Entrevista: Suely Schimidt, historiadora e escritora

Entrevista: Suely Schimidt, historiadora e escritora

1. Você se lembra do momento em que soube do diagnóstico de síndrome de Down de Laura? Como foi esse dia para você?

Sim, foi no dia seguinte ao seu nascimento, há 33 anos, pelo pediatra, ainda na maternidade. Foi um choque pois esperava o nascimento de uma criança “normal”. 

2. Como foi receber o diagnóstico de autismo severo anos depois?

Esse diagnóstico já era esperado pois seu comportamento era muito diferente de uma criança apenas com Síndrome de Down. Antes desse diagnóstico houveram vários outros ou simplesmente, por alguns profissionais nada era dito  Foi somente na adolescência que o autismo foi admitido pelo seu psiquiatra.

3. Quais foram os maiores desafios que você enfrentou nos primeiros anos de vida de Laura?

Tentar entender seu desenvolvimento muito aquém de uma criança “normal”, mesmo com  estimulações precoces, frequência constante ao pediatra devido infecções respiratórias e ajuda de outros profissionais à medida que o tempo passava.

4. Pode nos contar mais sobre o processo de aceitação e como ele se desenvolveu ao longo do tempo?

De início, a aceitação de que ela nasceu com Síndrome de Down foi muito difícil, até pela forma como a notícia me foi dada, sem qualquer preparo, simplesmente falada pelo pediatra na soleira da porta do quarto. Penso que ele deveria trazer minha filha, juntá-la a mim e, aos poucos, me falar sobre a síndrome. Acredito que esta, seria uma das possíveis formas corretas de dar a notícia. 

5. O que te motivou a escrever “Laura: Uma Maternidade Especial” e compartilhar sua história com o mundo?

Sempre pensei que a sociedade desconhece o que uma família e, especialmente a mãe de uma pessoa com autismo severo vive. Me incomoda saber que as pessoas fazem julgamentos equivocados quando presenciam o comportamento de uma pessoa com autismo e, no caso de Laura, autismo mais Síndrome de Down. Geralmente somos julgadas pela falta de limites aos filhos.

Do mesmo modo, sei que há inúmeras mães na mesma situação e penso que meu relato pode lhes dar um alento ao acreditar que não estão sozinhas. Também penso que para os profissionais que trabalham com essas pessoas pode ser uma ajuda no sentido de entender as famílias das pessoas que atendem. 

6. Como foi a reação da sua família e amigos quando você decidiu publicar o livro?

Muito positiva e de estímulo. Todos consideraram que seria importante tanto para outras mães em situação semelhante, como para profissionais e para a sociedade em geral.

7. Quais são os principais temas que você aborda no livro?

A notícia não esperada, o autismo como coadjuvante, a família e o impacto da separação dos pais, aceitação e rejeição das diferentes instituições que ela participou, a contribuição de pessoas ímpares em momentos de crise e a busca de resposta à pergunta: o que será de minha filha quando eu não estiver mais aqui.

8. Você fala sobre a falta de uma rede de apoio para famílias em situações semelhantes. Como foi essa experiência para você?

Além das escolas, não existe qualquer atenção do poder público para as mães ou famílias em situação semelhante. As mães que não tem apoio de familiares (da minha geração, a maioria é de mães solo), nenhuma ajuda existe. O governo acha que faz muito dando o auxílio BPC Benefício de Prestação Continuada para a PcD (pessoa com deficiência) de famílias extremamente carentes. É um valor tão baixo que, na maioria das vezes, não paga os custos com medicamentos.

9. Pode compartilhar uma das histórias ou momentos mais marcantes que você descreve no livro?

No meu ponto de vista  é uma história comovente e, como autora, acredito que todos os capítulos são importantes e as pessoas podem constatar isso durante a leitura. Entretanto, gosto da descrição de Laura como um ser humano muito especial, com capacidade de encantar as pessoas que dela se aproximam mesmo com todas as dificuldades de relacionamento e manifestações de agressividade. Também  gosto muito da narrativa que faço sobre a participação do irmão de Laura em todo o processo, mesmo tendo nascido apenas um ano e três meses antes dela. Como profissional, criou a ASID – Aliada Social para Inclusão e Diversidade, com o objetivo de assessorar as instituições e sempre esteve muito próximo tanto nos bons momentos, como naqueles de maior dificuldade.

10. Quais foram as suas maiores descobertas ao longo dessa jornada com Laura?

Quando passei a  entender que nada, absolutamente nada, acontece por acaso e tudo na vida é uma questão de merecimento, passei a aceitar o que a vida estava me apresentando e a usar o sofrimento para crescer como ser humano. Laura foi um presente na minha vida e, acredito, na vida das pessoas próximas a ela.

11. Você teve algum momento de dúvida ou arrependimento ao longo dessa trajetória?

Passei por momentos de culpa que, ao longo desses anos, foram sendo atenuados pela compreensão de que, naqueles momentos, eu  não tinha estrutura emocional para agir diferente. As dúvidas são constantes antes das decisões, porém, as mais difíceis são tomadas após muita deliberação. 

12. Como você lida com os estigmas sociais em relação à síndrome de Down e autismo severo?

Muitas vezes fiquei triste e até indignada, porém, penso que as pessoas não têm conhecimento, por isso agem dessa forma.

13. Quais foram as principais dificuldades que você encontrou ao procurar escolas e tratamentos para Laura?

As instituições tinham dificuldade em aceitá-la devido a sua agressividade. Várias daquelas que aceitaram, logo depois romperam o contrato porque alegavam que  não tinham estrutura para atendê-la.Assim, Laura passou por muitas escolas que, mesmo sendo especiais, não tinham estrutura e, algumas, boa vontade para atendê-la. As escolas, de um modo geral, só tem uma programação que é pedagógica. Muito pouco ou nada diferenciado é oferecido para as crianças que não conseguem ser alfabetizadas.   A cada início de ano o desafio de encontrar uma escola era grande.

Em relação aos tratamentos, com exceção daqueles nos primeiros anos de vida, sempre foram medicamentosos e aí era a tentativa erro e acerto.

14.  Como a pandemia de Covid-19 afetou vocês e a busca por suporte e tratamento para Laura?

A instituição que ela frequentava na época, fazia muitos trabalhos online com os assistidos, além de dar suporte às famílias. Nesse período, por orientação do psicólogo da instituição, estabeleci uma rotina em casa com ela que deu bastante resultado, com exercício físico  e outras atividades da vida diária, mas consegui fazer isso porque já estava aposentada. Muitas outras mães passaram por dificuldades e desafios muito maiores.

15. Você acha que a sociedade está preparada para incluir pessoas com deficiência?

Não, nem mesmo as escolas, especialmente as públicas, possuem estrutura para acolher e trabalhar com as pessoas com deficiência cognitiva ou autismo.

17. Como você responde às críticas sobre a criação de instituições especializadas para pessoas com deficiência?

As pessoas não têm noção da vida de uma pessoa com espectro autista severo. A teoria é linda, mas a prática pode se tornar impraticável na grande maioria dessas situações. As pessoas que criticam essas instituições desconhecem a realidade, tanto das famílias quanto das instituições. Falta conhecimento e empatia pela dor do outro.

18. Você acredita que as políticas públicas para pessoas com deficiência são adequadas no Brasil?

Há uma tentativa de acertar, porém há necessidade de os especialistas conviverem por um período com essas pessoas ou famílias. Sabemos que há pessoas com transtorno do desenvolvimento mental leve, mas há aqueles com deficiências muito graves. Assim como o espectro autista apresenta uma variação enorme no comportamento e no grau de suporte e, por isso,  não podem ter todos os mesmos tratamentos. Embora todos tenham um potencial a ser desenvolvido e devem ter oportunidades para isso, os meios não podem ser iguais. 

19. Como sua formação em História e Nutrição te ajudou a enfrentar os desafios com Laura?

Acredito que não foi minha formação acadêmica que me ajudou a enfrentar os maiores desafios com Laura e sim, a procura de conhecimentos filosóficos que me ajudaram a aceitar, a agradecer  e a tentar colher resultados das dificuldades vividas.

20. Como a experiência de criar Laura influenciou sua carreira acadêmica e profissional?

Minha carreira acadêmica e profissional  me ajudou a manter o equilíbrio e a saúde mental para cuidar de Laura. Então, foi o inverso, meu trabalho é que contribuiu para que tivesse energia e me sentisse estimulada a sempre fazer o melhor por ela. Acredito que não teria sido uma mãe melhor se tivesse me dedicado exclusivamente a ela.

21. Quais são seus próximos projetos e objetivos profissionais?

Penso em estimular a criação de Moradias Assistidas para Pessoas com Deficiência Cognitiva ou usando o termo que hoje parece ser politicamente correto, para pessoas com transtornos do desenvolvimento mental. Acredito que a existência dessas instituições é fundamental especialmente quando os pais não tem mais condições de conviver com elas ou quando eles, os pais,  não estiverem mais aqui. Esta é uma realidade que não há como negar. Entretanto, não há interesse político na sua realização. Infelizmente, todo o empenho da sociedade está voltado para as crianças com deficiência, esquecendo-se de que elas se tornam adultos e idosos. E o que existe, nesse sentido, para atendê-las? Algumas instituições particulares, porém inacessíveis para famílias com condições econômicas precárias.

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