Entrevista: Poli, cantora e compositora

1. Poli, o que te inspirou a criar o EP “Da Raiz ao Canto”? Como surgiu esse título tão simbólico?
“Sempre tive o sonho de gravar músicas autorais, mas o que me deu mais estímulo para iniciar esse processo foi o encontro dos saberes da cantiga, que também foi o motivo de ter escolhido o nome ‘Da Raiz ao Canto’ para o EP. Foi no encontro de saberes que pude reencontrar os ancestrais e me reconectar com a minha história a partir de trocas com raizeiros, benzedeiras e mestres da cultura popular”.
2. Você menciona que o EP é um “ebó para o orí”. Pode nos contar mais sobre essa conexão entre música, espiritualidade e ancestralidade?
“Ebó (oferenda) para o Orí (cabeça), igual a oferenda para a cabeça. A nossa cabeça comanda o corpo e as ações, então oferecer coisas boas, cuidar e proteger o nosso orí nos torna mais saudáveis, gentis e felizes. A música é o que nos faz ser quem somos, antes mesmo de falarmos nós já aprendemos a cantar. A nossa herança ancestral, digo, dos povos originários e africanos, quando expropriados aqui tinham como escape a música. A música se encontra em tudo na nossa vida, na hora de nascer, na hora da morte, ela é um portal”.
3. Como foi o processo de composição das faixas? Há uma faixa que nasceu de maneira mais desafiadora ou especial para você?
“É intuitivo. Algumas músicas já tinham sido compostas, como ‘Ladainha’ e ‘Cigana’ e mesmo assim cigana ainda precisou passar por um processo de pequenas mudanças, essa música que foi composta primeiramente por Tina e depois eu e Zé complementamos. As outras vieram aos poucos, como a faixa ‘Da Raiz ao Canto’, que nasceu em um momento de reza. Enquanto rezava, me veio na memória os rituais praticados no encontro dos saberes da caatinga, onde a letra saiu, peguei um papel e escrevi a letra em coisa de segundos. Então essa considero ainda mais especial, por carregar a reza, a mensagem de cura e o agradecimento dos encontros da vida. ‘Fumaça’ também nasceu de um momento ritualístico da jurema sagrada e essa eu considero a mais desafiadora por ser uma letra que enfrenta a intolerância e a denúncia. Já ‘Licença’ veio de uma descontração no caminho do trabalho com amigos e amigas, entramos na mata de Aldeia e pedimos licença, foi quando a cantiga veio naturalmente”.
4. Sua obra transita pela capoeira Angola, jurema sagrada e candomblé. Como esses elementos influenciam sua criação artística?
“Todos esses elementos são pilares da minha evolução, do desenvolvimento diário e principalmente da forma como enxergo a vida. Não tinha como não colocar em música essas influências, afinal pratico capoeira e vivo a espiritualidade todos os dias”.
5. Como mulher preta, mãe, artista e estudiosa da saúde e dos serviços sociais, de que forma essas vivências estão presentes em suas canções?
“No momento em que me coloco como uma pessoa que precisa de cura diária, do cuidado, do respeito e da qualidade de vida, eu canto. Dessa forma cada letra, cada arranjo e imagem desse EP dialoga com a forma que acredito de cuidar. O serviço de saúde está diretamente ligado com o direito à qualidade de vida das pessoas e que por sua vez tem conexão com a música”.
6. Você enxerga a música como um caminho de cura. De que forma o EP foi também um processo de cura pessoal?
“Sempre é um caminho de cura. Esse EP nasceu de um desejo de realizar sonhos, mas apesar de tudo ocorrer perfeitamente como tinha que ser, enfrentei muitos desafios. Foi feito por muitas mãos, várias cabeças presentes e por causa disso tive que aprender a conviver, a equilibrar o ego de forma que não atropelasse companheiras e companheiros de trabalho. Tive que entender que não é apenas sobre mim, mas é sobre o fazer coletivo, sobre o respeito, sobre o zelo e principalmente a gentileza. Comecei a me curar a partir do momento quando entendi que a mudança começa dentro da gente junto ao coletivo, expandindo também para todas as outras áreas da minha vida”.
7. Sua filha Leona participa do EP, assim como Alessandra Leão. Como foi viver esse encontro entre gerações e vozes femininas?
“Não poderia perder a oportunidade de eternizar a voz da minha filha, que aos cinco anos de idade já compõe e se arrisca tocando violão e percussão. Digo que ela já faz show no banheiro e na frente do espelho. É o amor da minha vida e eu precisava que ela estivesse nesse momento, principalmente por ser um primeiro EP. Já com a Alessandra (Leão), recebi o presente de contar com ela nesse processo e posso dizer que aprendemos com as trocas que tivemos, sendo enriquecedor. Só tenho a agradecer”.
8. Zé Freire assina a direção musical e está presente em várias composições. Como foi essa parceria?
“Aprendo com Zé (Freire) diariamente. É um músico especial, profissional e dedicado que me ensina sobre resiliência. Nos detalhes, ele me ensina sobre zelo. Zé é absurdo de bom, criativo e inédito no que faz, além de caprichoso. Não tinha como ser outra pessoa nesse momento, até porque o seu cuidado foi crucial, e o resultado disso é o que ouvimos agora”.
9. O EP reúne muitos músicos e profissionais de Pernambuco. Como foi essa construção coletiva? Qual o valor dessa força colaborativa para você?
“Esse trabalho precisava de uma equipe segura, harmoniosa e confiante, e com certeza profissional. Ter contado com as pessoas que contei foi a coisa que mais fez sentido. Inclusive, já havia feito outros trabalhos com essas pessoas, então a força desse brilho todo acontece por causa da equipe que esteve comigo. Além de grandes profissionais, são amigas e amigos”.
10. Você mesma assinou a identidade visual, o figurino e acessórios do EP. Como você pensa a estética visual junto à sonoridade?
“São influências da natureza, da raiz de uma árvore, do tronco que segura os galhos, das folhas verdes, das folhas mortas, do broto, dos frutos, da terra, das águas do rio e da luz do sol. O visual do EP está diretamente ligado às cores que encontramos na mata, na floresta, no mangue, onde a gente tem a sorte de encontrar saúde, vida e continuidade”.
11. São mais de 25 instrumentos gravados, entre sopros, percussões, cordas e palmas. Como foi organizar essa diversidade de timbres e camadas sonoras?
“Fui sentindo e conversando com Zé Freire, pois meus desejos são subjetivos, então às vezes nem consigo explicar como enxergava um arranjo específico para as músicas, Mas, com a experiência dele, conseguimos ‘imprimir’ as ideias da cabeça e do coração, rendendo esses resultados que estamos vendo e ouvindo”.
12. Há uma riqueza rítmica no EP: coco, ijexá, choro, capoeira. Como você articula essas referências sem perder sua identidade musical?
“Como havia dito anteriormente, vivencio diariamente tudo isso, logo não tem como perder a identidade, a não ser que seja proposital, e ainda sim desconfio que seja possível”.
13. Você lançou suas primeiras músicas nas plataformas digitais em 2023. Como tem sido essa transição para o universo digital e solo?
“Está rolando um amadurecimento de ideias e ideais porque tenho reparado a minha evolução. Me vejo em outra versão neste trabalho de agora e também tem a mudança na vida. Me vejo uma mulher mais madura e tenho enxergado os caminhos com mais ‘escureza’. Quando gravei a música ‘Pra Você’, estava num momento que precisava decidir entre ser CLT ou buscar a vida de artista. Foi aí que a letra nasceu e fiz um xote romântico que narra essa necessidade de se declarar e se jogar para a vida que a gente deseja. Então, hoje me vejo vivendo a vida que desejava lá atrás, como artista. E agora construindo um trabalho mais digno e mais divertido”.
14. Você mencionou que a capoeira te ensinou a ser mais circular e paciente. Como isso reflete na sua forma de compor, cantar e viver?
“A capoeira é tudo o que a boca come, como dizia mestre Pastinha. A nossa boca come, bebe e fala, e tudo isso influencia no corpo, na mente e no espírito. Na hora de compor não é diferente. Exige uma dedicação como nos treinos de corpo e musicalidade que acontecem na capoeira, o relaxamento do corpo e o momento de reflexão para melhor entender os movimentos a serem executados mais na frente. E por fim, que não é o fim mas o recomeço, a roda, onde a gente joga, se encontra com as pessoas e desenvolve tudo o que a gente aprendeu. Assim acontece também na composição, sentindo, aprendendo, exercitando, se alimentando bem, se hidratando, criando e jogando no mundo através do cantar”.
15. Quais são seus próximos passos? Podemos esperar clipes, shows ou novos lançamentos para seguir trilhando esse caminho “Da raiz ao Canto”?
“Pretendo continuar com as movimentações e desejo fazer a circulação, além de clipes e gravações de novas músicas. Tenho fome de viver e fazer arte, mesmo não sabendo para onde vou depois disso, mas sei que estou por aqui vivendo esse parto que acabou de acontecer”.