Entrevista: Gustavo Ortiz, cantor e compositor

1. Gustavo, você menciona que o termo “desafogo” também representa sua própria necessidade de colocar suas canções no mundo. Qual foi o momento em que você percebeu que era a hora de finalmente dar esse passo?
O momento de dar esse passo foi bem menos uma decisão propriamente dita do que uma questão de possibilidade. Gostaria de ter dado esse passo bem antes, porém, mesmo com todos os avanços tecnológicos na área musical e as facilidades que resultam desses avanços, ainda é caro fazer gravações de alta qualidade, com estúdio, equipamentos e músicos de primeiro time, especialmente quando isso envolve lançamentos e os custos que eles demandam. E eu não via muito sentido em simplesmente colocar essas canções no mundo se não fosse para ser bem feito. Então foi apenas aos 35 anos, em 2024, que realmente consegui me organizar financeiramente para dar esse passo, ainda assim contando com o auxílio de editais municipais de cultura. De todo modo, preciso destacar que o trabalho junto à minha produtora e companheira de vida, Gabi Loreti; o selo TRUQ do qual faço parte; e o fato de o Romulo (Fróes) ter abraçado o trabalho foram fundamentais para que esse passo fosse dado com bem mais estrutura e segurança.
2. O EP começou a ser gestado em 2009 e foi retomado em 2023. Como foi revisitar composições tão antigas à luz de quem você é hoje?
Considero que o EP começou a ser gestado em 2009 porque a canção Desafogo, que inclusive dá título ao EP, foi composta naquele ano, quando eu tinha 21 anos. Há também canções compostas em 2010 e outras bem mais recentes. Eu tenho canções mais antigas, pois comecei a compor assim que aprendi a tocar violão, lá por 2001, 2002, mas sinto que na época de Desafogo eu estava fazendo algo potencialmente interessante e não apenas uma cópia do que ouvia. Então essas canções de 2009, 2010 continuaram comigo, eu sempre as tocava para amigos e em apresentações, portanto não foi bem uma revisitação, uma vez que nunca as deixei intocadas. Sinto que teve mais a ver com, enfim, vesti-las num arranjo e transformá-las num fonograma, em algo gravado e que pode ser ouvido sempre que alguém quiser. Isso porque eu as tocava cada vez de um modo diferente, então a revisitação teve mais a ver com ressignificá-las para entender quais arranjos expressam melhor o que me interessa agora, mais do que as próprias canções em si, que seguiram me expressando por todo este tempo. Sempre gostei delas, e até por isso estão no EP. E o mesmo está acontecendo com outras canções compostas há muitos anos (2013, 2015 etc.) que estarão no álbum que vem por aí.
3. Como a presença e a escuta do Romulo Fróes influenciaram os rumos criativos e estéticos do EP?
Não é todo dia que alguém com o talento e a bagagem do Romulo se interessa em produzir um completo desconhecido. Antes de tudo, a presença dele significa uma confirmação para mim mesmo da força das minhas canções. Além disso, a direção artística do Romulo foi crucial para a estética do EP, desde a escolha das canções, pois eu havia apresentado a ele todas as minhas composições feitas até então, e a partir daí pensamos em algo que fizesse sentido como um conceito, canções que dialogassem entre si, fugindo da tentação óbvia de gravar as canções mais antigas. A escuta do Romulo, como grande compositor que é, ajudou a lapidar melhor a forma das canções, inclusive dando pitacos em algumas letras, além de seu ouvido de produtor que potencializou a sonoridade com os arranjos propostos. E a chancela do Romulo no trabalho também permitiu reunir um time de músicos de primeira linha. Sinto que essa parceria vai render muitos frutos, acabamos de compor nossa primeira parceria e Romulo é o diretor artístico de meu primeiro álbum que chega em 2026.
4. O trabalho carrega forte conteúdo social e afetivo, como se percebe em “José, João”. Qual é a relação entre a sua formação como cientista social e o seu modo de compor?
A relação é bem forte, especialmente nos temas que me interessam como cientista social e antropólogo e como compositor, isso porque esses temas me interessam primeiro como pessoa que vive no mundo. Tem até mesmo algo de residual nas composições, no sentido de que nelas eu posso abordar os mesmos temas das ciências sociais de outros modos que o meio acadêmico não comportaria, ou seja, são resíduos de debates e discussões que acompanho, mas que o meio acadêmico não consegue dar conta. “José, João” é um exemplo disso, inclusive a resposta dos trabalhadores e trabalhadoras da minha família a ela foi bem mais intensa do que qualquer debate de viés acadêmico que eu tenha tido. Em resumo é que nas canções consigo tratar dos mesmos temas de outros modos. Além disso, as ciências sociais e a antropologia são um exercício de aguçamento da percepção do cotidiano que penso como fundamental para a prática de compor canções. No fundo penso que todas elas (ciências sociais, antropologia, canções) podem funcionar como proposições de novos modos de olhar para o que consideramos banal e dado de antemão, elas têm o poder de propor novos olhares para o mundo. Então para além da questão da temática, tem também isso dos modos de olhar e perceber algo. Por exemplo, penso que uma canção de amor é também política, e minha preocupação como compositor, em consonância com minha preocupação como cientista social, é que essa canção que trata de amor proponha um novo olhar sobre o que pode ser amar, ou ao menos não reforçe estereótipos nocivos e que ameaçam modos não convencionalizados de existir e amar. Por fim, tem também a questão de as ciências sociais e a antropologia privilegiarem o coletivo, e isso é algo que me preocupo muito em minhas composições, esse olhar para o coletivo, pois sinto que os temas e os modos de olhar na música, especialmente na chamada “Nova MPB”, estão muito voltados para o individual, minha intenção é o contrário disso.
5. O videoclipe de Desafogo é carregado de simbolismos, com uma dança em meio às ruínas. Como foi a construção desse conceito e o processo de gravação?
A concepção é, na maior parte, de Gabriela Loreti. Essa ideia de uma mulher sozinha dançando numa casa já me acompanhava há um bom tempo quando eu pensava na possibilidade de um videoclipe para Desafogo, isso porque as primeiras estrofes foram escritas pensando em minha mãe, uma mulher muito do trabalho e que durante anos teve pouco tempo para momentos de diversão e relaxamentos. Essa dança seria esse desafogo dessa mulher. A partir dessa ideia, Gabriela concebeu a estética das ruínas, esse tempo e espaço um pouco deslocados, assim como essa cenografia que é mais uma sugestão de uma casa, com móveis e objetos que sugerem cômodos e espaços mais do que os constroem efetivamente. A partir disso começamos reuniões de criação e produção com a equipe. Algo importante foi a definição de três momentos do videoclipe, (Contenção, Tensão e Desafogo) em consonância com a canção, e que o arranjo foi crucial para ressaltar. Isso nos deu um caminho mais delineado para o processo de gravação. Definidas essas ideias principais e o local, começamos os ensaios na própria locação, porque uma questão fundamental era criar uma fluidez entre a câmera da Iasha Salerno e a dança da Marina Sanches, os ensaios foram imprescindíveis para o resultado final. A direção de Marco Escrivão foi fundamental, especialmente para as decisões de enquadramento e na condução dessa relação entre câmera e dançarina. Isso refletiu também na ótima montagem feita por Carlos Alberto Correa, que fez ressaltar o ritmo de cada um daqueles três momentos da canção. É um videoclipe de baixo orçamento realizado por meio de um edital público, assim tudo teve que ser muito bem pensado para caber nesse orçamento. O que ajudou muito foi o fato de ter amigos e amigas profissionais do audiovisual que toparam a ideia muito pelo projeto em si, já que os pagamentos acabam ficando abaixo do que o mercado demanda. Apesar de o audiovisual ser algo sempre caro, ainda acho que boas ideias geram resultados mais interessantes do que apenas equipamentos de ponta e grandes orçamentos. Um exemplo é a meia-calça usada por Iasha, a diretora de fotografia e operadora de câmera do videoclipe, para causar aquela fotografia um pouco etérea fundamental para o deslocamento espaço-temporal do videoclipe. Uma meia-calça é algo barato e gerou um resultado incrível. Videoclipe é algo que sempre assisti muito e que pretendo continuar fazendo.
6. As participações de Rodrigo Campos e Thiago França trouxeram novos timbres ao EP. Como se deu a integração entre suas composições e as colaborações deles?
As participações do Rodrigo e do Thiago estão diretamente ligadas à direção artística do Romulo. É a turma dele né. Eles já gravaram muito juntos, além de serem amigos. O que eu achei incrível é que o fato de o Romulo trazer nomes de peso para o trabalho diz muito a respeito do que ele pensa sobre minhas canções. Nunca pensei em ter eles tocando no meu som, ainda mais logo nos primeiros lançamentos. Eu acabei de ler uma crítica ao meu EP, a única crítica nos termos do que realmente se entende por crítica musical, ou seja, uma análise mesmo, e o jornalista levanta a questão se minhas canções se sustentam sem essas colaborações luxuosas. No fim da crítica ele diz que sim, na opinião dele as canções e as letras se sustentam e que as colaborações dão mais corpo às canções e funcionam também como “padrinhos” me apresentando. Mas o principal é que ele foi num ponto que já me pegava: será que minhas canções sustentam essas pessoas tocando junto? Ou pior. Será que elas só ficaram boas por conta deles? Enfim, penso que não foi só por isso, tem gente que pode achar que sim. Mas sinto que foram colaborações que potencializaram as canções, que somaram à força que elas já carregavam no formato voz e violão. E isso tem muito a ver com o modo como o Rodrigo e o Thiago pensam e trabalham as músicas. É nítido que eles não estão lá para “entregar um trabalho”, eles realmente pensam o melhor para a canção, fazem e refazem tendo isso em mente, o que importa é mesmo a contribuição, no sentido de fazer a canção dizer o máximo que ela pode dizer. Desafogo é um exemplo, Thiago não ficou contente com os sopros que ele tinha feito em estúdio, levou a canção pra casa e depois entregou um arranjo com flautas em gravações reversas e o sax bem mais trabalhados do que o previsto, isso porque é o que ele sentiu que a canção precisava, que ela precisava de mais tempo, e não só o tempo que o estúdio permitia ali na hora (que era o previamente acordado entre nós, inclusive). E ele entregou uma coisa linda demais, como sempre. E agora na gravação do álbum que vem em 2026, tô sentindo a mesma coisa das pessoas envolvidas, inclusive eles dois.
7. A canção ainda tem espaço de destaque no cenário musical dominado por tendências mais imediatistas? Como você enxerga o papel da “canção” na Nova MPB hoje?
A canção tem espaço e sempre vai ter. O Brasil tem essa tradição fortíssima na canção, mesmo nesse cenário musical de tendências imediatistas. No entanto, têm dois pontos importantes aqui. O primeiro é qual tipo de canção está sendo criada nesse cenário musical, ou melhor, qual tipo de canção consegue chegar ao grande público de forma mais geral – isso porque sempre haverá exceções. Digo isso porque a própria canção é mutável, e elas são muitas, não basta saber se a canção ainda tem espaço, mas qual tipo de canção tem espaço. Essas tendências imediatistas influenciam diretamente na canção produzida atualmente: introdução curtíssima, ir direto para o refrão, ter no máximo 3 minutos, enfim, várias “regrinhas” pra caber em playlist de streaming. Meu EP tem 5 faixas, sendo que uma é apenas um interlúdio de 1 minutinho, e ele tem 20 minutos no total; a “música de trabalho” do EP tem 6 minutos, o clipe quase 7 minutos, isso é suicídio em termos de streaming, ainda mais pra um desconhecido e no começo como eu, mas isso é também uma forma de não abrir mão do meu modo próprio de fazer canção. E aí eu entro na segunda pergunta, o segundo ponto, acho que o papel da Nova MPB pode ser (não digo que deve ser porque cada um faz o que quiser) não se render ao formato de uma canção imediatista, ou se fizer que seja por desejo do artista e não por imposição do mercado. Não dá pra esperar que os artistas da Nova MPB tenham o mesmo alcance dos que são considerados a MPB, isso porque tudo mudou, o mercado e o mundo, e isso não é algo ruim, pois muitos dos artistas da MPB eram populares justamente porque tinham acesso às mídias e meios de comunicação, o que não quer dizer que eles não são incríveis, eles são sim, mas não se trata mais de um pequeno e seleto grupo do Olimpo da chamada MPB. Essa Nova MPB tem muita gente, que eu nem sei se cabe nesse rótulo, e se ele é mesmo bom pra dizer algo, mas tem muita gente boa fazendo ótimas canções. A canção continua sendo o cerne do que a gente entende por MPB, com a diferença de que alguns artistas hoje, além de ótimos compositores, manjam muito de programas de produção e tudo mais (eu não sou desses porque não manjo de programas, embora me interesse participar de todas as partes do processo bem de perto, mas uma Ana Frango Elétrico, por exemplo, é incrível o que ela faz na própria produção), então acho que tá rolando um movimento dessa Nova MPB de pensar a canção caminhando bem junto com sua produção como fonograma, o que é bem distante de um Chico Buarque por exemplo, que mandava uma gravação de violão e voz para o maestro que arranjava tudo, e ainda tinha a gravadora mandando por trás. Então, sinto que estamos num momento prolífico dessa Nova MPB, que inclusive tem muita capacidade pra renovar a canção, justamente porque não tem gravadora mandando por trás, e de subverter essa tendência imediatista de produção e consumo, mas isso desde que consiga criar possibilidades que confrontem as demandas cruéis dos streamings e que, na parte criativa, não caia na tentação de copiar o que já foi feito nos anos 60 e 70, pra não ficar deitado numa rede de segurança embalada pela nostalgia de um público que ainda espera os próximos Chicos, Betânias, Caetanos, Gils e Gals. É preciso ser outra coisa.
8. O EP parece abrir caminho para outras formas de habitar o mundo e construir sentidos. Qual a principal mensagem que você gostaria que o ouvinte levasse desse trabalho?
De que o desafogo não tem nada a ver com essa felicidade que é vendida por coachings e influenciadores. Que não basta estar com a “terapia em dia” e que não é algo acabado. O desafogo precisa ser construído diariamente, especialmente nas pequenezas cotidianas. Ele diz respeito principalmente a aprender que a vida é cheia de frustrações e adversidades, mas que ainda assim precisamos buscar esses desafogos para continuarmos seguindo. Porém, ele não pode ser confundido com uma resignação muda, ao contrário, ele demanda lutas, individuais, sim, mas principalmente coletivas. É possível criar desafogos individuais, e eles são necessários, mas os principais desafogos precisam ser criados coletivamente, nas lutas contra todas as formas de opressão, dominação e silenciamento. Não à toa, os coros nas canções do EP foram escolhidos justamente para ressaltar esse caráter coletivo. Os coros são os momentos de construção de desafogos coletivos.
9. Quais os próximos passos para a divulgação de Desafogo? E o que podemos esperar do álbum previsto para 2026?
Agora o principal é continuar trabalhando no pós-lançamento, fazer o EP chegar no máximo de pessoas possível, fazer o pessoal conhecer o trabalho e, para quem gostar, seguir de perto os próximos lançamentos. Quanto a isso, o trabalho do selo do qual faço parte, o TRUQ, é fundamental, nessa criação de conteúdo, que eles fazem de maneira sincera e sem fazer do artista algo que ele não é. Além disso, tem um videoclipe de Desafogo, então a ideia é também fazer o clipe rodar em festivais e mídias especializadas. Além, é claro, do ao vivo, que ainda acho ser a forma de maior conexão com o público. A respeito do álbum, pelo que fizemos até agora, acho que dá pra esperar algo bem interessante, com uma sonoridade já mais trabalhada em relação ao EP. Ainda estamos em processo de gravação, mas sinto que vai dar pra apresentar um trampo que pode interessar às pessoas. O foco ainda são as canções autorais, e agora por ser um álbum contemplado pelo edital PROAC, temos mais recursos para a produção dele como um todo. Romulo e eu ampliamos ainda mais o time, além das pessoas que já participaram no EP e que continuam, só tem craque. Além do Rodrigo (Campos) e do Thiago (França), tem Biel Basile (O Terno) na bateria, Marcelo Cabral (Criolo, Elza) no baixo; Bruna Lucchesi comandando o coro e na preparação vocal, e mais gente pra lá de boa que ainda vai gravar. Enfim, vai dar pra chegar fazendo algum barulho.
10. Por fim, para quem ainda não conhece seu trabalho, como você se apresentaria em poucas palavras?
Um fazedor de canções em português que deseja fazer boas músicas, provocar discussões e instigar antenas mais atentas.