Entrevista: Marcelo José Santos, escritor

1. Após um hiato de 13 anos, o que te motivou a retornar à escrita poética com “O Dia Imprescindível”? Como foi esse processo de reconexão com a poesia?

Ao iniciar minhas viagens pelo Sertão, a trabalho, eu imaginava descobrir o Sertão de Guimarães Rosa, de Graciliano Ramos. Não me passava pela cabeça escrever um segundo livro. Mas um dia, depois de horas de estrada, nem eu nem o motorista tínhamos mais disposição para conversar,  ele apenas me disse: estamos chegando em Serra. Ele se referia à cidade de Serra Talhada, uma das cidades polo no interior de Pernambuco, distante uns quatrocentos quilômetros de Recife. Nunca tinha estado naquele lugar. Olhei adiante e não tinha nenhum sinal da cidade, só a estrada cortando a caatinga em duas metades. Mas lá muito longe eu vi uma serra que terminava abruptamente, como se fosse cortada, entalhada ou talhada. Então, mesmo sem nunca ter ido àquele lugar antes, nem ouvido falar da origem do seu nome, eu entendi que a cidade de Serra Talhada ficava ao lado daquela serra, talhada pelas mãos do tempo. Nesse momento eu fui jogado de volta para a poesia, porque é assim que eu entendo as palavras. Elas têm significados que vão além daqueles simplesmente arbitrários.  Cada palavra guarda significados que dependem de quem a usa ou usou. Então naquele dia escrevi dois poemas. E durante essas viagens fui escrevendo, escrevendo. Tive que reaprender a ouvir a minha poesia. Temas antigos foram voltando, mas com novas cores e significados.  Novas compreensões foram aparecendo. Até que percebi que tinha um livro em minhas mãos e precisava publicá-lo. 

2. Você menciona que o livro foi escrito durante viagens pelos sertões de Pernambuco e outras cidades do Nordeste. Como esses lugares influenciaram sua poesia e o conteúdo de “O Dia Imprescindível”?

As viagens mais longas e marcantes foram pelo Sertão, que é um lugar já mítico por causa das construções que grandes autores fizeram em nosso imaginário. Então a grande influência veio desse Sertão mítico que, segundo Guimarães Rosa, é o mundo. Até porque minha escrita sempre foi baseada na certeza de que nosso pensamento convive com seres reais e imaginários sem fazer distinção entre eles. Por isso, minha poesia é também mítica. Além disso, não me lembro de ter escrito nenhum poema na casa onde morava em Recife. Todos os poemas foram escritos durante as viagens. Um deles inclusive, dentro de um avião, entre Teresina e Brasília. Um poema que fiz para minha esposa, Luciana, num momento de saudade. Creio que, com o tempo, as viagens já não eram de ida a lugar nenhum. Não importa o destino, eu estava sempre no caminho de volta para casa, para dentro de mim, para me reencontrar comigo mesmo e com minha poesia.

3. O título do livro sugere um dia crucial para a existência. Pode nos explicar o conceito por trás do “dia imprescindível” e como ele se relaciona com a temática da morte e da vida que permeia a obra?

O dia imprescindível é o dia para o qual nascemos, o dia de nossa morte. A profecia mais essencial de todas. Penso nesse livro como uma caminhada contemplando a trajetória humana sobre a Terra, instigando a uma reflexão sobre nosso papel como indivíduos pertencentes a essa humanidade. O poema “O dia imprescindível” dá título ao livro e, ao mesmo tempo, o finaliza. Está, portanto, no início, no fim e,também, no meio dessa obra em muitas outras páginas. É um convite á reflexão do leitor: o que fazer de sua própria vida diante de sua inevitável finitude?

4. Seu livro aborda tanto elementos do cristianismo quanto do paganismo clássico, buscando uma harmonia entre eles. Como esses dois mundos coexistem em sua poesia e o que te levou a explorá-los dessa forma?

Conciliar cristianismo e paganismo é o mesmo que conciliar ciência e fé. Através da poesia podemos, às vezes, criar novos mundos. No mundo que criei, cristianismo e paganismo representam ambos a beleza e o conhecimento. Mas também, o mundo em que vivemos é baseado, de algum modo, no que decorre da Bíblia e do que recebemos da Grécia antiga. Esses dois universos ainda ecoam no nosso presente, em coisas do dia-a-dia. Por isso, ainda é importante compreendermos e refletirmos sobre essas duas construções humanas. 

5. A obra parece refletir uma tensão entre devoção e questionamento. Como você equilibra esses sentimentos em seus poemas, e o que deseja que os leitores reflitam sobre esses temas?

A devoção é um elemento da fé. O questionamento, da ciência. Considero ambos necessários para uma vida humana plena. Sendo que precisamos compreender qual o limite da fé e qual o limite do conhecimento. Ao invés de um rejeitar a legitimidade do outro, prefiro pensar que um, em determinado momento, pode ir até um limite que o outro não alcança. Desejo que os leitores reflitam sobre onde está esse limite. Porque nem tudo é possível conhecer e nem tudo convém crer. Existe um misticismo necessário ao ser humano, que o faz criativo, belo e vivo. E existe uma necessidade óbvia de conhecimento que impulsiona a humanidade. 

6. A passagem do tempo e a impermanência das coisas são temas centrais em “O Dia Imprescindível”. Como essas reflexões se manifestam em sua obra e o que elas significam para você pessoalmente?

São essas duas coisas que movem o ser humano. Pois dão um sentido de urgência a nossas vidas. Às vezes, o que permanece fala do que se foi. Por isso a presença de signos como a montanha, os fósseis, a alma em meus poemas. A presença desses signos ao lado de outros tipicamente ligados à fragilidade das coisas como o vento, o relógio, a sepultura, realçam a necessidade de se deparar e refletir sobre a impermanência, sobretudo a humana. Pessoalmente tenho uma obsessão por isso, não tem um dia que não pense na minha morte. 

7. Quais foram suas principais influências literárias e filosóficas ao escrever este livro? Há algum poeta ou escritor que você considera especialmente importante para a criação dessa obra?

Na literatura, creio que João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e Jorge Luís Borges são as influências centrais de minha poesia. Mas outros autores também me ajudaram a construir uma poética. Augusto dos Anjos, Antônio Barreto, poeta mineiro cujo livro “Vastafala” me impactou demais. E, também, um poeta chamado Edson Regis autor de “O Deserto e os números” e “As Condições Ambientes”, duas obras que sãos fascinantes. Além disso, alguns pensadores e suas ideias também me influenciam, embora eu não seja um leitor de filosofia muito dedicado. O mito da caverna creio que está em muitas partes desse livro. Assim como os arquétipos de Jung. E, é claro, a ideia de que toda a vida é sofrimento, de Schopenhauer. Mas também ideias contemporâneas como o conceito de culturas híbridas, de Cancline, está presente em minha obra.

8. Você aborda mitos bíblicos, gregos e até da cultura de massa em seus poemas. Como você vê a relação entre esses mitos na contemporaneidade e o que te levou a integrá-los em sua poesia?

Aprendemos com Cancline que vivemos num mundo que nos permite ter contato ao mesmo tempo com elementos simbólicos de vários períodos históricos e culturas. A interação desses elementos ressignifica todos eles. Então o aparecimento desses mitos lado a lado é um reflexo da minha condição na contemporaneidade. E o que eu busco é ressignificá-los, através da minha poesia, sem hierarquias, e respeitando aquilo que deles emana. 

9. Como foi a experiência de ter José Inácio Vieira de Melo, curador da Flipelô, escrevendo o prefácio do seu livro? De que forma as suas visões sobre a poesia se complementam?

José Inácio é um grande poeta e nos conhecemos em 2010 no lançamento do seu livro “Roseiral” em Recife. Ele tem uma poesia fincada no Sertão e na mitologia universal, inclusive a cristã, através de uma obra telúrica, já que ele nasceu e cresceu na caatinga. Da minha parte, a identificação foi imediata. Após ler meu primeiro livro, “Confissões & Profecias” ele escreveu um comentário nas redes sociais que me deixou muito feliz. Aparentemente gostou muito. Então o convidei para prefaciar esse segundo livro, “O Dia Imprescindível”. Pelo texto percebe-se que ele fez uma leitura muito profunda e o prefácio se tornou uma chave importante de leitura do livro.

10. Agora que você lançou “O Dia Imprescindível”, como vê o futuro da sua trajetória poética? Podemos esperar novos projetos literários em breve?

Sim, podem esperar. Já estou preparando um terceiro livro de poemas no qual pretendo me aprofundar ainda mais em temas existenciais através de mitologias ainda não exploradas nos livros anteriores.  E estou preparando também um primeiro romance.