“Inferno e Danação – 1. A Queda Irreal do Funil de Nietzsche”, livro que narra o processo de destruição da reputação de diretor de TV, assim como sua elaboração pós-tentativa de execução durante regime Bolsonaro
As 904 páginas do primeiro volume de “Inferno e Danação”, de Aaron Salles Torres, são um mergulho vertiginoso na vivência do próprio autor, que envolve ameaças de morte, tentativa de execução, exposição ilegal, desaparecimento/ prisão, tortura, violência policial e psicológica, fraude processual, Transtorno do Estresse Pós-Traumático e equívocos narrativos do judiciário e da imprensa nacional.
O autor, no entanto, deixa claro que não se trata de uma autobiografia. “O livro está registrado como ficção científica e a provocação ao leitor é ele discernir fato de ficção. Muitos perderam essa habilidade em nossa era ‘pós-moderna’. Digamos que seja um livro ficcional a partir de fatos”, diz.
Para “Inferno e Danação”, o autor, portanto, criou personagens fictícios baseados em personalidades reais. No caso, ele se centra no relacionamento abusivo de Francisco e João Bosco, entre 2019 e 2021, tendo como entorno a história recente do Brasil, a caminhada para o fascismo da recém-terminada gestão de Jair Bolsonaro na Presidência da República, a chegada e os efeitos da pandemia de covid-19 e, ainda, questionamentos filosóficos sobre o momento atual da arte e da cultura da globalização, o chamado “pós-modernismo”.
Ativismo
Francisco, assim como o autor, é um ativista LGBTQIAPN+, diretor de cinema e TV, e escritor de linhagem política esquerdista. A narrativa passa da terceira para a primeira pessoa ainda no início da obra e o nome de Aaron é, eventualmente, mencionado em diálogos, e-mails, conversas de WhatsApp e de outros aplicativos. O texto ziguezagueia entre a biografia do autor e a do protagonista.
A história se inicia com uma tentativa de sequestro/ execução sofrida por Francisco, seguida por uma sessão de tortura por autoridades policiais do Rio de Janeiro, entre os dias 4 e 5 de janeiro de 2020, supostamente devido a seu ativismo político LGBTQIAPN+ e a atuação do personagem como democrata antifascista. Esses crimes são hoje investigados na vida real em segredo de Justiça, por decisão do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Um flashback leva o leitor a entender como o protagonista chegou à situação citada acima, desde a primeira ameaça de morte, recebida no Leblon em 2017, precisamente no dia do pré-lançamento de seu primeiro longa-metragem: “Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe”. Seguem a fuga para o exterior em 2019 e a posterior mudança do Rio de Janeiro para São Paulo, onde, por sinal, conheceu o coprotagonista João Bosco.
Luto
“Esse primeiro volume trata da elaboração de um luto. Começa com o questionamento de fatos irreais [‘eu estou doido?’], depara-se com uma dura realidade que machuca demais e termina com uma reflexão a respeito destas dores: de enxergar o abismo em que se encontra uma sociedade inteira, que nunca é tão desumana quanto durante convulsões fascistas”, afirma o autor.
Sobre sua vivência, ele diz que entrou em choque quando a polícia carioca o levou ilegalmente de um hotel em Santa Teresa no dia 9 de dezembro de 2020, onde se encontrava para a gravação de um clipe para a MTV EUA. “Eu me dei conta de que poderia não aparecer nunca mais. Só quem teve arma apontada para a cabeça ou foi vítima de tortura sabe do que se trata. Naquele momento, os milicianos podiam fazer qualquer coisa com meu corpo. Minha única preocupação era proteger meu namorado. Que fizessem qualquer coisa comigo, mas que não tocassem um dedo nele. Meu cérebro meio que desligou. Minha alma foi para outro lugar”, narra.
Ele prossegue. “Depois que a Polícia Civil desapareceu conosco por três dias, só me recuperei do estado de choque no final de janeiro de 2021. E comecei imediatamente a escrever o livro, porque a polícia carioca também apreendeu ilegalmente meu laptop de trabalho, onde se encontravam todos os meus roteiros ― que eu precisava, por contrato, entregar às produtoras parceiras de meus longas-metragens. Também estava sem meu telefone, sem minhas redes sociais, sem meus contatos e pesavam sobre mim incontáveis acusações falsas e absurdas. Escrever foi um ato de resgate de minha sanidade e de minha alma”, diz.
Choque
A obra literária faz parte de um projeto tripartite, que contará também com uma exibição de artes visuais em que o diretor se insere nas pinturas de Caravaggio, acompanhadas de imagens que seu ex-namorado fez dele neste período de choque. A terceira parte do projeto são letras de músicas que o artista escreveu nos difíceis meses de 2021 em que sofreu com o isolamento causado pelas falsas acusações, e para as quais atualmente busca melodias no estilo Lana del Rey. As três partes do projeto, segundo ele, compartilham muitos elementos: algo que é narrado no livro se verá na exibição e se ouvirá em uma canção.
No volume 1 do livro, que será lançado no dia 23 de abril de 2023, a narrativa se desnovela de 2017 até o reencontro de Francisco e João Bosco em fevereiro de 2020, pouco depois da tentativa de execução ocorrida em janeiro ― que levou o protagonista a uma crise de pânico ainda naquele mês. “Nas 24 vezes que revisei esse volume de quase mil páginas, inclui, ainda, trechos do diário iniciado em 2021. Iniciei o volume 2 imediatamente após o término do primeiro, em setembro, e fui escrevendo simultaneamente ao desenrolar dos fatos do final daquele ano e de 2022 e 2023.”
Para o lançamento de “Inferno e Danação – 1.A Queda Irreal do Funil de Nietzsche”, o autor esclarece que teve de aguardar desenvolvimentos internos do MPRJ, cuja procuradora de Direitos Humanos e Minorias, Eliane de Lima Pereira, junto à Coordenadoria de Vítimas, em setembro de 2022 abriu inquérito sobre as violações que o Estado e o crime organizado cometeram contra ele.
Inquérito
Até o entendimento inédito da procuradora, criminalistas acreditavam que os acontecimentos não eram interligados e que, assim, seus respectivos prazos de investigação e responsabilização teriam expirado. A procuradora, no entanto, compreendeu que o crime foi continuado desde a primeira ameaça de morte, recebida em 22 de novembro de 2017, até o ressurgimento do diretor, em 11 de dezembro de 2020 (após seu desaparecimento de três dias), e as acusações falsas de que foi vítima ― incluindo fraudes processuais que ocorreram ao longo de 2021 e que se encerraram definitivamente apenas em abril de 2022. Toda a investigação acerca do mal que o cineasta de 39 anos, nascido em Três Lagoas (MS), sofreu, corre em sigilo. No início deste mês de abril, o artista pode finalmente prestar seu primeiro testemunho, o que o colocou em segurança.
Criminalmente, o caso Aaron Salles Torres possui conexões com a execução de Marielle Franco. Jornalisticamente, o caso tem muito em comum com a Escola Base. Por esses motivos, a ONG Justiça Global entende que pode levá-lo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Quando saí do choque, o processo de elaboração do que vivi foi através da arte. Sempre escrevi. Este é meu terceiro livro publicado e sou roteirista. Mas, os acontecimentos mudaram meus planos para 2021: planejava dirigir meus roteiros em fase de finalização, porém meus longas também foram cancelados pelo regime Bolsonaro por seu conteúdo LGBTQIAPN+. Aluguei um outro laptop, já que a polícia carioca tinha confiscado o meu, e recomecei do zero: iniciei este livro para destrinchar o que tinha se passado. Questionava toda aquela irrealidade esquizofrênica do fascismo”, diz.
Nietzsche
A insanidade não pertencia a ele, chegou a essa conclusão. Para isso, resgatou conceitos teórico-filosóficos, a história do pensamento e a genealogia comum do pós-modernismo e do fascismo, que descendem de Nietzsche. “Fui engolido por uma lama podre, sofri gigantesco mal exercido pela autocracia e pelo crime organizado. Essa porção ensaística do livro é importante para a fundamentação artística da obra e explica o contexto em que os personagens estão inseridos”, afirma.
“A lama podre do pós-modernismo é o ambiente que as larvas do fascismo precisam para se procriar, recorrentemente”, complementa. Para o autor, o pós-modernismo (que chama de nietzscheanismo) acabou como movimento artístico em 2021. E Aaron propõe uma retomada. “O ponto de retomada proposto seria o Modernismo, […] em que havia anseio por liberdade, razão, igualdade e democracia e em que se buscava satisfação no moderno, como proposto por Marx”, escreve.
A publicação de “Inferno e Danação” teve seus próprios obstáculos. “Uma editora havia assinado contrato comigo para publicar o livro, ainda em outubro de 2021. Porém, por volta de maio de 2022, simplesmente romperam contrato, por medo de retaliações devido às graves denúncias que ‘ficcionalmente’ traz a obra. Foi então que resolvi expandir minha produtora Georgois Filmes para transformá-la em editora também”, diz.
Ele decidiu lançar também o livro de sua mãe, Elza Fernandes Torres, “O Brilho da Baliza”, no qual ela vinha trabalhando desde 2013. “’O Brilho da Baliza’ traz muita graça, tem muitas semelhanças com ‘Minha Vida de Menina’, e trata de uma época similarmente obscura na história do Brasil, do ponto de vista de uma criança (a segunda presidência de Getúlio Vargas e o período Jânio-Jango, na década de 1950 e início dos anos 1960, justamente um período que não cubro em ‘Inferno e Danação’)”, afirma.
O autor esclarece que “preparar o trabalho feminista em meninice de minha mãe simultaneamente à edição do meu foi o que me trouxe a leveza necessária para concluir, ainda no inferno bolsonarista de 2022, uma obra tão dura e densa quanto o primeiro volume (de provavelmente três) de ‘Inferno e Danação’. Considero os dois livros complementares. Por isso, inauguram, juntos, a Georgois Livros”.