Entrevista: Pedro Mendes Levier, jornalista e fotógrafo

Entrevista: Pedro Mendes Levier, jornalista e fotógrafo

1. Olá, Pedro Mendes Levier! Podemos começar falando sobre a inspiração por trás da sua exposição “Entre Fronteiras”? O que o motivou a documentar a jornada dos migrantes em busca de refúgio?

Em 2019, voltava a crescer uma repressão muito grande, em algumas fronteiras de países da Europa, contra migrantes e pessoas em busca de refúgio. Acredito que essa jornada de milhares de pessoas em busca apenas de um lugar para viver com dignidade, já é algo que merece ser documentado e contado. Mas nessa época, alguns países, como a Croácia, mantinham uma repressão mais forte, com diversos migrantes sendo agredidos, tendo seus celulares e pertences quebrados ou roubados e mandados de volta. Na fronteira com a Bósnia, foi se formando um campo de refugiados improvisado no meio da mata, no lado bósnio. Como a repressão era forte, os migrantes não conseguiam continuar o seu caminho, eram jogados de volta e começaram a se acumular nessa região. Até que o inverno chegou. Quase mil pessoas vivendo em tendas, sem acesso a água e eletricidade, confinadas a enfrentar a neve e o frio com a própria sorte. O que me motivou a começar esse trabalho foram as pessoas que estavam nesse campo, chamado de Vučjak. Contar suas histórias e mostrar o que enfrentavam deu início a esse trabalho.

2. Como foi a sua experiência ao fotografar em regiões fronteiriças do Espaço Schengen durante os anos de 2019 e 2020? Quais desafios você enfrentou ao capturar essas imagens?

Essas rotas migratórias tendem a evitar a passagem por locais mais movimentados, logo, na maioria das vezes, são regiões muito rurais. Não posso dizer que enfrentei grandes desafios, em todos os lugares, tanto os locais quanto os migrantes me acolheram muito bem. Na verdade, todos se surpreendiam por eu ser do Brasil, perguntavam o que estava fazendo por lá. Eles estavam acostumados a encontrar fotógrafos e jornalistas da Europa, mas do Brasil, era sempre uma grande surpresa, seja pros guardas fronteiriços, pros migrantes ou para o morador local. 

Foi uma experiência dura, pelas histórias que cada pessoa carrega, por presenciar o dia a dia que muitos enfrentavam, e também uma experiência que traz muito aprendizado por ver tanta força e esperança em cada uma das pessoas que conheci. 

3. Em seu trabalho, você menciona o termo “O Jogo” usado pelos migrantes para se referirem ao momento de cruzar fronteiras. Pode compartilhar algumas histórias ou momentos marcantes que testemunhou durante essas travessias?

Me lembro muito de quatro amigos da Síria que conheci perto do campo de Moria, na Grécia. Eles foram embora do campo porque um dos amigos não aguentava mais ficar confinado lá. Ele se mutilava, cortava os braços, para tentar aguentar a dor psicológica da perda de familiares na Síria e de estar vivendo ali dentro nas condições precárias do local. Se faltava atendimento médico básico para os migrantes, imagine então atendimento psiquiátrico? Era inexistente. Os amigos, já sem saber o que fazer, decidiram ir embora do campo para tentar sair da ilha e chegar até o continente. Os conheci na madrugada em que estavam indo tentar embarcar clandestinamente em um navio. O plano era nadarem até o navio no porto, escalarem até conseguir entrar e viajarem escondidos até Atenas. De lá, continuariam viagem, a meta era chegar na França ou Inglaterra. Não sei porque, mas lembro da união desses quatro amigos até hoje. 

4. Você visitou o campo de refugiados Vučjak na Bósnia, onde as condições eram precárias. Como foi a sua interação com as pessoas que estavam vivendo lá? Há alguma história específica que gostaria de destacar?

Quando cheguei em Vučjak, era o quinto dia de uma greve de fome imposta por uma parte dos migrantes para reclamar da falta de acesso a água e energia. O campo era praticamente dividido em 70% afegãos, 20% de migrantes de Bangladesh e 10% de outros países. Os afegãos afirmavam que não queriam fazer greve de fome, mas que se viam obrigados porque os migrantes de Bangladesh mandavam no local – controlavam o pouco de acesso a energia elétrica, vendiam cigarros e produtos básicos comprados na cidade mais próxima e ditavam “as regras” do local. Nesse dia, as autoridades da Bósnia decidiram acabar com a greve de fome. A Cruz Vermelha trouxe alimentação para todos do local, mas a distribuição não começou por quase uns 30 minutos – foi preciso haver uma negociação entre pessoas da ONG, autoridades locais e líderes dos migrantes de Bangladesh, para que deixassem os outros comerem. Eles reivindicavam a melhoria do campo, mas os migrantes afegãos diziam que, na verdade, eles queriam a chegada de água e energia elétrica, para poderem vender esses serviços também. A situação não durou muito mais, cerca de 6 dias depois, as autoridades decidiram fechar por completo o local e transferiram todos para uma base militar desativada em Sarajevo, longe da fronteira com a Croácia. 

5. Em contraste, você também mencionou o acampamento de trânsito de Tabanovce na Macedônia do Norte, onde os migrantes recebiam atendimento médico. Como você vê a diferença no tratamento dos migrantes em diferentes regiões?

É preciso entender que cada local tem a sua particularidade, mas no geral, as pessoas dessas regiões de início recebem bem os migrantes que estão em busca de refúgio. Os problemas começam a acontecer quando essas pessoas começam a serem impedidas de seguirem em frente e se acumulam em regiões que não estão preparadas para um grande acúmulo de pessoas, como a ilha de Lesbos, por exemplo. 

6. Você esteve no Campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, antes do incêndio que o destruiu. Pode compartilhar suas impressões sobre a situação lá naquele momento e como a crise de refugiados estava afetando a ilha?

Quando fui para Lesbos, a ilha estava em ebulição. Moria era pra ser uma solução temporária, mas passou a abrigar todos os migrantes que ali chegavam. O governo grego, a pedido da União Europeia, fazia de tudo pra impedir essas pessoas de seguirem viagem até o continente. Então, ao longo de poucos anos, Moria passou de um lugar construído para abrigar 2800 pessoas a um amontoado de tendas superlotadas, com mais de 20 mil migrantes, entre homens, mulheres e crianças. O fornecimento de água só funcionava por algumas vezes durante o dia e o acesso a higiene básica e saúde era muito comprometido. Moria começou como o pequeno campo, mas se expandiu para fora das grades, na região ao redor que ficou conhecida como “selva.” Mas tanto foram quanto dentro, era muito violento à noite, com diversos relatos de roubos e estupros. 

E essa quantidades de pessoas também afetou os moradores da ilha. Afinal, a vida deles mudou com a chegada ininterrupta dos botes com migrantes vindos da Turquia. Quando visitei Lesbos, os moradores estavam não apenas protestando contra o governo grego por manter os migrantes ali, mas também estavam sendo muito violentos contra as ONGs e contra os jornalistas. 

7. Sabemos que jornalistas e fotógrafos enfrentaram desafios para acessar certas áreas durante esse período. Como você lidou com as restrições e a resistência ao seu trabalho?

Na maioria dessas regiões, tinha a curiosidade por saber o que eu estava fazendo ali sendo do Brasil. Claro que, dependendo da interação que havia, eu mudava o tópico da minha visita ao local. Por vezes dizia que estava fotografando a natureza, como uma vez na Bósnia, disse que fui até lá atrás de fotos do rio Una. E isso abriu um sorriso e iniciou uma calorosa conversa sobre a região. 

Mas teve um momento na Grécia, na Ilha de Lesbos, realmente mais problemático. Por causa da tensão dos moradores com ONGs e também com jornalistas, lá eu estava acompanhado de um colega grego, também fotógrafo. Apesar da ilha ser um balneário agitado no verão e o inglês ser compreendido por todos, parecia mais sensato ter alguém que fosse, pelo menos, do mesmo país. E ainda bem que eu não estava sozinho. Dois dias antes de chegar, cidadãos locais bateram em um fotojornalista alemão e o jogaram dentro do mar com todo seu equipamento. No dia que cheguei, a caminho de Moria, passávamos por dentro da vila local. Eram ruas estreitas e ao dobrar uma curva, os moradores fecharam o caminho a frente e também por onde viemos. Com pedaços de pau, ferros e pedras nas mãos, queriam saber quem éramos e o que estávamos fazendo ali. E como foi ótimo para eles, ter outro grego pra conversar. Já ficaram mais tranquilos, meu amigo falou que eu era do Brasil o que já aumentava a curiosidade. A tensão continuou por uns 5 minutos de conversa, onde eu não tinha a mínima ideia do que era dito. Não nos deixaram passar, mas deixaram darmos meia volta e voltarmos sem nenhum problema maior. 

8. Falando sobre sua carreira, você passou de redator e diretor de propaganda para um fotojornalista de renome internacional. Como essa transição aconteceu e o que a fotografia significa para você?

Sempre construí narrativas visuais desde criança. A fotografia nessa época era um mundo mágico, mas de adultos. As imagens e historias que construía na cabeça, cresceram e me levaram ao trabalho em propaganda. Mas as historias reais, do mundo real, sempre me motivavam mais, e aí a mudança pra retratar a realidade veio quase como uma imposição. Acredito que a fotografia representa tanto esse mundo lúdico que desperta a imaginação em uma criança, como o mundo real que precisa ser mostrado e contado, que não pode ficar escondido. E, cada vez mais, acredito que não há nada mais incrível, fantástico, triste, alegre, forte e precioso do que a realidade. 

9. Carlos Bertão, o curador da exposição, desempenhou um papel importante em trazer sua obra ao público. Como foi a colaboração com ele e como suas visões artísticas se alinharam?

Colaborar com o Carlos e também com o Alê Teixeira, que fez o design expositório e de iluminação, foi essencial. Carlos ajudou a enxergar diversas imagens com um olhar diferente do meu, ajudando a escolher fotos que ressignificaram essas jornadas. E o Alê por construir uma narrativa que ampliou ainda mais o poder dessas imagens e dessas historias. 

10. Por fim, podemos discutir o impacto que você espera que a exposição “Entre Fronteiras” tenha sobre os visitantes e a mensagem que deseja transmitir através das suas fotografias?

O impacto espero que seja o mais sincero e honesto pra cada um. E a mensagem que espero transmitir, é lembrar da força, luta e, principalmente, esperança que cada pessoa em busca de refúgio tem. Por mais que tenham enfrentado as piores e mais horríveis situações, em todas elas você encontra esperança. 

marramaqueadmin