Entrevista: Yantó, cantor e compositor
1. Olá, Yantó! Comecemos com o básico. Pode nos contar como surgiu a ideia de subverter a marchinha “Será Que Ele É?” e transformá-la em algo que aborda o desejo e o flerte?
Acho que pra quem é gay, LGBTQIAP+, muitas vezes em que a gente conhece alguém e fica interessado, dependendo do contexto rola aquela dúvida: “será que a tal pessoa é…?” (risos). Então numa das várias vezes em que isso rolou comigo, eu fiz essa conexão, lembrei da marchinha, e pensei: “nossa, isso pode dar uma música legal!”. E aí comecei a brincar com essa imagem, peguei esse mote da marchinha e fiz essa inversão, o que foi bem divertido.
2. A música original, “Será Que Ele É?”, é conhecida por suas conotações homofóbicas. Como você acha que sua versão contribui para desconstruir estigmas e promover a diversidade?
Uma das estratégias mais poderosas pra gente que vive de forma dissidente é fazer apropriações desse tipo. Então quando a gente diz que é viado, que é bixa, que é sapatão, a gente está pegando um termo que durante muito tempo foi usado pra oprimir e se apropriando dele, transformando-o em algo positivo. Sinto que essa brincadeira com a marchinha faz algo parecido. Se antes uma resposta afirmativa para essa pergunta “Será que ele é?” significava algo ruim (ser viado quase sempre foi e ainda é visto como algo ruim), por essa nova perspectiva, passou a ser algo maravilhoso. Ou seja, tomara que ele seja! (risos)
3. O carnaval é uma época festiva e alegre, mas também pode ser polêmico em relação a questões de respeito e inclusão. Como a sua experiência no Bloco Explode Coração influenciou a sua abordagem criativa nesta música?
A experiência de cantar no trio, num bloco tão grande quanto o Explode, é uma oportunidade muito preciosa de ver a festa literalmente a partir de uma outra perspectiva. Lá de cima a gente vê coisas muito diferentes acontecendo ao mesmo tempo, coisas boas e ruins. Mas eu sinto que isso de cantar no carnaval acendeu em mim principalmente um entendimento de como também é possível falar de temas difíceis e polêmicos de forma festiva, com humor e alegria.
4. A canção “Será Que Ele É?” foi composta inicialmente em 2018. Pode compartilhar um pouco sobre como a música evoluiu ao longo dos anos até a sua versão final?
Normalmente sou do tipo de compositor que gosta de ficar fazendo revisões, mexendo, mudando as coisas até chegar de fato em um resultado que eu ache bom. Fico voltando nas músicas durante muito tempo, canto várias vezes, em vários momentos, é quase como montar um quebra-cabeça. Eu fiz inicialmente um refrão, que é exatamente igual ao que é hoje, mas já experimentei versos com outras letras e melodias até chegar em sua forma final, o que aconteceu no começo de 2020.
5. A fusão de elementos eletrônicos e acústicos é notável em sua música. Como você escolhe os elementos sonoros para expressar a mensagem que deseja transmitir?
Faço as escolhas de forma muito experimental, vou testando uma coisa junto com a outra e vendo o que gosto, o que não gosto. De novo, como uma quebra-cabeça, tem uma hora que a coisa se encaixa e parece fazer sentido, no todo, música, letra, arranjo, produção. Tudo a favor da mesma mensagem.
6. Seu visualizer para a música é muito cativante. Como você descreveria a relação entre a performance visual e a música em suas obras?
Obrigado! Eu sou um artista da música e do corpo. Sempre trabalhei com dança ou teatro ao mesmo tempo em que trabalhava com música, até hoje é assim. Então sinto que os processos acabam se alimentando e se conectando muito. Eu entendi muita coisa da minha música enquanto dançava, e vice-versa. Atualmente venho tentando integrar cada vez mais esses universos.
7. Além de “Será Que Ele É?”, você está prestes a lançar o disco “Sítio Arqueológico”. Como essa música se encaixa na narrativa geral do álbum?
Eu tenho pensado muito no conceito de “Sítio Arqueológico” enquanto um retrato do momento social, político e cultural que a gente vive. Eu me pergunto freqüentemente: que sítio arqueológico estamos produzindo hoje? Como no futuro as pessoas vão olhar para esse nosso momento atual? Nesse sentido, sinto que esse processo de ressignificar e subverter obras de arte apontando suas problemáticas e criando novas narrativas talvez seja um marco do nosso tempo. Então dentro da narrativa do álbum, essa e algumas outras canções talvez tenham esse papel, de um retrato desse nosso presente.
8. Em sua trajetória artística, você colaborou com diversos artistas. Pode compartilhar alguma experiência marcante de colaboração que o tenha inspirado?
Há várias, mas eu não poderia deixar de falar sobre a recente colaboração com meu parceiro Tó Brandileone, que assina a produção do disco junto comigo. Fazer o disco junto com o Tó foi um processo de muito aprendizado, de uma troca muito profunda e afetuosa. Ele tem uma maneira muito sofisticada de colaborar. Quando eu cheguei com o disco para trabalharmos juntos eu já tinha muita coisa construída, muita coisa produzida, levantada, muitos caminhos apontados. E ele teve a sensibilidade de respeitar e manter uma identidade e uma força que já estavam ali. Ele não tentou deixar o disco com a cara dele, o que acontece com muitos produtores. E ainda me encorajou a bancar várias escolhas, como por exemplo eu mesmo gravar os pianos, coisa que nunca tinha me sentido confiante de fazer. Ao mesmo tempo, a participação dele fez toda a diferença, ele levou tudo para um outro nível, um outro patamar. O disco não seria o que é sem a colaboração dele. Eu acho isso muito precioso, generoso e sofisticado. E levarei comigo sempre esse exemplo, especialmente quando eu for convidado para colaborar no projeto de uma outra pessoa, isso de conseguir fazer toda a diferença e ao mesmo tempo acreditar e comprar o desejo alheio.
9. Sua música autoral une vários gêneros, incluindo MPB e pop. Como você vê a evolução de sua própria música ao longo de sua carreira?
Eu sinto que isso tem muito a ver com minhas influências. Sempre tive um pé na música mais tradicional brasileira, desses grandes nomes da MPB, e um pé no pop mais eletrônico, experimental. Então ao mesmo tempo em que eu ouvia Elis Regina, eu ouvia Björk e Beyoncé. Durante muito tempo eu achei que eu precisava escolher uma coisa ou outra para fazer no meu trabalho autoral, até que comecei eu mesmo a produzir minhas músicas e essas influências se amalgamaram de forma muito natural, inevitável até. Hoje sinto que cheguei em algo muito particular, e que é a maneira que eu consigo produzir. Não sei se conseguiria fazer diferente.
10. Por fim, Yantó, como você espera que as pessoas se sintam ao ouvir “Será Que Ele É?” e o álbum “Sítio Arqueológico”?
Eu espero que as pessoas se sintam instigadas e curiosas para ouvir mais de uma vez tudo, pois sinto que, literalmente assim como um sítio arqueológico, esse é um trabalho de muitas camadas, muitas referências, reverências. Que elas possam dançar, cantar, se emocionar e se conectar com essa música que eu sinto que não é só minha. É nossa, é do Brasil, é fruto de um legado preciosíssimo ao qual eu tento, com esse disco, dar continuidade.
11. Você acha que o carnaval é apenas sobre fantasias e diversão?
Acho que é sobre viver as fantasias que a gente reprime ao longo do ano, sobre se divertir, sobre se curar, sobre se entregar à coletividade, sobre ocupar espaços nunca ocupados, sobre ampliar limites, sobre ressignificar um monte de coisas. É uma festa extremamente política, do povo e para o povo, mesmo que muitas vezes tentem nos convencer do contrário.
12. Quem é mais confuso, um saxofone ou uma batata?
Uma batata. Até porque a batata ri quando frita. Já o saxofone frita quando chora.
13. Qual é o seu sabor de sorvete favorito para ouvir enquanto cria música?
Boys… quer dizer, pistache.
14. Como você responde às críticas de que sua versão da marchinha poderia ser vista como uma apropriação cultural?
Na verdade ela é uma desapropriação, estou simplesmente pegando algo de volta.
15. Algumas pessoas argumentam que a arte não deve abordar questões de sexualidade e gênero. O que você diria a essas pessoas?
A arte sempre foi sobre gênero e sexualidade, na música por exemplo era sempre um cara cantando sobre o corpo mais lindo mais cheio de graça de uma mulher. Estava tudo ali, gênero e sexualidade, o masculino no lugar dele, o feminino no lugar que deram pra ele, e a sexualidade papai-mamãe básica. A tal ideologia de gênero em sua mais pura forma. O que mudou?! Agora podemos contar outras histórias sem que isso signifique o fim de uma carreira, de uma vida, quiçá.
16. Você acredita que artistas têm a responsabilidade de abordar questões políticas e sociais em sua música?
É uma escolha. Não acho que ninguém seja obrigado a nada. E é especialmente absurdo cobrar que minorias tenham de fazer de tudo um ato político. Nós não somos só uma pauta, nós somos seres humanos complexos como qualquer outra pessoa. Mas como diz um amigo que eu admiro muito, o ator Clayton Nascimento, muitas vezes é inevitável que essas questões venham à tona em nossos trabalhos. Não é possível falar de um amor bonito quando até mesmo o direito de amar é tirado de alguém.