Entrevista: Hireli, cantor e compositor

Entrevista: Hireli, cantor e compositor

1. O álbum Dance Aqui propõe uma celebração da liberdade e do prazer através da música e da dança. O que te motivou a transformar essas urgências em um disco agora?

Acho que o agora pediu. E eu nem tinha dimensão do quanto estava sendo necessário pra mim colocar pra fora tantos desejos. Eu fui invadido por essa obra. Eu tenho um outro projeto que seria o primeiro álbum, mas, devido aos custos e vontades da orquestra em algumas faixas acabou precisando esperar. No meio do caminho, eu comecei o que inicialmente seria um EP, sem compromisso, pra me divertir. Daí uma coisinha lá dentro virou e falou: O quê? Você resolveu finalmente se divertir e vai vir pra mim com mixaria?? Eu vou sugar e extrair tudo desse momento agora! Lide com isso! rsrs Era uma voz interna reivindicando lugar no mundo e era imediato, sem tempo pra deslocamento, era aqui. Um corpo sem pausa, sem toque, sem travessura, merece outra condição de existência. E aí veio a urgência: e se a gente pudesse existir dançando, mesmo dentro do colapso? “Dance Aqui” nasce como uma resposta sensual e divertida ao cansaço. Um convite pra viver o prazer sem pedir desculpa. Sem precisar ser discurso antes de ser delírio.


2. Você mencionou que muitas músicas surgiram como cartas não respondidas e memórias. Poderia contar um pouco sobre esse processo intuitivo de composição? Alguma faixa tem uma história que você possa compartilhar?

Sim. Muita coisa veio do não dito. “Sinta o ar”, por exemplo, foi a primeira música autoral que gravei em estúdio, faz quase 10 anos. Mas, na ocasião, não me senti totalmente contemplado, faltava alguma coisa. E no meio da feitura do álbum uma voz me cobrava sobre o verso “dance ao som da minha voz”. Tipo, pô cara, ce ta lançando um álbum que chama “Dance aqui’ eu tenho que taí! rs E é uma ode a minha criança queer, viada, GLS, LGBTQIAN+ com tudo o que ela tem direito. Alí eu botei Sandy Junior, Xuxa, Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, Sailor Moon, ‘It’s raining man’, ‘holding out for a hero’, todo esse suco. Minhas conversas com o produtor e amigo, Nathan, sempre foram muito poéticas na descrição das faixas e uma das frases que pegou muito no dia que cheguei ao conceito dessa música, foi quando eu disse: essa música é o exagero, é gay, é drag performando, é a igreja intergaláctica da libertação. Eu quero que passe esse sentimento de urgência, a nave vai decolar, agita o formigueiro. Se entrega, se joga, pula, brinca, solta. Eu ainda estou tentando entender se é raiva, saudade ou só vontade de dançar em cima disso tudo. 


3. “Não posso, tô rebolando” e “Tagadah” são músicas que misturam ironia, desejo e crítica social. Como você pensa essa fusão entre o corpo político e o corpo em festa?

Eu não consigo separar. Meu corpo é político quando tá rindo. Eu posso rir? Eu to rindo de que? Me permitem sorrir? Mesmo quando to de shortinho no calor da Zona da Mata. Aliás, talvez, principalmente. Vai botar um short e sair na Rua XV aqui pra ver. rsrs Incomoda, desperta, chama. E nem sempre eu estou pronto ou disposto pra isso. Daí eu pergunto, porque? Essas músicas são uma forma de rir da máquina e de sair dela. Quando a gente rebola, sacode o peito a gente desprograma essa engrenagem um pouquinho. Eu acho que o sistema em que a gente vive muitas vezes nos faz esquecer da razão de estarmos aqui que é a de existir usufruindo a beleza divina do negócio vida. Só que a gente inventou produto, demanda, entrega e fica parecendo que estamos aqui pra servir, pra ser unidade de produção, filial. A gente é matriz. A vida escorre muito depressa. Então pára aí agora que a gente vai passar, mandando na cara de quem quiser conferir ou participar. Eu cresci rebolando e ouvindo que não devia rebolar. “Hilreli dança melhor que as meninas” Como se meu corpo não pudesse ter a autonomia sobre a capacidade e habilidade de se movimentar simplesmente conforme meu impulso. Deveria ser de modo tal. Vivi muitos conflitos por causa disso. Agora não mais.


4. O disco é musicalmente diverso, com referências ao carimbó, manguebeat, pop eletrônico e muito mais. Como foi a escolha desses ritmos e como você buscou equilibrá-los sem perder a sua identidade?

Eu fui seguindo o desejo. Minha grande pesquisa com esse trabalho foi investigar o desejo. Cada música pedia um lugar sonoro diferente. O que segura tudo junto, no fim, é a minha voz e o desejo de dançar com o que sou e com o que me provoca. E no começo isso chegou até a ser conflito. Será que as pessoas vão me entender? A pessoa que se lançou com “chega” pode gravar “não posso, tô rebolando”? Eu sou do time do algoritmo aleatório real. Música é momento. Tudo pode ser bom e interessante, depende da perspectiva e disposição. Eu deixei tudo vir e fui me divertindo muito no processo. Eu até hoje tenho saudade do processo criativo. Foi delicioso demais criar cada barulhinho, cada referência, compartilhar cada ideia com o Nathan e ele foi fundamental nisso tudo! Ele veio brincar comigo. Dava o sinal e a gente descia correndo pro recreio. rs Essa mistura é um resgaste ao meu entendimento de música com tudo o que cresci ouvindo e reflete muito da nossa cultura que é plural e diversa. E esse é o grande barato do pop pra mim, pq ele permite brincar com todo o resto.


5. Você colaborou com artistas como Jovem Chagas, Martins, Daniel Arm e Banda Calorosa. Como esses encontros aconteceram e o que cada um trouxe de especial ao projeto?

Jovem Chagas a gente se conhece da cena aqui mesmo, meu conterrâneo. Um dia emblemático pra mim foi no Sarau Pirilampo, na rodoviária — acho que tenho esse vídeo guardado em algum lugar até hoje. Fiquei muito tocado com a voz dele. E fiquei falando da vontade de gravar com ele durante um bom tempo. Tinha outras ideias, mas rolou foi com “Sarra Comigo”, minha música mais safadinha, até aqui.

Cara, o Martins chegou pra encerrar o disco comigo e trouxe uma emoção fina, madura, que abraça gostosin. Talvez o grande hit do álbum. Uma composição minha e do Cassiano Andrade. Foi uma conspiração do universo que colocou, na hora certa, uma pessoa pra me ouvir declarar o quanto eu era fã do trabalho dele. Eu jamais poderia imaginar que ela o conhecia e poderia estabelecer a ponte. Foi coisa do destino mesmo. Assim que a música chegou até ele, ele curtiu, topou e gravou. De uma fofurice e generosidade deliciosas. Tenho certeza de que, até hoje, ele não tem noção do quão lindo foi, pra mim, ter a honra de dividir essa faixa com ele.

Eu e Daniel nunca nos vimos pessoalmente. Mas bastou ouvir aquela voz doce e encantadora pra eu ficar hipnotizado. Segui, curti, mandei um “oi”, comentei, dei aquela stalkeada básica… rs. E deu certo. A partir daí, começamos a trocar ideias. Tentamos compor umas duas antes dessa, mas não vingou. Só que quando aconteceu, meu amô… aconteceu bonito! Essa canção virou meu xodó declarado das composições, com todo carinho.

Agora, a Calorosa eu conheci no Climax da Mídia Ninja, em Brasília. O Climax é um evento que reúne ativistas, artistas, comunicadores e outras pessoas interessadas em criar um espaço de debate e ação para enfrentar os desafios das mudanças climáticas. Participamos de uma roda de conversa juntos, e a conexão rolou muito pra mim. Fiquei ligadíssimo! Achei que “Brincar de Beijo” tinha a energia irreverente que eu via neles. Foi assim que se deu a ponte Minas–Mato Grosso. Muito maravilhosos!!


6. A parceria com o produtor Nathan Itaborahy é destacada no release como uma construção afetiva. Como foi esse processo conjunto no estúdio?

Nathan tem um ouvido raro, mas mais que isso, ele tem escuta de alma. Uma vez, nem tínhamos tanta intimidade ainda, mas uma relação já estava em construção, e ele me disse que tinha sonhado comigo dando um berro, mas um berro que ele nunca tinha ouvido antes. Pra mim o berro hoje é esse álbum. Foi uma troca muito prazerosa apesar dos desafios de produzir com a limitação de planilhas orçamentárias dos editais. Você tem que fazer caber e como esse trabalho me invadiu eu estava totalmente preparado pra viver aquele momento mas ao mesmo tempo não estava. A gente descobriu como tornar possível junto. Então a produção foi dança também. Às vezes com coreografia, às vezes com improviso puro, pisão no pé sem querer, mas rodopio divertido no salão também. Eu vou levar longos bons anos pra elaborar o que foi conduzir, pensar, gestar e parir esse trabalho que vai pra além do álbum, tem o curta, a festa, o show. A gente gravou muita coisa à distância, mas mesmo assim tinha corpo, tinha presença. Tinham dias que a gente começava ouvindo uma guia e acabava conversando sobre como lidar traumas, o medo, a exaustão opressora capitalista, a vontade de sumir e aparecer ao mesmo tempo. Altas terapias, aliás tema que a gente nem gosta de falar. A gente ama. rs Por tudo isso, foi muito especial toda essa construção.


7. Em sua trajetória, temas como saúde mental, identidade e resistência já estão presentes. O que muda ou se intensifica agora com Dance Aqui?

Talvez o que mude seja o tom. Antes eu gritava. Agora eu canto dançando. Mas pra muitos essa dança também é um grito então a luta continua ali, só que embalada em beat e glitter. A dor, o cansaço, o desejo de existir fora das caixinhas continuam e agora eu os convido pra pista. Porque a resistência também precisa respirar. A gente às vezes esquece que é importante parar e respirar. Então a abstração, o escapismo possuem uma função orgânica que não é vadiagem como toda essa estrutura gosta de colocar e fazer crer. Tem uma frase do Krenak que tem a ver com isso: “A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira” Cultivar essa autonomia é o grande recado desse álbum. A gente não pode esquecer que essas regras, normas, dogmas, formatos, a gente inventou. O bicho humano vive perfeitamente sem absolutamente nada disso. Mas agora que tá posto eu só acho importante ter no radar essa informação pq virá daí o combustível para mover as estruturas necessárias de transformação. Esse sentimento de plenitude vai ser invalidado, questionado, destruído, sabotado? Não sem luta. E aí todo dia é luta, até pra garantir a festa. ‘Defender a alegria, organizar a raiva.’


8. Você fala sobre o corpo sendo reduzido a uma máquina produtiva e a importância do lúdico. Como a arte — e a sua arte — ajuda a subverter esse sistema?

A arte me salva toda vez que eu esqueço que sou mais que função. Quando eu componho, performo, filmo ou rebolo, eu me lembro: sou corpo inteiro, sou pausa, sou risco. Tem que ter esse delírio. Sabe a carreta furacão? Vestir uma fantasia e sair pelas ruas entregue a um misterioso desbunde. Isso é revolucionário. Porque lá em cima eles não querem o descanso atrapalhando o acúmulo. Então cada vez que alguém dança, se a minha música gerou esse momento, a gente ganhou um pouco. Minha arte não quer só denunciar, ela quer desorganizar o relógio, desordenar o algoritmo, desacatar o cronograma. E às vezes, só rebolar mesmo. O lúdico é meu jeito de sobreviver sem endurecer. É onde eu recupero o corpo, o afeto, a infância ferida e o prazer. É um espaço de invenção onde o esgotamento vira dança. No fundo, brincar é o que me permite continuar. Essa é a subversão.


9. Como artista, videomaker e agitador cultural na Zona da Mata mineira, o que esse lugar representa para você e como ele molda sua arte?

Aqui é onde minha voz aprendeu a cantar, mas também onde ela quase se calou. A gente tem uma ligação muito forte com o nosso território e quanto mais eu viajo mais eu me conecto e compreendo minhas conexões. E muitas vezes é difícil ainda pra mim me perceber e poder falar partindo de um lugar, uma região. Por mais que isso esteja profundamente enraizado em cada iniciativa que me envolvi em toda minha trajetória. É doido isso. Barbacena, por exemplo, minha cidade natal, se eu paro pra pensar no que ela representa é difícil expressar. É meu nascimento, minha chegada no mundo. Eu desci aqui, sabe? Ou subi? Brotei. rs As sementes que passaram por esse chão, o sangue, o suor, o gozo. Eu acredito que a gente não tenha muito a dimensão do quanto temos e somos dos nossos antepassados e o tanto que estamos deixando também. Esse entrelaçamento é muito forte. Vai estar em tudo o que eu faça, ainda que não seja a minha intenção. Não tem como fugir e nem quero. Pelo contrário, eu quero mais é reencontrar, confrontar e reivindicar essa minha área no mundo. Eu sou daqui. O “aqui” de Dance Aqui tem muitos níveis. Primeiro, é o território real, do interior, cidade onde eu vivo, crio, esbarro, convido. Mas também é o “aqui” do corpo que eu consigo sentir, tocar, transformar. Minha arte é moldada por esse lugar.


10. O que você espera que o público sinta ou leve consigo após ouvir o álbum e assistir aos visuais do Dance Aqui?

Quero que sintam vontade de se mexer. Se abraçar. De se permitir. De transar, beijar na boca. De mandar mensagem pra quem ficou no passado, pra agradecer ou mandar ir à merda, de tirar a camisa, vestir o que quiser, de suar na pista, de gritar “tagadah”, sacudindo o peito pra tudo que não cabe mais. Deixar os quadris soltos e livres. Experimenta só dar uma reboladinha lendo isso aqui agora. Rebola mesmo. Vai, você não rebolou ainda. Já rebolou? rs Se o “Dance Aqui” provocar calor e coragem, já fez o que veio fazer. Esse é um trabalho de redenção.

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