Entrevista: Flavia Couto, diretora e dramaturga

Entrevista: Flavia Couto, diretora e dramaturga

Como surgiu a ideia de transformar sua experiência pessoal em um espetáculo interlinguagens como Uterina?
O espetáculo nasceu da necessidade de resignificar um acontecimento doloroso: a interrupção judicial de uma gestação desejada, com 22 semanas, devido a diagnóstico de incompatibilidade com a vida extrauterina. Passei por um silêncio profundo, um mergulho no luto. Escrever sempre foi uma prática minha, e nesse processo os registros íntimos se transformaram em material criativo. Viagens, laboratórios somáticos e experimentações artísticas foram trazendo imagens, sonoridades e corporeidades. Em uma residência de criação no exterior, diante do cenário político do aborto ilegal no Brasil, senti a urgência de romper o silêncio. Assim, o que era pesquisa pessoal se tornou espetáculo.

Qual foi o maior desafio de traduzir sentimentos como luto e alegria em imagens, som e corpo?
Encontrar uma tradução poética sem perder a intensidade da sensação original. Eu sempre voltava ao que havia despertado cada imagem, som ou gesto, buscando orquestrar esses elementos em cena.

O cenário remete a um útero e utiliza projeções sinestésicas. Qual o impacto disso para o público?
Minha primeira filha só viveu no útero. A atmosfera uterina surgiu dessa experiência e da metáfora de me sentir gestada novamente pela natureza. Para quem vive perdas traumáticas, o luto pode ser também um renascimento. Essa conexão com a natureza e com a ancestralidade é central na obra.

A ampulheta-gestacional é um adereço simbólico marcante. Como surgiu?
Ela materializa o tempo que se esvai, mas também o útero que fecunda, o mistério do que virá e a ancestralidade. O movimento em espiral dialoga com o som do ecocardiograma da minha filha, com gestos corporais e com a ligação entre passado, presente e futuro.

Como você equilibra dança, teatro, audiovisual e artes plásticas na narrativa?
Foi um processo artesanal e experimental, com contribuições fundamentais de parceiros criativos. Tive o privilégio de usar o LANTISS, no Quebec, por dois meses, explorando tecnologias cênicas em diálogo com os materiais. Ainda considero a obra em aberto, sempre em transformação.

A dança Moribayassa inspirou o trabalho corporal. Qual a relação com sua experiência?
Essas danças regeneradoras, africanas e também o flamenco, inspiraram o corpo como insurgência. Não é coreografia tradicional, mas improvisação poética. É uma homenagem às mulheres que geraram vidas ou perderam filhos, mesmo no início, mas continuam sendo mães.

Em Uterina, arte e luto se cruzam. Como isso contribuiu para sua cura?
Arte e natureza me curaram. A peça reúne questões de antes e depois da maternidade, de tensões sociais e íntimas. Ao compartilhar, percebo ressonância com mulheres mães e não mães. Essa troca mostra que o espetáculo acolhe diferentes experiências, além de discutir a legalidade do aborto.

Como a experiência internacional influenciou a estética da peça?
No Brasil, criamos muito na precariedade. No LANTISS, tive tempo e tecnologia para experimentar intensamente. Isso foi decisivo para a construção sensorial de Uterina.

Parte da plateia assiste de dentro do espaço cênico. Que experiência você deseja provocar?
Ofereci a opção de assistir de frente ou de dentro da cena. Cada escolha gera uma experiência particular.

Qual o papel da arte na visibilização da pauta do aborto?
É fundamental. Minha vivência pessoal me mostrou como a justiça ainda controla os corpos das mulheres. Muitas permanecem em silêncio, mas precisamos falar. Minha decisão foi não calar.

Que elementos da natureza marcaram a composição do espetáculo?
O mar foi o mais impactante, junto de imagens aquáticas. O aquário em cena simboliza útero, afogamento, travessia e cura.

Quais os próximos passos de Uterina após duas temporadas e o Prêmio Zé Renato?
Quero circular por mais cidades brasileiras. A missão é dupla: discutir o aborto e acolher as mulheres diante do silenciamento e da violência.

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