Entrevista: Vanessa Reis, escritora
1. Vanessa, como foi a jornada de escrever “Interseção” e trazer uma protagonista cadeirante para o centro da história?
Em 2019, eu acessei o site Smart Bitches, um buscador online de livros a partir de tropes/clichês românticos, para procurar um ‘enemies to lovers’ com protagonista PCD. Mudei os termos da busca para ‘jovem adulto’ e ‘slow burn’, mas continuava recebendo a mesma resposta: tente novamente, ou talvez você tenha de escrever o seu.
E foi isso que eu fiz, durante o ano de 2020! Interseção nasceu do desejo de ler algo que eu não estava encontrando.
2. O que te inspirou, além a sua condição, a criar uma história que foge dos estereótipos e coloca a personagem Catarina em uma posição de protagonismo?
Tudo começou em querer ler esse tipo de história, mas não encontrar. Quantas são as comédias românticas com protagonistas PCD? Nós, mulheres com deficiência, sempre tivemos de fazer exercícios mentais para nos encaixar nas histórias de amor que consumimos, então por que não passar a escrevê-las? Catarina vem como um lembrete vivo de que todos os corpos podem e merecem ser amados.
3. Você mencionou que sempre quis ler um livro com uma personagem como você, em uma cadeira de rodas. Como foi a experiência de finalmente escrever (e ler ao final) essa história para preencher essa lacuna?
Foi massa finalizar “Interseção” e perceber que eu havia conseguido abordar tudo aquilo que, nos contos que havia escrito anteriormente, ainda não tinha alcançado de forma plena. Perceber detalhes meus (e de tantas outras mulheres com deficiência!) em Catarina foi como receber um abraço; como se sentir vista.
4. A representatividade é um tema central em “Interseção”. Como você acha que a literatura pode contribuir para promover uma narrativa mais inclusiva?
A literatura é uma das melhores formas de abordar variados assuntos e livros com representatividade contribuem para ressignificar conceitos, para trazer um novo ponto de vista para além dos padrões sociais. Eu sou PCD (pessoa com deficiência), escrevo romance e em minhas histórias, as minhas protagonistas têm algum traço que as coloca à margem da corponormatividade porque eu preciso que pessoas como eu se reconheçam em histórias de amor, em finais felizes. Ressignificar a beleza em corpos de mulheres com deficiência é, principalmente, aceitar que a estética não é estática. É contribuir para a construção e a reconstrução da própria identidade como pessoas que podem (e devem!) viver todos os clichês românticos!
5. “Interseção” aborda a corponormatividade de forma marcante. Como você espera que essa abordagem influencie os leitores?
Penso que abordar a diversidade de corpos, de forma tão natural, é o que contribui para que leitores a naturalizem, também. Estar fora dos padrões impostos pela corponormatividade causa o apagamento das mulheres com deficiência e nos reduzir a uma deficiência é nos tornar uma deficiência num corpo, não um corpo que, além de todas as outras coisas, também tem uma deficiência; então eu espero que Catarina contribua para que leitores desmistifiquem as ideias pré-concebidas sobre as PCD.
6. Qual foi a maior dificuldade que você enfrentou ao escrever “Interseção” e como você superou isso?
Um pouco depois da metade da história, eu tive um bloqueio criativo muito forte e passei alguns meses sem escrever uma palavra sequer. Percebi que algumas questões e sentimentos da Catarina eram elementos que doíam em mim e, por este motivo, eu não conseguia evoluir na escrita. Ler “O Caminho do Artista“, da Julia Cameron, foi o que me ajudou a me entender e a acolher estes sentimentos de forma que conseguisse avançar na escrita e, finalmente, finalizar o livro.
7. O livro recebeu críticas positivas de diversos autores. Como foi receber esse reconhecimento pela sua obra?
Confesso que ainda me pergunto se é comigo mesma, rs. Fico extremamente feliz por “Interseção” estar sendo bem recebido pelas pessoas, seja aquelas que escrevem, seja aquelas que amam ler romance. Mas, principalmente, me alegro por saber que mulheres com deficiência estão se reconhecendo na Catarina de uma forma bastante especial, o que me deixa mais feliz ainda!
8. Você foi participar da Bienal do Livro Bahia 2024?
Sim! Oficialmente, “Interseção” fora lançado na Bienal da Bahia e foi inesquecível! O carinho das pessoas, o entusiasmo com a história, o acolhimento do Pedro Rhuas e do Abdi Nazemian, os dois autores que dividiram a mesa comigo… eu ainda não sei colocar em palavras o quanto fiquei feliz e emocionada!
9. Além de escritora, você é servidora pública e bacharela em serviço social. Como essas experiências influenciam sua escrita e suas histórias?
No trabalho, também lido diariamente com as palavras, uma vez que estou responsável técnica pelos projetos sociais do Programa Minha Casa, Minha Vida da minha cidade e, mesmo que sejam vertentes diferentes de escrita, penso que há uma costura em tudo isso (em “Interseção”, por exemplo, emprestei algumas ideias de projetos meus para o trabalho da Catarina). Também, por estar no servidorismo público desde 2015, penso que consegui trabalhar bem alguns elementos do fazer diário na repartição pública, ao trabalhar na história as interações de Catarina e JPS no ambiente de trabalho.
10. O que você espera que os leitores levem consigo após ler “Interseção”?
Antes de tudo, eu espero que as pessoas se divirtam! Espero que os leitores levem consigo o desejo de colocarem mais diversidade de corpos e sotaques em suas estantes, que consumam mais histórias escritas por pessoas com deficiência!
11. Há quem argumente que abordar a deficiência em histórias pode reforçar estigmas e estereótipos. Como você lida com essa perspectiva?
Eu concordo, quando isto diz respeito a uma história com apenas representação porque, estas, flertam com o capacitismo. Pessoas com deficiência existem e merecem viver todos os tipos de histórias, inclusive as que contam o amor romântico. Então, histórias com protagonistas PCD e com uma representatividade bem-feita são, sempre, bem-vindas, porque elas vão conseguir diminuir os estigmas e os estereótipos criados na sociedade.
12. Você já tem planos para futuros livros? Pode compartilhar alguma novidade conosco?
Sim! Apesar de “Interseção” ser o meu primeiro livro publicado de forma tradicional, pela Verus Editora, eu tenho cinco contos e outro romance publicados de forma independente, na Amazon (todos disponíveis no Kindle Unlimited, aliás).
Quanto a futuros livros, fui premiada ano passado no Prêmio Carolina Maria de Jesus, do Ministério da Cultura, com uma história inédita chamada “Camisa Onze”, uma comédia romântica sobre amizade, autodescoberta, relações familiares e futebol feminino. Ainda não tenho previsão de lançamento, mas certamente vem aí!
13. Como você define o estilo único da sua escrita e quais são suas maiores influências literárias?
Eu escuto muito as pessoas dizerem que minha escrita é poética, mesmo contando sobre casualidades do dia a dia ou costurando situações cômicas à narrativa, o que me deixa muito feliz! Como influências literárias, eu sou completamente apaixonada por Clarice Lispector: sua mente, a forma como ela constrói parágrafos e desenrola histórias inteiras de forma muito única, muito dela… é sempre um deleite ler Clarice! Gosto muito como Manoel de Barros e Guimarães Rosa são construtores de palavras, sempre mesclando lógica e lírica, como também amo Jane Austen, a inventora do romance, rs.