Entrevista: Justino Pereira, escritor e jornalista

Entrevista: Justino Pereira, escritor e jornalista

O livro chega justamente na data simbólica dos 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Como surgiu a ideia de lançar a obra nesse contexto histórico?

R- Foi uma coincidência útil. Passei dois anos trabalhando no livro e calhou de ele ficar pronto a tempo de vir a público perto dessa data redonda de 80 anos do fim da segunda guerra mundial. 

A narrativa mistura ficção científica, thriller político e reflexão social. Como foi equilibrar esses três elementos sem perder o ritmo da trama?

R- Eu sempre foquei na estória que estava contando, em colocar no livro os elementos que ajudassem a fazer a narrativa avançar, a levar os personagens sempre adiante em sua jornada. As coisas apenas foram avançando assim, e acabou sendo apropriado que a estória fosse contada como uma ficção científica com traços de thriller político. A reflexão social apareceu como algo, digamos, secundário, porque eu nunca quis escrever uma crítica social.

A obra apresenta a Terceira Guerra Mundial como um grande negócio das corporações. De onde veio essa visão crítica sobre o papel do capital em futuros conflitos?

R- As guerras do século XX foram, em muitos aspectos, negócios, ou formas de avançar ou frear negócios, dividir, disputar ou garantir mercados. Não esqueça que uma das metas de Hitler era garantir para a Alemanha a produção de cereais da União Soviética. Ou que empresas americanas venderam seus produtos pros nazistas em larga escala, só parando quando os Estados Unidos foram atacados. E não é diferente hoje, no século XXI. Na guerra da Ucrânia, por exemplo, um dos personagens mais interessantes, e real, foi o empresário dono do grupo WAGNER, presente em vários conflitos mundo afora, provendo mercenários e insumos. O dono da empresa, Yevgeny Prigojin, acabou morrendo de forma muito suspeita, depois de desafiar o Vladimir Putin. Vemos também o Elon Musk, vendendo coisas para a Ucrânia, como acesso a sua rede de satélites. Então, guerras e negócios sempre estiveram entrelaçados e não há por que pensar que será diferente no futuro.

O romance é narrado por um bot de Inteligência Artificial chamado Heródoto. O que motivou a escolha desse narrador e que desafios ela trouxe para a escrita?

Quis fazer uma homenagem ao historiador grego de mesmo nome e de certa forma, “atualizá-lo,” pô-lo nesse contexto em que algoritmos escrever e contam histórias e estórias.

Os personagens centrais são jovens — A Hacker, Chico e Elon Mars. Qual é a importância de colocar a juventude no centro de um cenário tão distópico?

A estória pedia personagens jovens e suas certezas e dúvidas, esperanças e desilusões, para conduzi-la. Tiver que responder à pergunta: o que melhor se aplica ao que eu quero contar? Que tipo de personagem melhor pode viver essa estória? Afinal, o futuro não nos pertence, pertence aos jovens. Eles precisarão decidir em que tipo de mundo querem viver e o que precisarão fazer para conseguir esse mundo desejado. Se eles deixarem as coisas irem no caminho em que vão, talvez acabem vivendo num mundo mais distópico do que o atual, num pesadelo de O Exterminador do Futuro (risos). Então, acho que fez todo sentido ter jovens como personagem principais.

O livro traz figuras controversas, como Mamãe Clonadora e clones de líderes políticos, além de bots com consciência. Como foi trabalhar com essa mistura de sátira e ficção especulativa?

Eu tive que descartar muitas das coisas que criei para o livro porque a realidade se antecipou a mim e tornou essas coisas em realidades, ao longo dos dois anos em que passei escrevendo o livro. Então, personagens como a Mamãe Clonadora talvez não estejam tão distantes assim da realidade. E penso que a clonagem humana, se ainda não está acontecendo em algum laboratório secreto (risos) está aí na esquina, prestes a acontecer, na medida em que várias barreiras éticas que a impedem, como o reconhecimento do valor absoluto do ser humano natural, parecem estar perto de desaparecer. À medida que uns humanos passarem a valer mais que outros, como já vem acontecendo, nada mais natural que se pense em criar “não-humanos,” falsos humanos.

Em sua trajetória como jornalista e consultor político, você vivenciou de perto o poder da comunicação digital. Como essa experiência influenciou a criação da “Neoverdade” e outros mecanismos de manipulação da informação presentes na trama?

Ótima pergunta. A comunicação digital não criou as fakenews. A mentira sempre foi usada como uma arma política, desde os tempos antigos. Não há novidade no uso de falsificações, distorções, invenções, na busca de conquistar o poder, seja através das armas ou do voto. Já se disse que, na guerra, a primeira vítima é a verdade. O que há hoje de diferente, eu acho, é o volume de mentiras, de sua quantidade estética, sua velocidade de espraiamento pela sociedade e na periodicidade gigantesca com que são lançadas essas mentiras. Mente-se muito, sobre todas as coisas e sem limites éticos, porque até no uso da mentira é preciso haver limites. Milhões de humanos, centenas de milhões, talvez, vivem hoje num mundo em que a única realidade que eles conhecem é a da mentira. A vida do consultor político se tornou muito difícil porque há, além da grande quantidade de mentiras, muitos eleitores cegamente dispostos a aceniá-las.

O romance aborda clonagem, IA generativa, colonização de Marte e vigilância de metadados. Entre todos esses temas, qual considera o mais urgente para refletirmos hoje?

Eu acho que são coisas interligadas e que não dá pra pensar numa delas, sem pensar nas outras. O que a colonização de Marte tem a ver com todas essas outras coisas que você falou? Ora, pergunte a Elon Musk, olhe para o que ele está fazendo, ele que está metido em todas elas e não é nenhum idiota.

O Valor Econômico destacou que sua obra alerta para os riscos de a história se repetir. Até que ponto o livro é uma metáfora dos dias atuais?

Eu quis contar uma boa estória de ficção científica. E parece que a melhor delas está se desenrolando agora, no nosso mundo, em frente aos nossos olhos. Então, penso que foi natural me apropriar de alguns elementos da realidade.

Foram dois anos de pesquisas, redação e reescritas. Quais foram as maiores dificuldades nesse processo e como chegou ao resultado final?

O Ruy Castro costuma dizer que ele não é um escritor, mas um reescritor. Esse foi o primeiro romance que eu escrevi e que, mesmo cortando, enxugando e editando, ficou com 530 páginas. Acho que passei por umas seis reescritas. O livro tem muitos personagens, muitos cenários, muitas coisas acontecendo, então acho que o mais complicado foi conseguir manter os olhos em tudo isso, em todos esses pratos girando no ar ao mesmo tempo, para não deixar nenhum deles cair, não esquecer ninguém congelado em uma cena, ou deixar de dar todos os desfechos necessários. Espero ter conseguido isso. E espero ter feito algo que as pessoas sintam prazer em ler, se divirtam, queira mais.

Seu estilo mistura prosa literária, trechos jornalísticos, fragmentos técnicos e até códigos de programação. Como foi pensar essa forma híbrida de narrativa?

Olha só. Eu não sou programador, então “pedi” aos chatesgepetês da vida que criassem pequenos programas a partir das premissas que eu dei. Esses segmentos estão no livro, eu penso, ajudando a criar o clima da estória e, mais importante, fazendo-a avançar a cada página. Da mesma forma, cada estilo narrativo que eu usei, usei porque achei adequado ao que queria dizer ou mostrar. E por ser eu mesmo um jornalista, nem sempre foi fácil conseguir me livrar do vício de contar estórias segundo os ditames da profissão. Embora acho que consegui.

Por fim, qual é o impacto que você espera causar nos leitores: entretenimento, reflexão ou talvez um chamado à ação diante do cenário que vivemos?

Se as pessoas se divertirem, acharem que estão lendo uma boa estória, eu ficarei satisfeito. Se o livro ajudar alguns  leitores e leitoras a refletir um pouco sobre o mundo que estamos vivendo, ficarei mais satisfeito ainda.

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