sobre essas dimensões, espirituais, simbólicas, coletivas da construção do meu trabalho artístico. Fala também sobre uma ideia de retomada e justiça para as águas. 

7. O livro também reflete sobre o impacto da modernidade colonial nos territórios costeiros. Quais são suas reflexões sobre esse tema, especialmente no contexto das comunidades tradicionais? 

O mundo como conhecemos foi fundado pela colonialidade, que é fruto do capitalismo e de modos de dominação de povos europeus / ocidentais diante de outros povos, outras condutas e

cosmologias. Lógico que não podemos olhar para isso sem perceber as negociações que foram feitas, mesmo diante de todas as violências. Precisamos considerar que há outros modos de exercer vida que permanecem e se modificam, se mantêm vivos, de muitas maneiras, a partir de muitas estratégias, apesar de toda a desgraça de políticas de aniquilamento implementadas. Nós, de territórios costeiros, somos agentes produtores de vida e zeladores de um ecossistema muito rico e complexo, que naturalmente está em risco, e provavelmente será extinto pelo modelo implementado pela modernidade colonial. Estamos falando de uma política de extinção em massa, de vidas humanas, não-humanas, animadas e inanimadas. 

8. A publicação é uma combinação de textos, imagens e registros de performances. Como você acredita que essa mistura de formatos amplia a experiência do leitor? 

Texto e imagem informam as pessoas de formas muito distintas. Acho que o nosso papel com o livro é trazer conteúdos para que os leitores possam criar seus próprios caminhos. O que entregamos é o nosso trabalho, são elaborações daquilo que fazemos e acreditamos, principalmente no contexto das 

águas e do fazer artístico. Mas texto e imagens são apenas ferramentas, que podem ter muitos destinos, ou não. 

9. Linha-Mar é uma obra que dialoga com questões globais. Em sua opinião, como o conceito de “território das águas” pode contribuir para uma mudança de perspectiva sobre a preservação ambiental? 

Eu, honestamente, acredito muito pouco sobre uma perspectiva de mudança diante do mundo em que vivemos. Tentar frear um mundo que acelera para seu destino não me parece suficiente. O meu papel como artista é provocar, elaborar obras através da minha poética de relação e interação com diversos seres marinhos e marítimos, com trabalhadores e trabalhadoras do mar, criar registros e memórias do que não sabemos se existirá mais adiante. O mar é um fluido vital muito importante para a manutenção das vidas. Há muitas vidas dentro do mar. As marés são muito importantes não somente para os povos costeiros. E digo isso em suas dimensões físicas, espirituais e simbólicas. Mas o mar continuará existindo? Em quais perspectivas? Haverá peixes? Sobre quais condições navegaremos pelos mares? Pensar sobre o maretório é acentuar contextos de vidas que são estruturantes para a organização social e cultural do mundo, mesmo que haja muitos mundos e muitas culturas, realidades locais bem específicas, é através do mar que estamos conectados. 

10. Você tem falado sobre a urgência de políticas culturais e ambientais. O que você espera que Linha-Mar provoque em termos de reflexão e ação no público? 

Linha-Mar é um exercício de atenção e de envolvimento. Penso que esse é o meu papel. Sou articulador e utilizo o meu trabalho para construir possibilidades, ficções, desejos. 

11. O livro foi viabilizado pela Lei de Incentivo à Cultura do Espírito Santo. Quais desafios e oportunidades você vê nessa legislação para a produção cultural no estado? 

O desafio de uma lei de incentivo é de democratização e de expansão, toda lei já nasce defasada em relação a isso. Cabe ao Estado criar condições menos desiguais para que o acesso às leis sejam ampliados. A Lei de Incentivo à Cultura do Espírito Santo consegue trazer um aporte econômico que outros modelos, como o Funcultura, não dão conta. Ela é um caminho, uma possibilidade, para dar condições mais dignas aos fazedores(as) de cultura. 

12. Para o evento de lançamento, serão exibidos os filmes Linha-Mar, Abandonar a Travessia e M’PEMBEIRO. Como esses filmes se conectam com os temas abordados no livro?

A criação do livro Linha-Mar nasce do desejo de pensar em outros formatos para o filme homônimo, que é constituído em três atos: Linha-Mar, Abandonar a Travessia e M’PEMBEIRO. Portanto, é através dos frames do filme, dos textos contidos em cada ato, que o livro nasce como um dispositivo. Um livro é o registro de uma memória, um documento muito importante utilizado ao longo da história. E sua construção nasce através do desejo de documentar a complexidade poética e estética que há no meu fazer artístico e transformar isso num livro de artista. É um jogo entre ficção e realidade. 

Abaixo compartilho as sinopses de cada ato: 

LINHA-MAR – o grande cemitério 

Na procissão marítima de São Pedro, o artista evoca uma promessa para o mar; as velas guiam os caminhos entre o mundo dos vivos e o dos mortos. São Pedro, patrono dos pescadores e guardião das chaves, surge como uma figura mediadora de uma fronteira ativa, em que os corpos, as memórias e a conexão contínua entre passado, presente e futuro se manifestam. 

ATO 2 

ABANDONAR A TRAVESSIA – que pressupõe um destino e determina um fim 

Ao assumir o ato de nadar como uma prática ritualística, o artista revisita o mar como um fluido vital, capaz de gerar e regenerar vidas diante da modernidade colonial. Em gestos circulares, ele se desloca até uma ilha, onde constrói uma instalação a céu aberto, partilhada com habitantes visíveis e invisíveis, preservando a memória do território por meio do seu trabalho. 

ATO 3 

M’PEMBEIRO – o navio com vida 

No encontro entre uma cidade insular e o mar, o artista propõe uma visão de fertilidade onde a memória marítima ressurgente floresce. Apesar das políticas de esquecimento e rejeição, ele busca possibilidades de justiça para um território constantemente aterrado, transformando seu ateliê, situado em uma zona portuária, em um espaço de retomada e encantamento. 

13. O que você espera de um evento como esse, que reúne artistas, pesquisadores e o público? Quais conversas você gostaria de ver surgir a partir da exposição de sua obra? 

O que desejo ver é a possibilidade de encontros e de celebração do meu trabalho e das vidas que fazem parte dele.

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