Entrevista: Eloah Monteiro, multiartista

1. O título “Agô” tem um significado poderoso em Yorubá, como um pedido de licença. Qual foi o momento ou a inspiração que levou você a escolher esse nome para o EP?

Eu sempre fui muito cuidadosa com o conceito de tudo o que me proponho a fazer na música. E, desta vez, não foi diferente. Há mais ou menos um ano, quando comecei a imaginar um trabalho autoral exclusivamente de samba, queria falar em Yorubá sobre esta nova fase, uma das nossas línguas irmãs. E, para completar, vi pelas paredes e muros um picho que dizia “Agô”, do artista Vaguiner Brás, em pontos muito emblemáticos da cidade: Dique do Tororó, Ladeira dos Galés, Av. Dom João VI… E, quando fui pesquisar seu real significado, pronto! Tinha tudo a ver! É uma palavra que representa muito este trabalho, que chega à cidade da maior percussão do mundo com elegância e muito respeito, pedindo licença a este território sagrado, aos que vieram antes e aos que virão, a todos os voduns e entidades do bem e até mesmo ao próprio samba. Agô pra chegar, Salvador.

2.   Como a ancestralidade e suas vivências como mulher negra baiana influenciaram as composições do EP? Há uma faixa que você considera mais representativa dessa conexão?

Eu tenho uma única fonte de inspiração: o que eu sou e vivo. A escrita das canções é autobiográfica e, nesta perspectiva, ser quem eu sou acaba atravessando tudo, desde a produção executiva, a escolha da equipe e a forma de trabalhar até a forma de cantar, escrever e dizer o que eu sinto por meio da música. Além disso, com certeza existe uma parcela ancestral na minha expressão que vem de outro lugar, outro tempo, e acaba extrapolando o campo mental, o campo da criatividade, que é justamente o que chamamos de ancestralidade. Aquilo que não se explica, como, por exemplo, na música “Feita de Água”, na qual a amiga e mãe de santo de Ilhéus, Hundira Cunha, sonha com os Orixás, escreve um poema e encaminha para que eu musique. Eu crio um samba de roda com a letra dela e a convido para participar falando palavras de força, transformando a música em um amuleto. A equipe, de maioria negra e baiana, ajudou a dar sentido a tudo, foi o chão em cada passo dado e fez ganhar sentido.

3.   A transição do projeto “Samba da Leoah” para a criação de sambas autorais é um marco em sua carreira. Como foi esse processo de respeitar as fronteiras do samba e, ao mesmo tempo, trazer sua identidade para o gênero?

Foi um trabalho árduo e de muita dedicação. Acho que tá na cara que não foi fácil. O samba é um gênero extremamente popular, que já foi muito gravado. É também um gênero muito diverso, então encontrar um eixo para unir minha expressão e minha intenção num trabalho como esse, além de mim, dependeu de ouvidos atentos dos produtores e diretores deste projeto. Profissionais que acreditaram em mim, em primeiro lugar, e que também seguraram minha mão até o fim na missão de traduzir da melhor maneira as músicas e intenções. São eles: Jef Rodrigues (Diretor Artístico), Dandê Bahia (in memoriam – Produtor Musical), Orixafricano (co-produtor musical) e JeisiEkê de Lundu (Diretora Criativa).

4. O EP foi fruto de quase um ano de trabalho. Quais foram os maiores desafios e conquistas durante o processo de produção?

Os maiores desafios são os desafios típicos de um artista interiorano numa cidade como Salvador, né? Então, a dificuldade de ter os contatos. Tendo os contatos, a dificuldade de fazer com que essas pessoas novas façam parte do seu time. Foi o primeiro impacto que eu senti no momento de execução do projeto, né? O primeiro passo. Ainda me sentindo um pouco peixe fora d’água, realizar algo tão grandioso com pessoas desconhecidas. Com relação à equipe profissional, quem vai fazer o quê, essas coisas. E depois, sem sombra de dúvidas, o mais complicado foi perder o produtor musical, um dos principais produtores, que foi Dandê Bahia, que faleceu durante o processo. Isso foi devastador. Em agosto, no começo do mês, ele faleceu, e a gente tinha muita coisa pra gravar ainda. Foi o momento em que me senti mais sozinha. Embora eu tenha tido apoio de algumas pessoas que abraçaram a causa e toparam ajudar, nada se compara a uma pessoa que estava muito afim de realizar o trabalho, tinha muito respeito pela minha obra e fazia isso muito bem. Assim, como produtor, ele estava ali me dirigindo em cada faixa, em cada música, nos propósitos, nas interpretações, ajudando bastante na construção. Então, foi uma sensação de perder o chão mesmo.Sobre as conquistas, as principais conquistas: é um trabalho que eu tenho certeza que vai me levar a lugares muito legais. Já me levou para o Salvador Capital Afro, que foi um evento inesquecível, muito especial pra gente. Foi a primeira vez que cantamos as músicas inéditas do EP.

5.   A diversidade foi um ponto central na equipe de produção do projeto. Como você escolheu as pessoas que participaram e qual foi o impacto dessa diversidade no resultado final?

Eu sou assim na vida. As pessoas que trabalham comigo são meus amigos, né? Eu gosto de estar entre amigos, de ter confiança nas pessoas que estão ao meu lado trabalhando e nos ambientes que frequento. Essas pessoas estão lá também. Eu gosto de me sentir parte das comunidades em que frequento. E a comunidade LGBT é a minha comunidade também, sabe? Então, para além da amizade, tem a competência absurda desses profissionais. Não foi proposital, foi uma coisa muito natural pra mim. É algo que já acontece no meu trabalho há um tempo, de ter as pessoas que eu gosto do trabalho, independente de gênero. Eu gosto de privilegiar pessoas negras, e é algo que eu realmente observo mais.

6.   Você tem colaborações com artistas como Jef Rodriguez, Cabeça Isidoro e Hundira Cunha. Como surgiram essas parcerias e como cada um contribuiu para o projeto?

Jeff também é um amigo, e, no momento em que eu estava pensando em fazer um samba autoral, ele também estava. Ele chegou e me deu essa dica numa festa, assim, como se fosse uma novidade pra mim, e aí a gente deu uma gastada nisso. Quando surgiu a ideia de fazer o disco, ele foi uma das pessoas que teve interesse em fazer a direção artística. E aí colou nesse lugar de diretor artístico, mesmo à distância. Ele foi uma pessoa muito parceira, no sentido de me ajudar a traduzir emoções, interpretações de músicas, etc. Na composição de “Mulher Demais”, que estava incompleta, a gente terminou de compor juntos, por exemplo.

7.   O show de lançamento na Casa do Benin contará com uma banda 100% feminina. Qual a importância dessa escolha para você e para o público?

Salvador tem um movimento de samba de mulher muito lindo, né? Tem muitas mulheres fazendo samba. E, ainda assim, eu vejo muitos eventos de samba com line-up 100% masculina. Então, é uma postura política colocar no palco uma banda 100% feminina, uma line-up 100% feminina. E aí junta com Libriana, que é a DJ que abre a tarde. Então vira algo político mesmo. A importância disso pra mim é grande, porque foi algo que eu sempre quis e nem sempre consegui, né? Nem sempre a gente consegue as parcerias pra fazer isso se tornar realidade, né? Disponibilidade, proporção mesmo. A quantidade de pessoas que tocam violão, por exemplo, dentro dessa totalidade, a maioria é masculina, sem sombra de dúvidas. Então, você tem que realmente querer e pesquisar. E, quando encontrar essas mulheres, elas têm que querer tocar com você também e estarem disponíveis. Então, assim, é uma escolha política, e é uma sorte ter conquistado.

8.   O que o público pode esperar da apresentação ao vivo? Alguma surpresa especial no repertório ou na performance?

A Roda de Conversa com a equipe existe na programação do projeto desde quando ele foi concebido, e a intenção é compartilhar com as mulheres o passo a passo da gravação de um EP por meio da lei de incentivo à cultura. A gente percebe que muitas mulheres têm dificuldade de participar de um edital como esse para fazer um sonho virar realidade, pra fazer o trabalho acontecer. Então, o nosso convite é esse, na roda de conversa. A gente vai estar com algumas pessoas da equipe contando histórias, contando como foi que o EP nasceu e qual foi o passo a passo para a gente chegar até onde chegou, até o resultado final.

9.   Além do show, você também promoverá uma Roda de Conversa na Casa Preta. Como surgiu a ideia desse evento e qual o impacto que espera gerar com ele?

“AGÔ” vem dizer para as pessoas que a ancestralidade, os nossos santos, estão com a gente. A caminhada é coletiva. “AGÔ” vem dizer também a importância de reconhecer o nosso samba, a diversidade dele, quantas formas ele pode falar, quantas línguas ele pode ser traduzido. O EP “AGÔ” vem dizer também que tem mulher fazendo samba na Bahia e lutando por esse espaço. Vem também dizer que é importante respeitar quem chegou antes e pedir licença. Porque o que se constrói aqui nessa cidade… em qualquer construção, não dá para eu chegar aqui tirando onda de que sou sambista do nada. Embora eu me sinta muito sambista, eu acho muito foda ter conseguido construir essa narrativa por meio de um trabalho musical tão especial quanto é o EP “AGÔ”. Então, eu espero que as pessoas escutem muito em momentos de tristeza, de alegria, de festas, de reflexão. Em todos os momentos, quem quiser um samba para acompanhar, um samba que dê força, um samba que empodere também, está o EP agora disponível para esse fim. Eu quero ser luz mesmo nesse mundo por meio da minha música.

10. Suas músicas abordam temas como desigualdade social e espiritualidade. Qual mensagem você gostaria que o público levasse ao ouvir “Agô”?

Cara, isso de ser mãe solo, mulher negra, acaba atravessando bem mais, né, do que a minha sexualidade. Socialmente, eu não vivo tantos impactos com relação à minha sexualidade. Mas eu acredito que represento, né, essa coisa da representatividade. A gente não tem muito controle; apenas é um traço da nossa persona que outras pessoas, em redes sociais, acabam se espelhando e vendo que existe, né, alguém como eu e que é possível pra uma mulher negra, mãe solo, realizar esse trabalho. É possível ser compositora sendo mãe solo, negra, pansexual e trabalhando oito horas por dia numa empresa, gravando nas horas de almoço, à noite, e cuidando, meio à distância, do meu adolescente.  Então, eu tô aberta a ser essa representante. Não é muito o meu foco, não é algo que eu busco ou dou tanta vazão, mas é algo inevitável. Quando as pessoas ouvem as músicas e leem as letras, acaba escapando uma coisa ou outra desse lugar diverso que eu carrego. Acabam aparecendo nas letras porque eu tenho esse traço, né, de fazer músicas que são escrevivências, como diz Conceição Evaristo. Eu escrevo sobre minha vivência. Então, vai ter um momento em que eu vou falar do meu filho, né? Em “Se For Pra Ser”, que é uma música do EP, na letra eu digo: “Olha, eu tenho um menino pra dar de comer, tenho uma família grande pra conviver, você vai querer ou não vai?”. E tem outros milhares de atravessamentos simbólicos, de letra até de ritmo, que deixam bem evidente o fato da minha negritude e da minha conexão com as religiões de matrizes africanas. É isso: é muito evidente, natural, e, enfim, tem um lugar na postura que também traz essa sexualidade diversa e que acaba me colocando em conexão com muitas pessoas trans e homossexuais. Meu público tem muito esse perfil. Eu ainda não consigo desenhar nem delimitar isso, mas, sim, estou aqui pra vocês.

11. Como mulher, mãe solo e pansexual, você carrega uma representatividade importante na música. Como essas identidades se refletem nas letras e na sua trajetória artística?

Sem esse dinheiro, eu não faria nada, porque parceria a gente faz com irmão, com família. Eu não tenho família aqui. Digo família de amigos. Em Ilhéus, posso considerar que tenho famílias de amigos lá. Eu realizo qualquer coisa com o meu público de Ilhéus, mas o público de Salvador ainda está sendo construído. Então, sem o financeiro garantido para essas pessoas, não haveria diálogo algum. Haveria algum diálogo, mas acho muito difícil que a gente chegasse ao patamar que chegou, com a identidade visual que a gente construiu, etc. Enfim, é essencial. Eu, forasteira chegando aqui, sem esse recurso, não aconteceria.

12. O projeto foi contemplado pelos Editais da Paulo Gustavo Bahia. Como esse apoio foi essencial para a realização do EP?

Eu aconselho as pessoas a pararem de reclamar e aprenderem a acessar essas leis, porque elas estão aí para a gente. A Secretaria de Cultura, a Fundação Cultural, todas as operadoras que administram esses recursos que vêm do governo federal, até recursos do próprio Fundo de Cultura da Bahia, são nossos. Houve luta política para conquistar esses recursos. E o que eu vejo, às vezes, na classe artística, é muita reclamação: da burocracia, da papelada. “Ah, porque é muito difícil.” Gente, é difícil mesmo. E não existe dinheiro fácil, e você não vai sair rico de um edital. Porque você vai apenas entender como é realizar um produto cultural profissionalmente. Como isso acontece? Você descobre a partir do momento em que tem um montante de dinheiro maior do que está acostumado para realizar um produto. E aí você vê que realmente gastou tudo, investiu tudo no projeto. Você não sai com dinheiro, sai com um cachê justo pelo que fez, e todo mundo sai com dinheiro justo pelo que fez. Mas ninguém sai rico. Então, assim, é uma oportunidade de investir num produto e fazer um trabalho que tenha uma embalagem profissional, sabe? Que tenha impacto na sociedade justamente pelo fato de ter dinheiro para uma identidade visual bacana, um cenário bacana, uma iluminação bacana, um estúdio profissional, ensaios profissionais. Tudo isso precisa de dinheiro. Então, meu conselho é esse: vamos aprender a acessar esses recursos. “Ah, porque tá pedindo…” Vamos atrás dos papéis. Vamos acessar. Sem dar esse passo, se torna um pouco mais difícil, principalmente pra gente que não trabalha com mainstream, com músicas pop, músicas que o mercado já está de braços abertos querendo vender. Então, a gente precisa desse apoio, sim. Eu geralmente digo isso: se não fosse a lei de incentivo à cultura, eu não seria compositora, ou seria uma compositora tímida, com trabalhos não lançados. Então, acho que é prestar atenção nisso, correr atrás de aprender como acessar. Se não tem saco, se está cansado, tem vários agentes culturais, pessoas formadas, que fazem isso: escrevem um projeto em troca de algum valor, ou, se aprovado, pegam uma porcentagem, e por aí vai.

13. Na Roda de Conversa, você falará sobre políticas públicas de fomento à cultura. Que conselhos daria para artistas que desejam acessar esses recursos?

Então, depois do lançamento do EP, os meus planos para 2024 são continuar me apresentando como Eloah Monteiro, fazendo samba dessa vez. Eu me despeço um pouco da compositora e cantora que canta em barzinho, que canta outros gêneros. Meu objetivo é fazer samba com o meu nome, e agora, com o trabalho lançado, né? Fazer todo sentido nas plataformas de streaming para a persona que estou construindo. Também buscar recursos para o primeiro clipe de uma das músicas do EP “AGÔ”. É um objetivo que eu tenho, algo que quero muito. Estou aberta. Quero muito cantar no Réveillon. Ainda não tenho o contrato fechado, mas é algo que eu gostaria muito. Fiz a Virada em Salvador. “AGÔ” pra chegar em Salvador, e estamos chegando!

14. Após o lançamento de “Agô”, quais são seus planos para 2024? Alguma nova colaboração ou projeto em andamento?

Nós somos o futuro, né? Eu me considero essa pessoa que faz música brasileira contemporânea. E o futuro, sem reverenciar os mais velhos, sem reverenciar quem veio antes, de onde viemos, não vai longe. Então, acredito que o nosso papel é essencial com relação à preservação das tradições culturais afro-brasileiras. Minha intenção tem um lugar de preservação, mas também tem um lugar que eu gosto muito, que é o de ser uma mulher livre. Eu faço jus ao meu papel de fazer música contemporânea que respeita as raízes, mas não acho que seja nenhum crime quem quer desconstruir uma música tradicional, utilizar elementos de uma música tradicional e mesclar com uma música contemporânea, eletrônica. Eu acho que arte é para isso: para fazer a gente pensar, para gerar epifanias, momentos de delírio, de prazer, de alegria, sem pensar muito. Mas, quando tudo isso vem junto no combo, a preservação de algo tão caro pra gente, que precisou de tantas mortes e tanta luta para se preservar, tem outro sabor, né? Eu estou participando de um movimento de resistência. O movimento do samba é um movimento de resistência. Então, eu participo e continuo resistindo aqui, fazendo samba. Isso é muito especial, né? É o meu samba, mas não deixa de ser o samba da Bahia.