Entrevista: Natasha Durski, cantora e compositora

1. “Corpo no Mundo // Corpo que Habito” é um álbum-conceito muito intrigante. Pode nos contar mais sobre a inspiração por trás desse projeto e como ele se relaciona com sua experiência pessoal?
Eu sempre fui bastante fã de ouvir e construir álbuns em que as faixas se comunicam umas com as outras. No álbum “Dawn”, da minha antiga banda The Shorts, eu já havia flertado com isso, só que lá rola mais uma coisa de easter eggs que correlacionam as músicas e a ideia de ter uma introdução, interlúdio e fim, que é algo que eu também gosto de brincar quando componho. Eu acho que a inspiração vem de muitas coisas, desde artistas cujo trabalho envolve esse aspecto mais conceitual, como Björk por exemplo, até coisas do meu dia a dia, minhas visões sobre o mundo e a sociedade. Eu queria trazer um álbum que falasse sobre as experiências múltiplas que nos fazem humanos, desde olhares intensos que acendem a gente por dentro, até a vontade de querer desistir de tudo, o entendimento da morte e do luto e dos caminhos de impermanências que travamos durante nossa jornada, até ver o mundo em colapso e se sentir impotente diante das coisas, mas com uma vontade de transformação que não impede de lutar. O álbum traz tudo isso porque, além de todos esses temas poderem conversar com qualquer um, eles também se relacionam com as minhas experiências pessoais no sentir e no entender todos esses processos que também me tornam quem eu sou. Acho que navegar profundamente dentro dessas sensações e desses questionamentos é algo que move esse álbum, e por isso também é tão importante nele o trabalho com diversas ambiências e atmosferas. É um convite a adentrar esse universo.
2. O álbum abrange uma variedade de gêneros musicais, desde synthwave até shoegaze. Como você conseguiu fundir esses elementos tão distintos em um trabalho coeso?
Eu acredito que possa ter a ver com o fato de eu ser muito consciente sobre o meu fazer musical. Acho que quando a gente sabe o que quer fazer e pra onde quer ir, a gente consegue criar relações entre coisas que aparentemente podem não se conectar. Eu também sou uma ouvinte assídua de música. Gosto de música para além de gêneros, gosto de pesquisar música, nunca me prendo apenas ao que mais me agrada. Meus amigos brincam que eu sou uma biblioteca sonora ambulante. Acredito também que quando a gente ouve bastante música e compõe bastante a gente consegue decifrar novos caminhos. Nesse álbum, eu quis juntar um pouquinho de alguns dos meus gêneros musicais preferidos, e acho que entender as atmosferas que eu queria criar com as músicas ajudou a amarrar as diferentes influências musicais. Tem o fato também de que esse álbum foi feito de maneira muito cuidadosa. Foram 3 anos entre composição, desenvolvimento do conceito, produção, gravação e mixagem/masterização. Tive tempo pra explorar diversas ideias, testar coisas, experimentar mesmo, e ouvir minhas referências com atenção. É a maneira que eu mais gosto de trabalhar, com tempo, sem me pressionar a lançar as coisas.
3. Uma das músicas, “Tonight,” fala sobre viver o momento presente. Como a música e a dança influenciaram sua criatividade durante a pandemia?
Eu fiquei muito tempo sozinha durante a pandemia. Como eu moro sozinha só com minha gatinha Chantal, e como eu sou uma profissional autônoma de uma área que parou quase que completamente durante esse período, eu tive que achar formas, comigo mesma, de aguentar o tranco, já que eu escolhi ser consciente e fiz o isolamento durante todos os anos de pandemia de maneira muito estrita. Uma das formas que eu encontrei de conseguir aliviar tudo foi dançando. Eu ligava uma luz de cromoterapia na sala, apagava as demais luzes, colocava música no meu fone e ficava dançando por horas as minhas músicas favoritas. Acredito que dançar é uma expressão humana muito forte. Traz paz, alívio, diversão, mexe com a gente como um todo. E dançar sozinha, sobretudo, é um exercício enorme de conexão consigo mesma. Com a dança eu conseguia extravasar coisas que me fizeram lidar melhor com todo o resto, e dar espaço pra não surtar, que, por sua vez, abria caminho pra exercer a criatividade sem ficar apenas preocupada e ansiosa com tudo que tava rolando. Naquele momento, aquilo era meu presente. Estar em casa sozinha pelo menos 28 dias por mês, sem grana entrando, racionando o que comer pra poder de pagar o que dava de boletos. Não havia tanto entretenimento, mas tinha meus instrumentos em volta de mim e uma infinidade de pensamentos pra lidar, mapear e expressar, e então eu passei boa parte desses dias sentada no chão do meu estúdio caseiro tocando e experimentando sons, às vezes passando horas a fio na frente do sintetizador apenas pela brisa de tocar. A música e a arte me salvaram nesse momento, como em muitos outros da minha vida.
4. Se você pudesse escolher uma única faixa do álbum para descrever sua personalidade, qual seria?
Esse álbum como um todo traz várias facetas de mim mesma. Como eu sou uma pessoa que faz muitas coisas diferentes e tem uma vida bem plural, acho difícil escolher uma música que descreva a minha personalidade, pois eu sou meio camaleônica – tô sempre querendo fazer uma coisa diferente, não tenho medo de mudar. Mas, se for pra falar uma, eu diria que “Existo” cumpre esse lugar de entregar de maneira muito íntima os dilemas que habitam a profundidade que é ser e submergir no abismo interno que me forma, já que além de ser naturalmente questionadora sobre o mundo, também sou muito questionadora comigo mesma, e já tive que lutar e muito pra não me esquecer no caminho. Nessa música eu também faço um intertexto com o canto fazer eu não desistir de mim, e acho que isso se relaciona com o que disse na pergunta anterior sobre a música ser o que me salva há muito tempo nas adversidades da vida.
5. Qual é o lugar mais inusitado onde você já encontrou inspiração para compor uma música?
Olha, não sei se seria o mais inusitado, porque o mar é de uma inspiração infinita, mas com certeza essa foi uma das experiências mais belas que já tive de inspiração pra composição: eu estava na praia, à noite, com algumas amigas e estávamos sentadas em umas espreguiçadeiras na beira-mar bebendo uma cerveja à luz de velas. Em determinado momento eu fiquei meio hipnotizada pelos movimentos das ondas chegando até a areia e voltando, e me veio na cabeça que era como se a barba de Netuno/Poseidon deitasse na areia. A partir daí eu escrevi a primeira parte da letra de “Vivid Vision” da The Shorts, que diz: “Venha e olhe as estrelas enquanto a barba de Netuno deita na areia”, que meio que é um convite a ter essa mesma experiência que eu tive ao ficar observando o mar nessa noite estrelada ao lado de pessoas muito agradáveis.
6. Você mencionou a influência de David Lynch em sua música “Lynchiana”. Se pudesse fazer uma trilha sonora para um filme, que tipo de filme seria e qual seria o tema central?
É interessante você fazer essa pergunta, já que tenho bastante interesse em trabalhar com trilha sonora. Como eu já trabalho com cinema há muitos anos e minha formação acadêmica é em Cinema e Vídeo, estou sempre de alguma forma inserida nesse meio (inclusive estou na equipe de um longa-metragem durante esse mês todo). Acho que eu gostaria muito de fazer uma trilha pra um filme que cruzasse drama, suspense, sci-fi e surrealismo. Explorar os synths a la Giorgio Moroder, Vangelis e Wendy Carlos e misturar com minhas guitarrinhas atmoféricas numa história sobre um ser diferente que precisa se adaptar à vida na terra e vive seus próprios dramas mundanos enquanto aprende como a gente se relaciona e reinterpreta sua própria forma de vida no local de onde veio, uma coisa meio um outsider que se encontra justamente ao experienciar vivências totalmente diferentes das suas e acaba por ressignificar sua própria relação com o que chama de lar. Brisa total haha
7. Você já teve uma carreira musical sólida com a banda The Shorts. Como FERALKAT difere dessa experiência e o que a motivou a embarcar nessa jornada solo?
Eu acredito que as duas perguntas podem se responder de maneira conjunta: a FERALKAT surgiu do meu desejo de explorar mais as sonoridades e as ideias que eu tinha interesse em desenvolver, ideias da minha cabeça que eu achava que não cabiam na Shorts, uma vez que o nosso trabalho lá era muito colaborativo e eu não queria que a gente perdesse essa verve da jam e do trabalho conjunto pra explorar apenas o que estava na minha cabeça. Eu gostava muito do que eu fazia por lá, mas tinham muito mais coisas que eu estava afim de trabalhar e achei que ter um projeto solo seria um melhor caminho pra que eu tivesse essa liberdade de criação sem interferir no nosso processo enquanto banda. Acabou que nesse meio tempo a Shorts entrou em hiato, e então eu comecei a me debruçar mais a fundo no meu trabalho como FERALKAT. Embarcar de cabeça na FERALKAT foi algo que foi acontecendo de maneira mais natural do que planejada, e aos poucos esse projeto foi se tornando o principal trabalho musical que venho desenvolvendo ao longo dos últimos anos. Pra mim o principal é o fazer musical. Mais do que lançar algo, eu preciso estar alinhada completamente com o que estou fazendo e acredito, pois gosto de fazer música de maneira sincera. Não é a minha maior pretensão ser a artista mais ouvida de todas, até porque acho que essa coisa de números acaba atrapalhando a experiência do ouvir pura e simplesmente por gostar de música. Óbvio que quando lançamos algo, queremos ser ouvidos, mas o que eu realmente espero é que o eu faça seja verdadeiro o suficiente pra que chegue nas pessoas da maneira com que esses sons devem chegar, com a música por si só sendo o principal motivo disso tudo.
8. Você é uma artista visual talentosa além de músico. Como a arte visual se integra com sua música? Existe uma mensagem específica que você quer transmitir por meio de ambas as formas de expressão?
Quando eu crio músicas, eu gosto de criar paisagens visuais sonoramente, por isso do meu trabalho vir envolto de camadas, texturas, ambiências e atmosferas. Nesse aspecto – sinestésico – por si só, eu acredito que esse trabalho já conecte música e visual. Para além disso, FERALKAT é ao mesmo tempo, uma personagem e eu mesma da maneira mais intensa e íntima que eu poderia ser. Gosto de trazer por meio da imagem, por meio dos clipes, por meio das vestimentas, da máscara, mais um caminho para adentrar esse universo que eu proponho não só com esse álbum, mas com o conceito sonoro-visual que a FERALKAT aborda: adentrar espaços selvagens de ser, discutir o natural e o artificial, o essencialmente humano e o virtual, tecnologia e natureza, sem juízo de valor sobre os dois, mas buscando entender quem somos (e quem eu sou) na pluralidade que a vida se dá. As capas dos singles e álbuns, os ensaios fotográficos e os materiais audiovisuais todos são pensados para integrar um conceito que se conecte com a música que estou fazendo, por isso considero esse projeto um projeto multimídia, pra além de musical.
9. Você mencionou a importância de falar sobre vulnerabilidade. Como você acha que a música e a arte em geral podem contribuir para quebrar estigmas relacionados à saúde mental?
A música, a arte, pra além da pura apreciação, também pode ser uma ferramenta importante de transformação social. Acho que quando a gente abre nosso peito e expõe nossas vulnerabilidades e fragilidades, a gente também toma um ato de coragem. Tem muitas pessoas por aí que tem medo de assumir suas vulnerabilidades porque vivemos num mundo que acha que força é nunca cair, não ceder. E a gente precisa falar sobre isso, que não é errado se sentir vulnerável, ou triste, ou deprimido, ou ter alguma questão relacionada à saúde mental. Que faz parte de ser humano vivenciar sentimentos diversos, passar por fases da vida em que as coisas ficam muito difíceis, e que nem todo mundo precisa responder a isso da mesma forma, e que tá tudo bem em precisar de ajuda, que procurar ajuda também é uma forma de se fortalecer. Acho que quando a gente se abre e traz isso pra arte, mais pessoas podem se identificar, e podem se sentir menos “erradas” e mais acolhidas, e buscarem ajuda pra problemas que às vezes as incomodam mas elas só deixavam debaixo do tapete porque a sociedade nos força a agir se utilizando das máscaras sociais que convém pra esse sistema que nos deixa cada vez mais adoecidos. Abraçar nossas vulnerabilidades é de uma força enorme, e a arte pode ser sim um caminho pra desestigmatizar as questões de saúde mental, que estão acometendo cada vez mais pessoas num ritmo desenfreado – uma questão importantíssima de saúde pública.