Entrevista: Thati Dias, cantora e compositora

1. O que inspirou você a explorar temas tão profundos como ansiedade e depressão em “Soturna”? Como isso influenciou o processo criativo do álbum?

Passar por essas experiências e ser psicóloga foi uma questão pra mim durante muito tempo, mas quando resolvi que o tema pro meu primeiro disco solo me escolheria, eu precisei encarar e abraçar as questões que me afundavam dentro de mim mesma. Foi um processo terapêutico, num momento delicado pro mundo, onde muita gente se queixava pela ausência de saúde mental, em plena pandemia de COVID-19. As pessoas perdiam seus parentes e amigos e precisavam cuidar de si e do outro. Tudo muito frágil. E eu não tava muito diferente disso. Já entendia que a música era meu refúgio, meu lugar pra escoar os sentimentos e onde eu poderia encontrar identificação. Quanto ao processo criativo do álbum, de som à imagem, tudo foi costurado com muita calma, muito tempo, muita parceria e pouco dinheiro. E os sintomas tema foram moldando a atmosfera da produção musical. Eu quis um som com as vozes mais enterradas, sem a necessidade de muita explosão, mas com muita necessidade de transparecer o sentimento de exaustão, de angústia. Fui investigando junto com Diogo Spadaro e Luiz Bento (produtores do disco), e entendendo a mixagem que a gente procurava em algumas faixas da Céu, do Homeshake, do Alfa Mist… assim fomos percebendo onde a gente queria chegar.

2. Podemos dizer que “Soturna” é uma jornada emocional. Como você equilibrou a intensidade das emoções transmitidas nas músicas durante o processo de produção?

Com a ajuda dos produtores musicais foi possível atingir esse lugar de equilíbrio. Por mais “soturno” que seja o álbum, algumas faixas como “Um labirinto em cada pé”, “Pequena África” e a própria  “Soturna” trazem uma harmonia com mais balanço pro álbum.

3. Você mencionou que “Soturna” é uma mistura entre o eletrônico e o orgânico. Como você e os produtores decidiram sobre essa direção sonora?

Acho que essa mistura tá desde a raiz. Desde a minha primeira experiência com homestúdio (com a banda Abufela! em 2016) eu já acompanhava a saga do Diogo Spadaro na investigação de formatos diferentes pra captação. “Como soa um isqueiro num microfone que capta mal os sons mais agudos?”, por exemplo, é o tipo de pergunta que Diogo fica instigado pra investigar durante uma madrugada inteira, experimentando tudo de diferentes jeitos. Ter ele nesse trabalho, assim como em outros, me traz pra essa atmosfera brincante que eu gosto muito. Pra esse trabalho em especial, já estávamos com vontade de inserir samplers, brincar com gravações já antes feitas por nós mesmos até, e acho que deu bom!

4. Com nove faixas inéditas, como foi o processo de seleção do repertório para o álbum? Existe alguma música que tenha um significado especial para você?

Esse é um disco independente e autoral. Com uma só faixa já antes lançada por um artista de fora do nosso círculo (“Um labirinto em cada pé”). A certeza que a gente tinha é de que precisava estar nesse lugar de exaltação do trabalho de quem tá perto. Mas antes de ter esse nome, Soturna seria uma faixa. Eu e Diogo decidimos um dia que eu lançaria um single com cerca de 15 minutos com atravessamentos de poesias e intervenções sonoras sampleadas. O universo hip-hop influenciou bastante essa ideia também. Mas fomos entendendo que uma faixa não caberia no que eu tava desejando, daí a ideia do disco foi desabrochando devagarinho: um single que virou um EP que virou um disco, por que não? Convidamos então o Bento pra produzir junto com a gente, ele já tinha algumas composições que casavam com o tema como “Cidade, cimento e tédio” e “Grotão da Penha”, que virou meu xodó durante um longo período desse processo. Eu e Diogo tbm tínhamos algumas composições, e a faixa “Pequena África” foi feita especialmente pra esse disco. Foi um presente de Diogo e André Severo.

5. Além das influências da MPB, R&B e jazz, quais outras fontes de inspiração você explorou durante a criação de “Soturna”?

O RAP de Black Alien, Sabotage, o trip hop de Massive Attack, o jazz de Alfa Mist, a mistura MPBística de Céu, Juçara Marçal, Tulipa Ruiz, o soul de Jill Scott, o R&B de Erykah Badu… e por aí vai. Muitos discos foram usados como referência de captação, mix e master pra gente.

6. Como foi a experiência de trabalhar com artistas convidados como Juliane Gamboa, Pretidão e Suntizil? Qual foi o papel deles na concepção do álbum?

Pretidão é meu irmão de sangue, tem composições lindas e uma voz que vai do suave até o agressivo. Sempre foi musical, e eu queria muito a presença dele nesse trabalho. Juliane atravessou minha história quando cheguei no Rio de Janeiro, e a identificação com as referências e estilo de voz sempre nos impressionaram. Somos capazes de ficar horas conversando sobre nossas referências musicais, caminhos, composição, poesia… e era outra que eu queria muito que estivesse presente. Calhou dessas duas irmandades estarem na mesma faixa: “Arrebol”. Suntizil é um prodígio e eu ainda não conhecia. Quem deu a ideia dele gravar uma faixa foi o Bento, e foi muito assertivo! Teve tudo a ver com a música “Cidade, cimento e tédio”, que acabou virando uma mistura entre Bento, Suntizil e eu. André Severo é outra pessoa que se achegou durante minha morada na capital RJ e marcou bastante. Tem uma voz linda, composições muito bacanas e foi muito bom ter essa voz presente na última faixa do disco “Pequena África”. Essa é uma composição dele com Diogo, que foi quem deu a ideia de convidá-lo!

7. Você descreveu “Soturna” como uma ode à vulnerabilidade e à autenticidade. Como você acha que os ouvintes podem se conectar com essa autenticidade através da sua música?

Entendendo que viver nesse mundo não é nada fácil, mas estamos aí pra viver, denunciar os abusos diários contra nós mulheres pretas pobres e demais pessoas que estão em situação de vulnerabilidade por fazerem parte das chamadas minorias. Esse disco é político e social. Parte do campo do individual em direção à coletividade como uma ferramenta pra buscar auxílio e solução com outras pessoas. E a mensagem está nas letras, nas poesias, nos clipes, nas fotografias…

8. Além da música, você é conhecida por sua atuação como instrumentista. Como a sua versatilidade instrumental influenciou a sonoridade de “Soturna”?

Acho que nesse trabalho especialmente é a voz que tá no lugar de instrumento principal, sendo investigada, lida e usada. Só na faixa “Silente Oração” que eu gravei o violão que vcs conseguem escutar na primeira parte da música. Mas o ouvido que ditou tudo. Ouvir e entender se rolava ou não. A minha relação com os instrumentos é de constante aprendizagem. Hoje eu toco pandeiro nas rodas de samba e tenho desenvolvido essa técnica, e faço algumas apresentações com formato voz e violão que sempre vão por um caminho de mais suavidade. Procurei trabalhar com pessoas familiarizadas com seus instrumentos. Na faixa “Soturna” por exemplo, eu tive o prazer de convidar o Maurício Libardi, um tecladista incrível, que partiu esse ano, e deixou essa pérola no meu disco. Mais uma vez, a coletivização da obra foi o caminho pra construção desse disco.

9. Você tem uma carreira musical diversificada, desde cantar em bares até fundar bandas e rodas de samba. Como essas experiências moldaram sua jornada artística até este álbum?

Desde que eu decidi trabalhar com a música, eu fui fazendo e aprendendo. Eu sempre quis gravar álbuns, e fui em busca disso na minha vida. Sempre quis ter minha banda e viajar pra fazer shows, e também fui buscar os caminhos que me levariam a ter essas vivências. E a música é um terreno espinhoso, difícil, que precisa de persistência, paciência… Eu vou onde me dá prazer, e vou abrindo mão das experiências que não me dão prazer. Mas experimento tudo e todos os erros e acertos vão virando meu caminho. Me permito experimentar e seguir, ou abdicar.

10. Como você vê a sua evolução artística desde o início da sua carreira até “Soturna”? Quais foram os principais desafios e momentos de crescimento ao longo do caminho?

Minha voz evoluiu, minha experiência de palco, as relações de trabalho amadureceram também. Fui fazendo uns cursos e entendendo como funciona a música no Brasil e fora dele. Os maiores desafios aconteceram nos momentos de solidão, quando precisei resolver coisas relacionadas à produção sozinha, e isso segue acontecendo vez ou outra, mas eu sou cercada de pessoas que fazem Thati Dias ser essa artista hoje. Setorizar ao máximo e confiar no processo contribuiu para minha evolução profissional com certeza.

11. Se “Soturna” fosse uma cor, qual seria e por quê?

Roxo. Por ser melancólica, escurecida… Soturna é uma pessoa presa dentro de si com suas questões, entendendo que tem luz fora que dá esse colorido arroxeado, e que busca alcançar mais cores nesse prisma.

12. Se você pudesse descrever “Soturna” como um sabor de sorvete, qual seria?

Qualquer sabor amargo.

13. Se “Soturna” fosse um animal, que animal seria e por que você escolheria esse?

Talvez um gato arisco. Gato de moita. Desconfiado de tudo e todos.

14. Alguns críticos sugeriram que explorar temas como ansiedade e depressão na música pode ser arriscado. Como você responde a essas críticas?

Não tive contato com esse ponto de vista. Talvez essa crítica tenha a ver com uma possibilidade de não vender muito? Não sei a razão. Mas acredito que a identificação com o tema é primordial pra “dar certo”. E “dar certo” pra mim tem muito mais a ver com a troca, a descoberta do novo, a sublimação – transformação naquilo que dá prazer através da arte. Reverberou, tá lindo. Eu busco isso. 

15. Houve alguma hesitação em lançar um álbum tão emocionalmente carregado em um momento em que muitas pessoas estão lidando com desafios mentais devido à pandemia?

Sim, porém mais uma vez o caminho da coletividade é a minha aposta de vida. E nesse sentido, ter a vivência estreita com a psicologia me dá ferramentas suficientes pra essa aposta. Quando a gente consegue enfrentar nossos medos, angústias, encarando esses sentimentos de frente, sem fugir deles, conseguimos despertar pro que nos limita e consequentemente a gente consegue desenvolver ferramentas pra tentar o novo. Minha aposta em Soturna é essa. Por mais que não seja um trabalho mais pop, dançante, solar, era o assunto que me cabia e com o qual eu me sentia mais à vontade pra cantar e encontrar os caminhos sonoros adequados ao meu pensamento. Fugir disso é que seria o erro.

16. Alguns fãs argumentam que a música deve ser apenas uma forma de entretenimento e escapismo, e não um espaço para explorar questões emocionais profundas. Qual é a sua opinião sobre isso?

Discordo. Música é arte. E arte é vida. Faz parte visitar o fundo do poço às vezes. E tá tudo bem. Ir lá, voltar à superfície, ir pro fundo do poço de novo… A vida é esse movimento doido, doído, prazeroso e circular, e a arte também.