Entrevista: Pedro Iaco, cantor e compositor

1. Pedro, Sangria é um disco visceral, que mergulha em temas como renascimento, caos e transcendência. De onde partiu o impulso criativo para esse trabalho?
Do fim do mundo: o mundo que conhecíamos acabou com a pandemia. Agora começa uma outra história, uma reencarnação tanto pro planeta, pra cada um de nós que sobreviveu e para o Brasil
2. O álbum tem uma estrutura quase narrativa, com começo, meio e fim. Foi pensado como uma espécie de “jornada” emocional e espiritual?
Pensamos inicialmente em criar o álbum como uma travessia sem início ou fim, até mesmo sem separação entre as faixas. Acabamos indo por outro caminho, mas o convite é para o mergulho em outra dimensão. Isso mantém o espírito de continuidade entre as esferas, mesmo que com paisagens totalmente diferentes nas ambientações, vocalizacões e instrumentações. É a multiplicidade criando singularidade. De certa forma o disco começa na Sangria, que é o desencarne carnal e termina no salto para além da vida, em um renascimento no Vôo do Espírito Livre
3. A canção “Sangria”, que abre o disco, tem um caráter de manifesto. Qual o simbolismo dessa faixa para você, especialmente nesse momento histórico?
Realmente é uma bandeira: o hino de um país que ainda não nasceu. Meu sonho é a recriação do Brasil, a fundação de um novo território cuja lei seja a lei da natureza. Um Brasil renascido por Tupã, descolonizado, livre dos cordões umbilicais que o prendem a estruturas mortas. Acho que em um futuro o mundo vai se livrar do conceito de país. Mas antes o Brasil precisa reencarnar: Sangria nasce disso tudo, é uma homenagem às vítimas da pandemia. A letra imagina um coral dos que se foram cantando a plenos pulmões em nome de suas vidas perdidas, mas principalmente das novas vidas que nascerão: “Somos enfim ponto de partida, a cada um de nós que tomba dez milhões virão.”
4. Como foi trabalhar com nomes tão diversos — de Hansi Kürsch e Marcus Siepen a André MehMoonvowElodie Bouny — e conciliar influências tão distintas em um só trabalho?
Um privilégio absoluto. Como visitar planetas de um mesmo universo, ou até mesmo de universos diferentes. Uma verdadeira máquina do tempo da pré-história ao futuro pós-humano, do barro ao milagre da vertigem galáctica. O que uniu tudo foi o Amor mesmo: à verdade, à arte e à vida
5. Em faixas como “Valsa do Apocalipse” e “Moonvow”, há um uso muito particular da tensão e da escuridão. Que tipo de reflexão você queria provocar nesses momentos do disco?
O disco é uma conjunção de luz & sombra. Nos momentos escuros, vamos realmente pro blackout. Moonvow é talvez a música mais escura do disco. Não só é noturna, espectral, uma valsa lunar como parece que estamos entrando em uma floresta com uma vela nas mãos. Uivos surgem na escuridão, vaga-lumes riscam o breu e galhos de árvores roçam nos seus braços. De repente, uma clareira e um lobo gigantesco…. WOW!
A Valsa do Apocalipse é uma sinfonia oficial, um réquiem do Planeta Terra e mostra que a vida ressurge ali mesmo onde aparentemente termina. É a ponte do encontro primeiro e último da elementaridade Africana – a origem de tudo – ao arcabouço da erudição europeia – cravo e vozes líricas. É o contato da civilização com ela mesma, por tempos diferentes em uma mesma obra. É uma síntese de tudo e talvez o ponto crucial do trabalho, no sentido da complexidade e de ser um buraco negro que engole tudo e ao mesmo tempo cospe toda a vida em gestação.
“Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinza?”
Nietzsche
6. Você menciona que enxerga cores enquanto canta. Essa sinestesia influencia a construção musical ou a escolha de timbres/arranjos?
Sim, pois essa paleta interna me guia na escolha das notas e das melodias. É como se houvesse um quadro sendo pintado em tempo real a todo momento ao mesmo tempo que a música soa. No fundo, pra mim, é tudo cor. A música é também um fenômeno visual.
7. O disco também é marcado por raízes profundas: há menções à ancestralidade brasileira e à formação do país. Qual a importância dessas referências em sua música hoje?
Acho que a tarefa da nossa geração é a descolonização do corpo, dos valores, dos costumes, da morte, da vida, do espírito e também do Brasil.
Isso significa uma reconciliação profunda com a nossa ancestralidade indígena. É por isso que o disco termina onde tudo começa, na música dedicada aos povos originários que fala do encontro dos continentes. Será que o Brasil existe de fato ou é só um nome que serve como uma camisa de força, forçando a ideia de que existe contorno pra algo que é infinito?
A saída é pela terra, como diz Zé Celso.
A história do Brasil o próprio Brasil desconhece, e isso vale pra história da música brasileira. Existem compositores amazônicos que a história oficial da música brasileira ignora. Descolonizar a nossa própria história significa conhecer o país verdadeiramente, sair das nossas zonas de conforto e ir para a floresta, conhecer lugares remotos (dentro & fora de nós) e explorar a voz e os instrumentos para além das zonas conhecidas.
Acordar desse transe da mesmice e despertar para uma experiência sacro-profana que faz a gente olhar o mundo com olhos virginais
8. Como foi trabalhar ao lado da Elodie Bouny na produção e nos arranjos do álbum? O que essa parceria trouxe de novo para o seu processo criativo?
A Elodie é dotada de uma intuição absoluta e um conhecimento infinito. Ela é a mãe do disco. Foi uma complementaridade orgânica criar com ela e ser criado por ela também. Ela não tem limites ou medo de se jogar de cabeça no deconhecido: ela se jogou lá dentro e voltou mais ela mesma ainda. Acho que as músicas foram pro limite e cada uma atingiu um ponto de metamorfose a partir dos arranjos e criações que fizemos. Foi um grande laboratório vanguardista.
9. O disco foi majoritariamente composto durante a pandemia. Como esse período afetou sua relação com a música e com sua própria criação artística?
Acho que a pandemia ensinou a todos nós que música é medicina: fomos salvos pela arte durante o isolamento. E isso pra mim ensinou que não basta mais, em um mundo cujas estruturas estão caindo aos pedaços, subir a um palco com a única intenção de tocar bem e fazer o mesmo de sempre. A música, como diz Bobby McFerrin, é um fenômeno espiritual – e carnal ao mesmo tempo. Ou seja, a potência criativa do ser humano é infinita, e já chega da gente achar que basta fazer ‘bem’ o que sabe pra ganhar aplausos ou reconhecimento ou qualquer tipo de aval. A arte é instrumento revolucionário por excelência.
Isso passa por libertarmos definitamente toda criação da ideia da arte como produto e instrumento mercadológico. Algoritmo é armadilha.
Mû Mbana, cantor da Guiné Bissau:
“Sinto que hoje a humanidade precisa de um tipo de integridade. Nós, como músicos, temos responsabilidades para que a humanidade seja verdadeira e consciente do significa a música. Há um poder curador na música e precisamos usá-lo conscientemente para curarmos a nós mesmos, aos outros e ao nosso planeta. Em nosso momento histórico, a humanidade necessita deste elemento como uma consciência medicinal. É daí que a música parte. Não usá-la apenas como uma experiência em que você se apresenta para as pessoas se divertirem. Para além disso, é sobre curar energeticamente – o planeta e a humanidade – e acabarmos com as mentiras. Nossas preocupações hoje são estas: ser verdadeiro na música e chegar nas pessoas através do movimento e não através do fascínio visual com as luzes e toda a parafernália do palco. Essa é a transformação mais importante que estamos atravessando agora. Como pode a música ser útil para a saúde pública?”
10. Por fim, Sangria é, como você diz, um grito de liberdade. O que você espera que o público sinta ao ouvir esse disco – especialmente nos tempos que vivemos?
Que o sonho é uma realidade coroada.